segunda-feira, 23 de novembro de 2020

PÓ DAS ESTRELAS


lembro-me que estava escuro, talvez noite ou zona crepuscular, e, de dentro do quarto, através da nesga incerta das cortinas mal fechadas, fui surpreendida por uma incandescência deveras estranha, luz fortíssima, vinda do céu em movimento vertical, para cá e para lá, como se empenhada em varrer aquele negrume
desenhava um círculo redondo, possível base de cilindro, assim uma luz gorda, intensa, muito amarelo-dourada, contendo ameaça de calor, e não se fixava, percorria o horizonte celeste do lado de fora da janela, de um lado para o outro
provinha de um objecto voador de corpo arredondado e cheio, que se movia como um avião, mas não parecia ser um avião
eu assistia àquela visão com um misto de fascínio e terror, pela força do brilho, o inusitado do objecto e, mais, do conjunto formado por ambos
surgiu, então, por detrás do objecto-voador-não-se-sabia-qual, outro objecto voador, este mais conforme ao formato de avião, embora parecesse um helicóptero incorporado numa estrutura um pouco mais comprida e de asas mais próprias de avião, aparentando um aparelho militar
o meu espanto e medo exponenciaram-se, aquilo parecia episódio de uma guerra de mundos, o meu e outros, quem sabe se protagonizada por seres desconhecidos, talvez de outra galáxia
mal tive tempo de dar largas ao espanto e nem sequer de formular perguntas – aliás, que perguntas, se nem um mínimo estava esclarecido?! –, comecei a ouvir um som de altifalante, proveniente da altura daqueles aparelhos e com todo o ar de comunicado marcial
a princípio, não percebi a mensagem daquela voz – ou vozes, mais pareciam vozes, como se um coro de imposições –, apenas que falavam em turco, língua para mim desconhecida, o que me induziu a pensar que o comunicado era dirigido a eventuais residentes turcos no país
depois, a voz (ou vozes) passou a expressar-se na minha própria língua e anunciava: "um terrível e indomável incêndio devastou istambul, alastrando, agora, por toda a turquia, de onde se dirige para espanha; prevê-se que, de seguida, atinja lisboa, portugal"
eu habitava lisboa, portugal
o movimento aéreo aumentou substancialmente, o objecto-voador-não-se-sabia-qual continuava a jorrar sua luz intensa e circular, que ameaçava queimar-me os olhos vigilantes por trás das cortinas mal fechadas (não batiam uma na outra, qual se num dos lados ou nos dois minguasse uma tira de tecido); curiosamente, não conseguia desviar os olhos da luz, como se para ela fosse atraída por inversa lei da gravidade, mas franzia-os, a fim de os proteger daquela ameaça de fogo)
também a espécie de helicóptero/avião; agora, não um mas vários, voando de um lado para o outro, numa azáfama de urgência e prevenção, acrescentavam à mensagem do fogo a chegar um alerta: "mantenham-se em casa, janelas e portas fechadas, estão em curso trabalhos destinados a sustar o fogo, se vier, quando vier, que é o esperado"
