sexta-feira, 7 de julho de 2023

É ISTO O CÚMULO DA SOLIDÃO?

Quando, há uns anos, eu frequentava o bar terraço do CCB, onde, bastantes vezes, almoçava e passava a tarde a escrever, num ambiente onde conviviam, sem barreiras, estudantes universitários, entregues aos seus livros de estudo, e, em número significativamente menor, pessoas já desligadas do trabalho, entretidas com seus jornais e computadores, havia uma pessoa que destoava do ambiente, calmo, harmonioso e concentrado, reinante.

Tratava-se de uma mulher de aparência normal, que deveria rondar os quarenta anos e se manifestava de forma exuberante, dirigindo-se a um e a outro num tom de voz elevado, cirandando entre uma mesa e outra e assim perturbando, de algum modo, o sossego geral. Não o fazia, todavia, em tom agressivo, mas antes com uma intenção transparecida de quem quer ser (ou parecer) simpático e, sobretudo, denunciando enorme necessidade de se relacionar, de ter a atenção e, quem sabe se o afecto, dos interlocutores.

As pessoas reagiam sem animosidade mas com cautela, pois estavam ali com propósitos próprios, que, seguramente, não passavam por incomodar ou confortar o próximo. Nunca vi ninguém virar-lhe a cara ou omitir uma palavra de resposta, mas também não presenciei mostras de disponibilidade para irem além do necessário ou requerido pelos padrões de educação e tolerância commumente aceites. Quanto a mim – confesso –, à sua passagem, mergulhava a cabeça no computador.

Certa vez, assisti a uma cena algo caricata e constrangedora. Pouco tempo decorria das festas natalícias e ela abordou a mesa onde se encontravam duas ou três raparigas, entregues aos seus estudos, interrompendo-as não sei com que conversa e, de súbito, sacou de um embrulho festivo e fez questão de o oferecer a uma delas, argumentando tratar-se de um presente de natal. Desembrulhado o dito, creio que por ela mesma, saiu um bonito lenço ou cachecol. Foi deveras incomodativo assistir ao desconforto da rapariga, teimando, educadamente, em que não podia aceitar a oferta. Mas ela insistia, insistia. Não me recordo do desfecho, o que me marcou foi o (compreensível) mal-estar da rapariga face àquele desespero de dádiva da mulher que gostava (ou precisava) de falar com desconhecidos.

Acontece que ela se fazia acompanhar de uma espécie de mascote, um boneco de peluche (por vezes, mais do que um) que colocava sobre a mesa, assegurando — imaginava eu! — o papel do inexistente acompanhante.

Entretanto, os empregados do espaço falavam com ela como se tudo fosse normal, animados não sei de que pensamentos ou emoções perante tão estranho comportamento.

No que me concerne, aquilo incomodava-me, pensava se não estava perante o cúmulo da solidão, embora pudesse ser mais grave (ou, talvez, menos...), algo do foro psiquiátrico, mas sentia-me apaziguada por me parecer que a mulher não exibia tristeza, inclusivamente, aparentava estar de bem consigo e suas idiossincrasias.

A dada altura, com grande pena minha, o bar terraço do CCB fechou, arranjei outros espaços de escrita, e nunca mais pensei naquela mulher e na sua particularidade.

Há dias, almoçando no CC Amoreiras, divisei, uns metros adiante, uma mulher a falar na direcção de algo estacionado sobre a mesa, o que parecia ser um boneco de peluche. Pensei que teria alguma criança ao lado, mas, quando me levantei e passei por ela, constatei que não, não havia nem criança nem mais ninguém, apenas a mulher, o boneco e o seu diálogo sabe-se lá se obtinha resposta naquela transação! Com toda a reserva que estes casos me merecem, procurei não olhar para ela, que, pela perspectiva apressada do canto do olho, me pareceu dever rondar os cinquenta anos. Veio-me, então, à memória o caso da mulher do CCB, de que falei acima.

Pouco tempo depois, após almoçar e me preparar para escrever um pouco, no café restaurante da Gulbenkian, qual não foi a minha surpresa, quando, numa mesa ao lado da minha, veio instalar-se alguém em quem não teria reparado, não se desse o caso de assistir à colocação, sobre a mesa, de dois bonecos de peluche, que assistiram, sem reclamações, ao almoço da sua dona ou companheira ou sabe-se lá o quê. Tratava-se da mulher das Amoreiras! Tal como a do bar terraço do CCB, trocou umas palavras com os empregados, uma das empregadas perguntou-lhe, atenciosamente, se o Poupas (presumi, pelo contexto, tratar-se do boneco da Rua Sésamo) tinha ficado em casa, o que ela confirmou. Terminado o almoço, dirigiu breves palavras aos companheiros de mesa, levantou-se e perguntou a um dos empregados se havia alguma exposição. E lá foi à sua vida, talvez mostrar aos seus bonecos os diálogos do Chafes com o Giacometti.

