segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

EXTRACTO DE UM ROMANCE AINDA SEM TÍTULO

Com a partida da filha, Ema ficou sozinha e deu consigo a sentir o peso duma solidão que nunca pensara reconhecer e, muito menos, a que nunca admitira vir a submeter-se. As costas, outrora direitas, começaram a exibir uma ligeira, quase imperceptível, inclinação para a frente, o que, ao caminhar, lhe orientava os olhos para o chão, como se aí procurasse qualquer coisa perdida ou intrigante – talvez o que fiz com o passado, talvez o que me reserva o futuro, pensava frequentemente, logo ela que sempre estivera habituada a cavalgar o tempo e os acontecimentos e a olhar em frente, seguir adiante de peito aberto, sem se permitir reflexões metafísicas, dúvidas e, muito menos, lamúrias! Nessas alturas, lembrava-se do falecido marido, dos seus ombros curvados, e, num jeito irritado e voluntarioso, endireitava as costas e fixava a linha do horizonte, como quem pretende capturar o mundo e dominá-lo. Porém, as mais das vezes, a frente do mundo devolvia-lhe, feito espelho de cristal, uma face marcada pela inexorabilidade da passagem do tempo, um tempo mal vivido, uma face riscada de pequenas e grandes rugas, um corpo de que a tonicidade se despedira, um corpo que se fechara aos prazeres, uma pessoa que se entregara quase exclusivamente ao trabalho em nome da responsabilidade. Lutava, então, com as lágrimas que não se permitia deixar escapar, mas não lograva abster-se de dizer para dentro de si: Então é isto, foi nisto que me tornei, mesmo sem me dar conta! Que faço agora, que poderei fazer com isto? Imperceptivelmente, as costas voltavam a ceder, os olhos voltavam a cair ao chão e, ao aperceber-se, dava fim às reflexões com uma explosão irada: Que se foda! – vociferava para dentro de si, ela que não tinha por hábito dizer palavrões.

Chegada a casa, tomava um duche rápido, preparava um pequeno snack que colocava num tabuleiro e enroscava-se no seu canto do sofá, em frente à televisão, sintonizada num canal de séries policiais ou de filmes. Interrompia a visualização para falar a um dos filhos ou a ambos, mas ou tinham os telemóveis ocupados ou estavam eles próprios ocupados com diversos afazeres, de modo que as conversas, a existirem, eram breves e de parco conteúdo. Se fosse com o pai, haviam de ter longas conversas e prodigalizar carinhos, tão íntimos eram entre eles; comigo nunca foi assim, nunca pude estar tão presente e, de resto, nunca fui dada a manifestações exteriores de afecto; não significa que não gostasse deles, mas talvez o não tenham compreendido. O facto é que nunca me perdoaram a morte do pai, como se tivesse sido eu a matá-lo! Vá-se lá entender esta vida?! – assim dialogava consigo própria, em jeito de sobremesa do seu frugal snack e do inêxito das chamadas telefónicas ou da sua mera tentativa. E sentia um peso, aquele peso, como se a casa ameaçasse despenhar-se-lhe em cima e ela não pudesse fugir, à semelhança do que acontece nos sonhos em que ficamos paralisados quando, bem lá no fundo, sabemos que, para escapar, nos bastaria mexer as pernas, só que não conseguimos. Aqui chegada, pensava: Mas é claro que sou capaz, também não sou assim tão velha e, bem vistas as coisas, nunca dependi de ninguém. Estou em baixo de forma, é certo, coisa que nunca admiti poder vir a suceder-me, mas posso por-me de pé, é questão de querer, de ter força para querer! Um princípio de sorriso começava a desenhar-se-lhe no rosto cansado, desenrolava o corpo daquela espécie de ninho em que o colocara, punha-se de pé, ia até à janela, afastava a cortina e olhava para o jardim. Perdia-se uns momentos, que podiam ser de maior ou menor duração, a pensar em como revitalizar-se: pintar o cabelo, massajar o rosto com bons produtos, fazer ginástica ou natação, frequentar locais onde pudesse encontrar pessoas interessantes. As ideias surgiam-lhe em catadupa, acumulavam-se numa abundância tal que, ao fim de um tempo, já não pesavam cada uma de per si mas como um todo e aquele todo deixava de ser um leque de hipóteses aliciantes para se transmudar numa amálgama de trabalhos forçados e, quando dava por ela, os seus olhos já não pairavam nas cores vibrantes do jardim, mas no cinzento do peitoril da janela, porque as suas costas haviam voltado a descair, a ceder. Ocasionalmente, uma lágrima rolava, a segunda era mais difícil, que, ao menos para aquilo, ainda tinha um pouco de força de vontade, a necessária para impedir as lágrimas de se soltarem. E já não era apenas o peso da casa vazia a abater-se sobre si, mas o peso dos seus pensamentos, se é que não era este a criar-lhe a ilusão do peso da casa.