divisava-se já uma neblina cinzenta, fumo vindo de céus outros, e cheiro a queimado
interroguei-me se, no seu caminho de caprichosa geografia – directo da turquia para espanha?! –, o fogo teria passado por paris, frança
é que os meus pais encontravam-se em paris, assunto de um congresso ou algo do género
troquei impressões com a avó e outros familiares, entretanto chegados ao quarto, partilhei a preocupação sobre os pais, que era um mais em relação à treva que já tomava conta do céu
e a notícia, largada dos altifalantes lá de cima: "o fogo acaba de devastar paris"
a minha angústia, uma aflição de que apenas guardo memória enquanto tal, não tanto se chorei ou gritei ou torci as mãos
os helicópteros/aviões/militares – já não cabia dúvida, no meio de toda a estranheza por esclarecer, de que se tratava de uma operação militar – desdobravam-se em actividade frenética, transportando materiais semelhantes a toros de madeira, que faziam descer com a ajuda de cordas
adiante da minha janela alta de vários andares havia um rio ou riacho (não era muito largo), em cujas margens vários homens trabalhavam afanosamente no que parecia ser a construção de uma barreira
aí eram despejados os enormes toros de madeira, verdadeiros troncos de árvores
numa das descargas, um dos toros atingiu um magote de trabalhadores, alguém alertou e, como ninguém parecesse dar atenção, essa pessoa, uma mulher, avisou que um deles estava morto e, para o demonstrar, pegou-lhe na ponta de um pé, levantando-lhe a perna e largando-a, de seguida, ao que tombou como se pertença de boneco de trapos
aí, sim, ficou claro o acidente e a sua funesta consequência
entretanto, eu, a avó e as outras pessoas – duas, três, uma delas o meu irmão? –, começámos a andar pela casa e, vá-se lá saber porquê, em menos de nada, estávamos fora da porta
ansiosa, pedi aos outros que voltassem a entrar, que atendessem aos avisos de que deveriam manter-se dentro de casa, de portas trancadas, mas a avó disse: "tenho de ir ao fundo das escadas buscar algo que, inadvertidamente, deixei cair"
explicou tratar-se de um embrulho com as jóias de sua filha – minha mãe –, que havia recolhido por precaução, para o caso de ser necessário fugir
mas fugir como, para onde, se a ameaça paira no ar – aliás, veio do ar! – e as ordens são para permanecer em casa e não sair?!, perguntei a mim mesma, tão perplexa quanto angustiada, enquanto avistava, lá em baixo, bem ao fundo das escadas, um embrulho de pano enrolado
eventualmente, acordei
💥
decorridos uns dias, fiquei a saber que, naquela noite, uma bola de fogo em tons de azul esverdeado tinha cruzado os céus da andaluzia, espanha, e desaparecido algures sobre o alentejo, portugal
se bem que a outra luz, a que eu própria presenciara nessa mesma noite, fosse de um amarelo intenso, não consegui deixar de pensar se, de alguma maneira, não se tratava da mesma luz...
e concluí: ele tem razão, não passamos de "pó  das estrelas com vida..."