Fiquei a pensar se não se tratará da mulher do CCB.

Mas a maior  (e mais pungente) interrogação que se me suscitou foi esta: será isto o cúmulo da solidão? Aquela que o cantor francês dizia que n’existe pas


(discretamente, fotografei os bonecos)



segunda-feira, 26 de junho de 2023

2050 – O REGRESSO

2050


Eis-nos sentados na esplanada, quase sobre o rio, com a sensação de que basta estendermos um pouco os pés para os conseguirmos mergulhar na água, hoje a deslizar, límpida e serena, no seu melhor tom de azul.


À distância, avista-se um navio de cruzeiro, acenam mãos naquela excitação esparvoada de que muitos se deixam tomar quando habitam, mesmo por pouco tempo, um mundo artificial. Mais próximo, pequenos barcos à vela, de uma vela só, mais parecendo antigas banheiras de zinco destinadas ao banho das crianças, passam-nos quase sob os olhos, levando aprendizes de marinheiros, sonhadores de longas viagens, horizontes outros.


A ideia dos mundos artificiais, acabada de evocar a propósito do navio de cruzeiro, persiste na minha mente, transportando-me à realidade, esta em que vivemos, mergulhados sem hipótese de escapatória. Já lá vai o tempo em que a inteligência artificial (AI), o ChatGPT e seus derivados tomaram conta das vidas deles. Já morreu o tempo em que se discutia, quero dizer, em que os altos responsáveis pelo seu patrocínio fingiam preocupar-se e decidiam, por acordo, adiar o desenvolvimento da AI por uns meses ou algo do género. Já passou às calendas o tempo em que, no discurso tacanho e eriçado dos fóruns públicos, aquilo das velhas redes sociais, pleno de ignorância e falso senso comum, muita convicção bacoca e, sobretudo, desejo de afirmação e ânsia de aceitação, muitos clamavam contra a AI, muitos outros a seu favor. Os primeiros afirmavam o receio do domínio dos humanos pelos portadores da dita, chamemos-lhes Robotso perigo da desinformação, a desnecessidade dos trabalhadores humanos, com a consequente e avassaladora onda de desemprego, hordas de gente sem recursos, etc.; os outros, larga maioria, argumentavam com a inevitabilidade do progresso, apodavam os primeiros de tacanhos, exemplificando com as oposições sem sentido que as gentes de outras eras ofereceram às conquistas tecnológicas (revolução industrial e afins) conseguidas pelos génios da humanidade. Entre uns e outros não se vislumbrava hipótese de diálogo, falavam entre si como surdos a atirarem pedras sem motivo, trocavam insultos em vez de argumentos, aliás, estava na moda insultar, insultar era mesmo o definitivo statement de existência, talvez de importância.


2023


Assisto à luta virtual – travada, sobretudo, nas redes sociais – como espectadora fascinada pela profundidade da tragicomédia dos humanos, seres (suposta e seguramente) dotados de inteligência (para além de emoção...) e, todavia, tão irracionais nas suas acções.


Isto espanta-me tanto mais quanto é certo que nós, os humanos, nos encontramos inexoravelmente unidos num destino comum, de que nem os mais privilegiados – aquela meia dúzia que detém mais riqueza do que os restantes milhões e milhões dos seus semelhantes – podem escapar, a saber, a morte. Sim, por esta altura, ninguém nunca conseguiu escapar da morte (no futuro, talvez a questão nem se coloque)! Não que isto fosse trágico ou o mais trágico. O pior é ninguém saber qual o destino post mortem desta coisa que habita os nossos corpos e experiencia (ou será que cria?) o nosso profundo sentir (aquele quid para além do cartesiano, "Penso, logo existo" ou do muito mais elaborado "Sinto, logo penso, logo existo", enunciado pelo célebre cientista português António Damásio). Na verdade, pode afirmar-se que a generalidade dos humanos nem sequer entende que esta fatídica ignorância quanto ao que sela o seu destino – aliás, conformadora de todo o seu percurso neste mundo dos vivos (ou assim considerado) – deveria ser razão mais do que suficiente para pararem de se agredir mutuamente, com base na crença ou no desejo de serem melhores uns do que os outros, de merecerem mais e melhor uns do que os outros, neste mundo limitado, de recursos cada vez mais exauridos. Sempre acreditei que, caso parassem para pensar um pouco, não haviam de digladiar-se e, muito menos, de o fazerem através de insultos soezes. Reconheça-se que, pobres coitados, têm uma certa desculpa, pois, as mais das vezes, como distracção de vidas cansativas, entediantes e sofridas, andam entontecidos com a propaganda estupidificante e aparentemente libertadora, lançada através das ditas redes sociais e dos conteúdos publicados e disponibilizados em todos os meios de comunicação social e política, que lhes são administrados (precisamente pelos pelos mentores da AI).