Certo dia, ao fim de muitos dias, ao longo de muitos meses, daquela rotina, aninhada no seu canto de sofá, teve a lucidez de reconhecer, talvez com a ajuda dos conhecimentos e experiência da sua profissão, aquilo que insistira em negar durante tanto tempo: aqui cheguei, eu, tão senhora de mim, estou com uma monumental depressão, impõe-se que me trate! Permaneceu encolhida, sem se esforçar por endireitar as costas, decidida a empenhar todas as suas forças – que havia de desencantar dentro de si, por mais que lhe custasse – para se tratar. Que se lixem as costas e as rugas e a flacidez e a puta que as pariu, tenho é de tratar do que se partiu cá dentro e já não é sem tempo, reflectiu.

Então, com a exaustão de que o seu corpo estava tomado – porque não podia deixar de assim estar –, fez o esforço de se levantar e ir buscar o telemóvel, que esquecera dentro da carteira. Pelo caminho, sentou-se numa cadeira, endireitando as costas contra o espaldar, procurou nos contactos e marcou um número, o número dele. Sem grandes preâmbulos ou justificações, pediu-lhe que lhe indicasse um bom psiquiatra. É certo que podia ter esperado pelo dia seguinte, em que o procuraria no hospital, no departamento de Hematologia, mas, desde a história amorosa que ambos tinham cessado aquando da morte do Luís e dos atinentes mexericos, que, não obstante a sua discrição, se tinham gerado, faziam todos os possíveis por se evitar, tendo ela, inclusivamente, a seu pedido, mudado para outro serviço. Aliás, há decisões que correm o risco de não vir a ser postas em prática caso sejam adiadas e ela não queria adiar aquela decisão, a de se tratar e de, para isso, escolher com critério um profissional a quem, por certo, iria ter de confiar a sua vida interior, os mais íntimos recantos da sua vida interior, detalhes recônditos do seu pensamento e emoções. Não pretendia acabar como uma falhada e, para ela, apesar de bem saber que a depressão é uma doença grave, não conseguia afastar a ideia de que acabar deprimida representava um falhanço – tal é o peso da sociedade e dos seus preconceitos, mesmo sobre pessoas de índole racional e bem informadas. Então, deu consigo a pensar em como tinha sido bem pouco compreensiva com o marido e que talvez os filhos tivessem alguma razão em lhe imputarem a responsabilidade pela morte dele. Mas – contrapôs –, como pode uma pessoa ser responsabilizada por algo que não controla e muito menos pretende ou sequer deseja?! E depois, em jeito de aligeirar: Não te trates, não, Ema, e vais ver como elas mordem

A princípio, ele revelou-se surpreendido, quase desconcertado, com o telefonema, mas rapidamente mostrou interesse em saber notícias dela, forneceu-lhe o contacto de um psiquiatra que reputava de muito competente – «Ao menos, não acumula casos de suicídio de pacientes na carreira», disse, em jeito de humor negro, fazendo-a sorrir e responder, «Pois, é isso que se pretende e não uma ajuda ao suicídio ou reforço para abraçar a eutanásia».

Após uns minutos de conversa, ele propôs-lhe que se encontrassem para jantar. Apanhada de surpresa e frágil como se sentia, não encontrou um jeito imediato de aceitar, mas ele não estava disposto a desistir, pelo que, entendendo a sua atrapalhação, acabou por propor: «Ema, pensa no assunto e diz-me qualquer coisa, mas fico à espera de um sim. Afinal, parece-me que merecemos uma segunda oportunidade.» Despediu-se, de seguida, enviando um beijo, que ela, com a boca seca, retribuiu em surdina.