"Somos pó das estrelas com vida, dotado pelo Universo com o poder de decidir o que fazer – e só agora começámos."
in, ASTROFÍSICA PARA GENTE COM PRESSA
Neil deGrasse Tyson  





quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O MENINO QUE PERDEU AS BOTAS

certo dia, um menino, aproveitando a distracção do pai, com quem passeava à beira do paredão, correu com quantas pernas tinha e só parou bem lá ao fundo, onde já não podia ser alcançado pelo olhar daquele, perdido que ficara à conversa com uns amigos
ficou a observar o horizonte, muito ao longe, mal adivinhado, devido à espessa cortina de névoa que tornava a paisagem translúcida
deixou-se fascinar pelo imenso manto ondulante por sobre o chão, que brilhava aqui e ali, tal qual respingos de diamante ou de simples zircão
Invadido por tanto de fascínio quanto de curiosidade pelo que suspeitava esconder-se mais além, esqueceu-se de pensar ou sequer de recordar as costumeiras advertências dos pais e descalçou as botas e as meias, colocando estas dentro daquelas e ambas sobre o paredão
descendo a rampa, logo sentiu os pés afundarem-se em areia, agora dourada à proximidade do olhar, experimentando uma engraçada sensação de cócegas que o fez sorrir
caminhou, caminhou e, à medida que avançava, começou a ouvir um murmúrio, logo transformado em rugido, e a sentir sobre a pele e os cabelos uma humidade, logo transformada em gotas de água
pensou que alguém o recebia com brincadeiras malandras e prosseguiu, animado com a perspectiva de descobrir quem seria, ao mesmo tempo que o seu sorriso se ampliou de contentamento
logo a seguir, assustou-se, porque um pé se lhe afundou na areia e, de desequilíbrio em desequilíbrio, viu-se empurrado a mergulhar de cabeça numa superfície fria e molhada 
e, sem ter tempo para se levantar, levou com o que lhe pareceu ser um grande balde de água fria pela cabeça abaixo, que o voltou a amarrar ao chão, deixando-o, por momentos, impossibilitado de respirar, para, de imediato, se lhe dissolver em cima numa espécie de efervescência
o certo é que a névoa estava cada vez mais densa e o menino não conseguia ver bem o que se passava, mas, por essa altura, podia concluir que se tratava de água, uma água barulhenta e borbulhante, que tirara o dia para se meter com ele (ou assim parecia)
já com o sorriso um pouco apagado, pois se sentia deveras a congelar, decidiu, contudo, prosseguir e indagar quem poderia estar para além daquela névoa cada vez mais cinzenta a pregar-lhe semelhante partida – sim, agora já pensava em partida e não em mera brincadeira
equilibrou-se como pôde e continuou, mas logo sentiu um braço forte puxá-lo para dentro-não-sabia-de-quê com muita força e, mesmo – pareceu-lhe – certa dose de violência
conforme pôde, lá conseguiu manter a cabeça de fora e esbracejar, apesar do que não alcançou a saída daquele não-sabia-o-quê 
foi, então, que ouviu um riso vindo bem lá do fundo e a voz desse riso perguntou-lhe, obviamente divertida: "que fazes aqui, rapazinho?" e ele, que não via ninguém e procurava respirar a custo, disse: "onde estás e quem és?" "eu sou o mar e estou à tua volta, mas não respondeste à minha pergunta" "Ah! – gaguejou o menino, aflito com a água que o rodeava e lhe sabia a sal – chamo-me manel e, e  e vim para desvendar o que a névoa esconde, mas, mas..." e não terminou a frase, porque já um jacto de água lhe entrava pela boca e nariz adentro, enquanto um braço poderoso o arrastava para dentro do agora-já-fazia-uma-ideia-de-quê
foi ao fundo daquela barriga imensa e, para seu enorme espanto, deixou de sentir quer o frio quer a aflição por respirar
em vez disso, deu consigo a oscilar, com ligeiros movimentos de pernas e braços, enquanto, de olhos muitíssimo abertos, contemplava, deslumbrado, um mundo maravilhosamente colorido por toda a sorte de plantas e animais, que nunca havia visto ou sonhara ver (descontados alguns, poucos, conhecidos dos livros)
entabulou conversa com vários desses seres misteriosos e, em particular, com um, de belíssima e transparente figura, que lhe disse chamar-se cavalo marinho, lhe explicou que mundo era aquele e lhe perguntou a que mundo pertencia
o menino explicou-lhe que pertencia à terra e que tinha ido à descoberta do mais-além-da-névoa, que estava muito feliz por o ter conhecido, a ele e aos outros fascinantes seres, mas que não podia ficar ali para sempre, embora ignorando como havia de regressar ao seu mundo...
prontamente, o cavalo marinho disse, "eu levo-te" e, sem esperar resposta ou agradecimento, aumentou de tamanho até se tornar o dobro do menino e mandou-o saltar-lhe para o dorso e agarrar-se a ele, o que o menino, mudo de deslumbramento, cumpriu, mal conseguindo articular um "obrigado"
e começava, fascinado, a viagem de regresso, por novas e fantásticas paragens que o cavalo marinho decidira mostrar-lhe, quando...
– manel, o que fazes aí deitado na areia, com o mar quase a chegar-te aos pés? mexe-te, temos de regressar a casa, já é tarde e está a refrescar muito, ainda te constipas!
dizia-lhe o pai, abanando-lhe um ombro, ao aperceber-se de que ele dormitava.
ao fim de uns momentos, o menino, atarantado e a contragosto, levantou-se e disse:
– ora, pai, logo agora que o cavalo marinho...
mas a sua frase – e, pior, a sua viagem – perdeu-se, porque o pai, já a ficar mais zangado do que impaciente, lhe perguntava:
– e as botas, manel, onde estão as tuas botas e, já agora, as meias?




Nota: este história surgiu-me de um par de botas infantis, com as meias dentro, com que me deparei sobre o paredão da Praia Grande, momento que registei na fotografia supra.