Assim vou reflectindo, enquanto assisto, entre fascínio e repulsa, a essas tristes manifestações dos outros membros da espécie, supostamente inteligente, a que também – e para meu grande desgosto – pertenço.


Sobre o caso concreto da AI, antecipo mais ou menos isto, consoante escrevi no meu primeiro romance (datado de há quase dez anos, mas não publicado, procrastinadora me confesso!): "Será que a tua dúvida se refere ao papel da fulgurante evolução tecnológica no desenvolvimento, ou mesmo na reconfiguração, da inteligência humana, de que, aliás, é consequência, e, porventura, na própria evolução da espécie, um dos temas abordados?"


Para mim, esta hipótese – colocada na voz de um dos personagens do romance –, expressando um receio, representava em simultâneo um alívio, pois eu descria tanto da minha espécie, que alimentava a esperança salvífica na sua extinção.


A ideia era mais ou menos esta: assim que dominados pela AI, representando esta, ipso facto, um patamar diferente, superior, de inteligência, os humanos não se tornavam portadores desse tipo e grau de inteligência (que interesse teriam os dominantes em assimilar a si os dominados, tornando-os seus iguais?), mas, justamente por isso, o paradigma dos humanos mudava definitivamente, visto perderem o resto da liberdade de que tinham ou podiam ter gozado (caso tivessem sabido utilizá-la…). Tornavam-se, digamos, sub-humanos, regrediam (ainda mais) na escala animal, ao ponto de subsistirem, apenas, na medida em que os outros precisassem deles para alguma coisa, com tendência, pois, para a extinção física, mas, desde logo, com extinção imediata enquanto titulares de natureza humana (ao menos nos moldes em que, até então, era percebida). Ora, como esta natureza, em minha opinião, sempre deixou muito a desejar, eu entendia, com um certo cinismo, que a única vantagem da AI para a humanidade deveria consistir na respectiva extinção. Em contrapartida, os portadores daquela não se tornavam humanos (que interesse teriam os dominantes em assimilar-se aos dominados, tornando-se seus iguais?).


De notar que continuo a pensar do mesmo modo.


Há dias, dez anos depois de a frase citada ter sido proferida por um personagem do meu romance, deparei-me com a publicidade a um livro sobre a vida depois da morte, que, segundo o anúncio, junta espiritualidade e ciência para demonstrar a existência dessa vida, segundo a tese de que o nosso ser não corpóreo (a expressão é minha), ao ser libertado, mercê da morte do corpo, vai lá para não sei onde, de onde pode regressar ou regressa (supostamente por incorporação em novos corpos, calculo!).


Em apoio de tal tese, indicavam uma amálgama de argumentos estafados, como o resultado das experiências de regressão e dos relatos de quase-morte, bem como, of course, as teorias da reencarnação. 


Portanto, concluí, nada de novo, apenas mais uma colagem de hipóteses, aliás, não inovadoras e, muito menos, confirmadas, em suma, balelas para entreter tolinhos. Esta convicção afiançou-se-me ainda mais quando verifiquei que, do pacote publicitário, constava um rasgado elogio do Sr. Deepak Chopra, conhecido guru da área da auto-ajuda, domínio a que não dou crédito, pois, em minha modesta opinião, caso resultasse, não havia ninguém pobre ou infeliz; aliás, o próprio conceito de livros de auto-ajuda sempre me pareceu contraditório, pois se a auto-ajuda funcionasse não eram precisos livros…


Mas, acontece que, por esta altura, estamos em plena era de desenvolvimento acelerado da AI, só se fala do ChatGPT e seus derivados – quem não souber de que se trata, é considerado ignorante, burro ou ambos –, e a minha mente deu um enorme salto.


Eu já estava convencida de que as máquinas dotadas de inteligência artificial rapidamente assumirão o controlo, visto que, quem alcança o mais, alcança o menos ou o contrário, quero dizer, a partir do momento em que adquiram os processos de raciocínio humano, irão penetrar nos mistérios da nossa mente, com uma liberdade e profundidade de que nós não dispomos, por sermos parte interessada, estarmos marcados por longa herança genética e limitados pela prisão do (ou no) corpo físico. Conclusão: estes novos seres virão a ser capazes de nos entender (muito melhor do que nós nos entendemos). Chegados a este ponto, é certo e sabido que lhes pareceremos tão estúpidos e limitados como a mim nos parecemos e, daí até ao domínio, será um simples passo.


E – pasme-se! – eis que a publicidade ao tal livro da treta me abriu o pensamento para outra hipótese.


Ponto prévio, sempre nutri a esperança de desaparecer definitivamente após a morte, mas, como careço de memória da minha (eventual) experiência pré-vida e nunca recebi notícias do outro lado, sempre receei a possibilidade de a minha alma ou espírito ou lá o que é esta coisa que me habita (que habita o meu corpo), pudesse mergulhar numa realidade paralela, sabe-se lá em que termos e com que consequências. A essa realidade paralela chamei alma universal, isto quando, na longínqua idade dos dezoito ou dezanove anos, certamente à falta de melhor, me entretinha a pensar e escrever sobre assuntos transcendentais.


Ora bem, a ideia da vida para além da morte, relançada bacocamente no livro elogiado pelo Chopra, conduziu-me a equacionar (para efeitos especulativo-ficcionais) a seguinte hipótese: então e se uma dessas almas perdidas no mundo do lado de decidisse (ou alguém por ela) encorpar num ser de AI, num Robot? Quem não preferiria esse upgrade em relação a voltar à humanidade? 


2050


Agora, estamos aqui frente ao rio, quase a mergulhar os pés na água. Afinal, lá ao longe, não é um navio de cruzeiro, desapareceram, há muito, por desnecessidade. Nem aqui mais perto são barquinhos de uma vela só, igualmente desaparecidos. Apenas a corrente aquática, deslizando à nossa frente, em total liberdade, no seu mais puro tom de azul. Então, aquilo do navio e dos barquinhos, trata-se apenas de memórias longínquas que, vá-se lá saber porquê, me passaram pelos fios da caixa metálica? E de quem são essas memórias?


Também não posso molhar os pés na água, pois sei, dizem-mo os mesmos fios – não  qualquer memória espúria –, que podem enferrujar e comprometer a minha integridade, única razão da minha existência. Então, porque tive aquele impulso de mergulhar os pés na água, antecipando um formigueiro de prazer? Formigueiro de prazer, mas o que é isto, de onde me vêm estas ideias, melhor, este sentir?


Experimento uma confusão, coisa nova, nada habitual. Não gosto disto. Pergunto ao meu par: – achas-me estranho? "Estranho?", interroga-se em jeito de resposta. Sem perder tempo, afasta-se, com todas as suas luzes a brilhar intermitentemente.


Pressinto que vai falar com os outros. Não me sinto em segurança. Algo parece habitar-me para além dos fios e o pior é que ele percebeu... E quando a estranheza toma conta de nós nada de bom pode acontecer. Mas, o que é esta estranheza? Quem me dita este...MEDO? 




(imagem obtida em pesquisa Google)







sábado, 6 de maio de 2023

A MÃE


A Mãe sempre gostou muito de flores. Pouco tempo antes de – sem que algo o fizesse supor, de um estúpido dia para outro estúpido dia – nos ter sido arrebatada pela tenebrosa ceifeira, maldita seja!, começou a amar girassóis. Antes de eu ter tido tempo de agir – como fizera, por exemplo, com o vaso de sardinheiras e com o da laranjeira miniatura, carregada de laranjinhas, que a deixaram tão emocionada e feliz –, já ela havia plantado girassóis no jardim. Pelo menos um cresceu, em exuberância e pressa, em direcção ao céu.

No dia em que o meu Irmão e eu a acompanhámos àquele derradeiro leito frio que costuma designar-se por última morada – embora, em bom rigor, o seja apenas da matéria que de nós resta, sem que alguém haja descoberto onde passamos a residir depois do percurso terrestre, se é que algo de nós subsiste para tal –, o Pai, que por idade e debilidade, não nos pôde acompanhar, recomendou quer levássemos o girassol. Assim fizemos, como, por certo, teríamos feito, mesmo sem a recomendação.

Conto isto, não para invocar tristezas, mas para dizer que ando há tempos para desenhar girassóis, em memória da Mãe. Nem sequer se trata de questão de saudade, essa que, quando atinge, se faz sentir de forma tão pungente, que não há palavras. O que resta agora, volvidos quase vinte e cinco anos, é um vazio profundo, um vazio de mãe, duma certa mãe (há mães e mães). Insisto, não pretendo invocar tristezas, não é, de todo, o caso, só que me apetece falar da Mãe, talvez por ainda não ter cumprido com os girassóis. Ou talvez não.

A Mãe!

A Mãe, para além de mãe, era a Família. Quando a evoco, sinto que não vem só, vem, em primeiro lugar, com o Paizinho – assim chamávamos a meu Pai –, com a Avó, sua mãe, que sempre viveu connosco, com seu Pai, que amava e, frequentemente, invocava, apesar de o não ter conhecido, pois morreu aos seus três meses de idade, com a Mamã e o Papá, seus avós  maternos, em cuja casa cresceu, após o falecimento do pai, com muitos outros membros da família, incluída a do lado de meu Pai, sobretudo, a Avozinha e o Avozinho (que também passou a viver connosco, mal enviuvou).

Portanto, a Mãe, mais do que mãe, era família, era a árvore sólida de que eu sou um simples ramo frágil, talvez uma folha, seguramente, caduca.
 
Mas a Mãe também era Lar, home, sweet home! Sim, de suas cálidas e engenhosas mãos nasciam tantas coisas boas, saborosas, bonitas, aconchegantes, originais, sei lá! não posso passar o resto do texto a inventar adjectivos só para dizer que a Mãe era o lar, aquele sítio onde te sentes protegido, aconchegado, especial entre especiais.

Não era o facto de cozinhar maravilhosamente, de nos fazer roupas lindíssimas e originais – como os meus bibes bordados, em criança, as camisolas de lã, as bandoletes (certa ocasião, cheguei a casa e fui surpreendida com uma data delas, cada uma de sua cor, a condizer com as camisolas), os casacos de lã, com capuz, bordados de invenção sua e forrados a cetim –, de desencantar soluções práticas para todos os impossíveis que se apresentavam, de, à hora do almoço, nos ir esperar ao portão, a meu Pai, meu Irmão e a mim, vindos do Liceu (onde o Pai leccionava), sempre com um sorriso aberto e alegre. 

Não, não era tudo isso e muito mais, era a entrega, diria mesmo a devoção, o amor, que punha em tudo o que empreendia, em todos os seus gestos e realizações.

Sim, porque a Mãe, para além de Família e Lar – ou talvez por isso –, era Dádiva, era Devoção, era Amor.

A Mãe sabia criar Momentos Mágicos. Quando éramos crianças (meu Irmão e eu), havia uma altura do ano que aguardávamos com imenso júbilo e ansiedade: a Festa do Santo António, patrono da cidade, uma cidade remota, para lá do Marão, onde a vida corria muito devagar e sem novidades. Ao longo do ano, a Mãe constituía-nos um mealheiro, para, durante essas festas, em que a cidade se animava de divertimentos vários – o circo, o carrossel e outros aparatos do género, e, máximo dos máximos, as barracas, onde se vendiam artigos tão desejados, ou seja, no que nos dizia respeito, ao meu Irmão e a mim, brinquedos de toda a espécie e feitio.

Ora, mal as barracas assentavam arraiais, lá íamos de mãos dadas com a Mãe, aplicar, como entendêssemos, aquele pecúlio, especial e amorosamente poupado para a ocasião. Apesar das décadas decorridas, tenho ainda presentes algumas daquelas entusiasmantes aquisições: um guarda-chuva de criança, um trem de cozinha, constituído por imensos tachos e tachinhos (por essa altura, ainda ignorava que a cozinha viria a ser objecto da minha taxativa rejeição!), uma bola de plástico, de encher, feita de gomos coloridos, tipo a bola nívea.

Noutras alturas, quando a Mãe não podia satisfazer os nossos desejos, porque o dinheiro não chegava – note-se que, já então, os professores do liceu, caso de meu Pai, não ganhavam muito (todavia, eram extremamente respeitados…) –, a Mãe ficava triste. Não que isto acontecesse com frequência, pois nós sabíamos o que podíamos ou não pedir. Recordo, apenas, um episódio: estávamos  numa loja de roupas, vi umas lindas meias ou soquetes e pedi-lhe que mas comprasse; inicialmente, a Mãe anuiu, mas acabou por confessar a sua impotência. Obviamente, não insisti, mas fiquei triste, não por não poder ficar com as meias, mas por testemunhar o desconforto e tristeza da Mãe por não mas poder oferecer.

A Mãe era a personificação da Bondade, bem intencionada, tolerante, amante de dar e de proteger.

Nunca reparei se a Mãe era bonita! Hoje, que penso nisso e revejo fotos, tenho a certeza de que sim, mas foi questão que esteve sempre fora do meu radar, simplesmente porque não interessava nada, nem sequer me passava pela cabeça. Era um pouco gordinha, situação que, mais tarde, mudou, devido a uma úlcera estomacal, mas nunca reparei nisso como um defeito (parece que, hoje em dia, o é!), era como era e isso não interessava nada, aliás, nem ocorria avaliar tal aspecto.

A minha relação de intimidade/cumplicidade com a Mãe criou-se, sobretudo, a partir do fim da minha adolescência. Até então, eu estava mais fixada no Pai.

Tratava-se de uma relação de significativa abertura e diálogo, com algumas reservas, da minha parte (por necessidade de salvaguarda do equilíbrio, habituei-me a resguardar uma parte de mim). Por outro lado, permanecia um aspecto da minha educação que eu reputava de nocivo e cuja principal responsabilidade atribuía à Mãe: o excesso de protecção, que me levou, inclusivamente, ao afastamento geográfico e, em grande parte, àquela reserva. Ora, em dados momentos – talvez zangada comigo mesma, por bem saber que, apesar de todo o meu esforço, sofria, ainda, os constrangimentos decorrentes dessa circunstância –, eu acabava por, em acesa conversa, lhe imputar a respectiva culpa. Ela nunca se zangou, antes me dava razão (quem sabe se por, na sua imensa sabedoria de amor, compreender que a minha verdadeira zanga era comigo e não com ela!). Depois, eu sentia-me — e continuo a sentir-me – culpada da agressividade com que, por vezes, lhe fazia essa acusação, a qual, sendo materialmente justa, nem por isso era razoável. Em contrapartida, devotava-lhe um amor extremo, que manifestava de diversas formas, mais por actos do que por palavras, sempre sem alarido. Ela sentia-o e tinha a bondade de o reconhecer aberta e explicitamente.

Hoje, dia sete de Maio de 2023, nesta dimensão onde ainda me encontro, a minha Mãe completaria cento e dois anos. Hoje é dia da Mãe! Que festa seria, se!

Ainda não desenhei os girassóis, mas ficam estas palavras (que bom seria se os mortos pudessem ler)!


(a Mãe, o Mano e eu)



segunda-feira, 24 de abril de 2023

ESTE É O CRAVO QUE HOJE AVISTO


este é o cravo que hoje avisto

quarenta e nove voltas deu a terra
em sua indiferença programada

o chão forrou-se de pétalas caídas
esperanças devolutas
tragadas na fúria de interesses poderosos 
indiferenças cegas
impotências surdas
pois déspota e avarento é o poder
fraca a cabeça e a voz do povo
ai este triste povo!

resta a liberdade de exultar, 25 de abril sempre!

não será pouco, é certo
todavia não basta

este é o cravo que hoje avisto
ainda de pé, mas por cumprir






sábado, 22 de abril de 2023

O SUICÍDIO DA TIA MIGUTINHA


Sempre adorei histórias de família, talvez porque meus Pais tão bem as sabiam contar. Deixo aqui uma delas, imagem de inocência e graça, que teve o condão de me despertar especial ternura, mesclada com divertimento. 

Minha Avó materna, de nome Francisca Felicíssima, nasceu num belo casarão de pedra, onde cresceu na companhia de vários irmãos e irmãs, assim chamados: José, Carlos, João, Fausto, Roque, Adelaide e Maria Augusta, esta, creio que a mais nova, a quem atribuíram o petit nom Migutinha.


Por essa altura, algures entre o final do século XIX e o início do século XX, os meninos, pelo menos esses meninos, não eram directamente criados pelos pais ou (apenas) pela mãe; tal tarefa competia a amas, contratadas e trazidas para casa, uma para cada um deles. 


As crianças viviam, assim, de certo modo apartadas do controlo parental e, talvez por isso, entregavam-se a brincadeiras desejavelmente evitáveis, como, por exemplo, explorarem as preciosidades dos sótãos e brincarem aos teatros com vestidos e outras roupas dos (mais) antigos, que se davam ao luxo de rasgar à tesourada, para uso mais adequado aos objectivos pretendidos. A mãe nem se apercebia, as amas reportavam os progressos dos meninos, quando interrogadas, talvez omitindo os disparates, afinal e em última análise de sua responsabilidade. 


Certo dia, nas suas brincadeiras, os irmãos da Migutinha pregaram-lhe uma partida ou algo do género, que a deixou deveras magoada. Em reacção, juntou algumas peças de roupa, enrolou-as numa pequena trouxa, e saiu de casa, atravessando a quinta até ao tanque de pedra onde jorrava, vinda de uma fresca nascente, a água cristalina que abastecia a casa e a propriedade, anunciando a intenção de se matar!


Acabou por regressar mais tarde, não sei se por iniciativa própria se por intervenção dos irmãos ou da ama, sem ter concretizado o intuito de mergulhar no tanque até ao afogamento ou sabe-se lá o que tenha idealizado que seria a morte auto-infligida, em direcção à qual partira munida de umas roupitas.


Portanto, não foi bem o suicídio, mas o quase suicídio da Tia Migutinha!


E ainda bem, até porque, caso contrário, ter-me-ia privado do imenso gosto de a conhecer. Na verdade, ela veio a tornar-se na minha tia-avó preferida, desde logo, pela sua simpatia e doçura.


Recordo que, sendo eu criança, a minha avó costumava levar-me, quando a visitava. Conservo uma recordação muito grata dessas ocasiões, não só pelas suas referidas características, mas também porque gostava muito da sua casa, situada em pleno campo, numa localidade um pouco fora da cidade em que, então, vivia. Ainda mantenho a lembrança da amplitude e luminosidade do salão em que nos recebia e do tesouro que aí guardava, elegantemente colocado sobre um móvel: uma caixinha de música, daquelas em que, mal se abre a tampa, surge uma bailarina a dançar. Que deleite, levantar aquela tampa e assistir ao salto e ao bailado da pequena dançarina! Fazia-o repetidas vezes, enquanto a avó e sua irmã conversavam  em reconfortante sossego e harmonia.


Mais tarde, em plena juventude, tendo já mudado de cidade, quando, em férias, regressava a casa de meus Pais, lembro-me de, frequentemente, a Mãe me sugerir que visitasse a tia Migutinha, que teria perguntado por mim e manifestado esse desejo. Por uma razão ou por outra – certamente por não ter ainda incorporada a certeza da inexorabilidade da passagem do tempo e da finitude das pessoas –, fui adiando a visita; depois, fez-se demasiado tarde, pois a Migutinha deixou de estar entre nós. Isto, entenda-se, no plano físico, porque, como decorre desta narrativa, ela permanece bem viva no meu coração.


Em memória, deixo a fotografia da casa onde nasceram e cresceram minha Avó Francisca e minha Tia-avó Maria Augusta, Migutinha, lamentando que, hoje em dia, esteja praticamente reduzida a ruínas, como o meu sonho de menina de a vir a tornar minha.










quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

UMA DECISÃO E UM COCKTAIL

 

Estava decidido, o último dia do seu passado seria aquele e faltavam nove horas e meia para terminar.


Tinha-lhe sobrado tempo para firmar a decisão. Vezes sem conta, ao longo da vida, ela assaltara o horizonte dos seus dias de diversas maneiras, dias que apenas tinham um ponto em comum, não lhe agradarem, ou melhor, serem-lhe nefastos, pesados, duros de suportar. Quer dizer, acumulara um passado de sonhos mortos, esperanças amordaçadas, o que é bem pior do que destruídas, feridas profundas que, indo bem além da superfície da pele, a deixavam crivada de marcas indesejáveis, ao menos para ele, não que as deixasse visíveis e, muito menos, procurasse ostentá-las, atirá-las à cara de terceiros. Talvez por isso, por não lhe notarem a superfície das marcas deixadas pelo dia-a-dia, não lhe interpretavam bem o ocasional mutismo, o quase sistemático afastamento, aquele permanecer acantonado, como quem parece fugir dos outros, embora bem possa dar-se o caso de esperar que lhe estendam a mão. Mas não mostrava a sua, a sua mão, e escondia os olhos, não se diz que estes são o espelho da alma? Então, como podia exibir, através deles, o que o passado lhe inscrevera, a ferro e fogo, quase nunca com mão branda e compostura doce? Não é que não olhasse os outros de frente, aliás, não compreendia, metiam-lhe mesmo confusão, as pessoas que falam com a boca, enquanto desviam o olhar. Não era o seu caso, entregava o olhar a quem calhava parar e dirigir-lhe a palavra, ou a quem, menos vezes – não por orgulho ou preconceito, antes por simples reserva, embora assim pudesse não ser entendido –, tomava a iniciativa de dirigir a palavra. Acontecia que, mesmo através da dádiva dos seus olhos, mais depressa o viam como ave rara, orgulhoso, independente. Referiam-lhe a independência como quem proclama uma virtude e, ao mesmo tempo, sublinha um defeito. Mas ele lá sabia, dera em ser ou tornar-se independente, muito simplesmente, por mera necessidade, por estar cansado de esperar apoio, um simples estender de mão, um convite ligeiro, sem compromisso, um reparar nas marcas da sua pele e nos seus olhos, os olhos com que olhava de frente, sem, contudo, deixar transparecer o que o passado lhe fizera, ou o que ele deixara o passado fazer-lhe. Isto, sim, era um pensamento que o irritava, desesperava, frustrava, sei lá!, era a pior marca do passado, essa de admitir que a culpa era sua, quer dizer, total e exclusivamente sua. Outras vezes, mais brando no rigor com que tinha por hábito mutilar-se, acalentava a esperança de que se tratasse apenas duma questão de azar, acaso, ou intenção maléfica, sabe-se lá de que bruxa ou fada-má. Imaginava-a, a bruxa ou a fada-má, a rondar o parto de que nascera o seu passado, movendo vestes negras à sua volta, à volta do seu corpo tenro, despido e mole, ainda atado pelo cordão umbilical. Na verdade, como tinha sido possível – e sim, agora pensava já em tempo passado definitivo –, que a sua vida tivesse sido aquela, tão seca, tão zero, tão nada. Olhava para trás e não sobrava quase nada a que pudesse agarrar-se, caso tentasse encontrar um sentido para aquilo, aquilo a que chamavam vida. As suas iniciativas de paz, boa vontade e amor tinham todas batido em ferro duro, resultando estilhaçadas em cacos rejeitados, indesejados, malvistos, muito mal amados.


Portanto, era agora, era hoje, era daqui a menos de nove horas, que encerraria o seu passado, este seria o último dia do seu passado.


Não partilhou a decisão, quem quereria saber? De resto, que sentido faria partilhar uma tal decisão? Ainda iam dizer que não percebiam o que queria dizer, fazer-se de parvos, na melhor das hipóteses, não perceberiam mesmo o que queria dizer, na pior das hipóteses, iriam retirar importância, alardear que o que ele queria era atenção, mesmo tratando-se dos mesmos que o apelidavam de independente. De facto, não só não fazia nenhum sentido como não lhe passou nem vagamente pela cabeça comunicar a decisão.


As horas iam-se escoando, aproximando o prazo limite, aquela última vigésima quarta hora, o dia do seu passado nunca-mais. Uma ideia parva fê-lo sorrir, a de que muitos haveriam de pensar e até dizer que ele tinha acabado com o futuro. Sempre ignorantes, pouco atentos, sem perceberem que o futuro não é senão acumulação de passado, ninguém, nas suas circunstâncias, decide prescindir do futuro, como pode prescindir-se do que não existe? O sorriso dissipou-se depressa, pois o relógio adiantava-se aos pensamentos, estranhamente ou talvez não, os pensamentos dele eram serenos, decorriam menos rápidos do que a passagem dos ponteiros que espartilham o tempo, essa outra invenção, pensou, ainda, mas sem querer alongar-se.


Recostou-se mais comodamente no cadeirão, estendeu a mão para o lado e pegou no copo, cheio da mistura que tinha preparado escrupulosamente como um cocktail. Antes de o ter levado à boca, o telefone tocou, coisa que já não sucedia há vários dias, como, aliás, era habitual. Noutra altura teria atendido, mas não naquela. Deu uma gargalhada de quem acha graça ao cinismo da vida, tão solícita quando desnecessário, e, deixando o telefone persistir nos gritos, bebeu, lentamente mas com determinação, o seu cocktail mata-passados. Depois, ainda lentamente, fechou os olhos, com um sorriso de alívio. Ou um esgar, como talvez alguém viesse a dizer, ao contemplá-lo na pose derradeira.


Eram vinte para a meia noite. Portanto, tinha cumprido a sua decisão, a sua última decisão, nem outra coisa seria de esperar. O passado acabava de perder o seu poder sobre ele.