quinta-feira, 15 de setembro de 2022

DA LEITURA À GUERRA NA UCRÂNIA

 
OU
De Irmãos Inesperados a Assassinos de Irmãos

A leitura tem sido uma das mais gratas companhias na minha vida. Para além do conhecimento e da evasão que proporciona, o que mais prezo nela é o diálogo que permite estabelecer com o pensamento e a emoção vertidas pelo Autor, através das palavras, diálogo esse, feito de identificação, contraponto, espanto, reconhecimento, interrogação, resposta, dúvida e muito mais.
 
Certos autores afirmam que o livro, uma vez dado a público, deixa de lhes pertencer, passando a ser pertença dos leitores. Chegam alguns a  propor que, daí em diante, o verdadeiro escritor é o leitor e não eles. Obviamente, não acredito, levo este tipo de asserção à conta de modéstia (falsa modéstia?) ou provocação (benigna), mas, ultrapassada a letra, creio entender o que pretendem significar: referem-se, por certo, àquela espécie de troca/identificação mental e emocional que a leitura (certas leituras) proporciona ao leitor (empenhado, atento e ávido dessa transacção, por vezes, mesmo, simbiose), tornando-o parte daquele diálogo com o escritor, ou melhor, com a entidade, liberta da pessoa real do escritor, que subsiste dele ou para além dele, nas ideias e emoções que entregou ao livro.

Exemplifico: acabo de ler o livro IRMÃOS INESPERADOS, de Amin Maalouf, distopia com ponto de partida num cenário em que o mundo está à beira da guerra nuclear (obviamente devida à loucura dos homens...), quando a intervenção de um povo superior (para o chamar de alguma maneira) vem sustar tão medonho risco, criando, em contrapartida, uma série de eventos assustadores (eles próprios, a princípio, tomados como manifestações iniciais da receada catástrofe nuclear), povo esse que tem o poder de curar as doenças e evitar a morte.

Este o contexto em que se esgrime uma reflexão sobre o estádio a que a humanidade chegou, a especulação sobre a origem, a sede e as intenções ocultas do povo superior (salvador), o papel que a morte (o medo da morte) desempenha na própria definição/comportamento da natureza humana (tal como a conhecemos e se comporta), e, em contrapartida, sobre o peso (bem maior) que a morte representa no povo superior, nos (raros) casos em que a não pode evitar.

Sob o ponto de vista dos humanos, essa reflexão parte de uma divisão fulcral: entre os que vêem com esperança a presença/intervenção salvadora do povo superior, que apoiam, e aqueles que a repudiam; o antagonismo de posições radica no facto de os primeiros considerarem que a espécie humana, por si, é irrecuperável, só podendo ser salva (de si própria...) mediante uma intervenção controladora externa (a salvação pressupõe controlo), enquanto os outros partem do princípio de que essa intervenção (porque necessariamente controladora) implicando a  humilhação da espécie humana, equivale ao seu banimento enquanto tal (ou seja, como até agora a conhecíamos, enquanto um todo poderoso e dominador, nomeadamente das restantes espécies).

No duro momento que atravessamos – em que, ainda nem sequer saídos da inédita pandemia do novo coronavirus, com todos os seus efeitos, directos e indirectos, na saúde e na vida de milhões de seres humanos e no panorama económico e social mundial, nos deparamos perante uma avassaladora e cruel guerra (não o são todas?), infligida por um oligarca psicopata (Putin) a um país vizinho (Ucrânia), em condições de falta de justificação e brutalidade (mas assim são as leis da força, infundadas e brutais), em grau apenas igualado pelo nível de bravura dos agredidos e resistentes —, não podemos deixar de ponderar a questão da natureza humana, essa imperfeita natureza, que tanto é capaz da barbaridade mais pre-histórica como da heroicidade e solidariedade mais puras. No seu conjunto, qual a evolução desta espécie, para que lado pende o balanço da sua ambivalência ou bipolaridade, o seu destino é subsistir, autodestruir-se ou ser destruída?  E, neste último caso – e seguindo a linha reflexiva da ficção –, poderá a destruição ocorrer por via da (hipotética) dominação benigna (?) de entidade terceira, (um povo enigmático, talvez paralelo) que nos observa e está pronto a actuar para evitar a nossa loucura?

Estas são questões que já alimentavam o meu pensamento (a minha incurável inquietação) e lamento afirmar que – naquilo que muitos considerarão pessimismo, mas reputo de simples realismo –, tendo a considerar que a redenção está na extinção da espécie humana.
  
Na verdade, não creio que tenha conserto, isto é, que seja passível de encontrar um equilíbrio positivo, versus tensão permanente, entre o bem e o mal, as duas faces de que padece o mundo, porque são a base da sua concepção ou mero surgimento!

Também não acredito em entidades redentoras, basta atentar na base de toda a, todavia maravilhosa, Natureza, a do verso e do reverso, do bem e do mal, da felicidade de uns ser a desgraça dos outros. Até as plantas servem de alimento aos animais e estes de alimento uns aos outros e todos de alimento aos homens e estes – pasme-se! – de alimento uns aos outros…

É neste momento histórico que me calha este livro! E mergulho na aludida identidade temática/reflexiva, por via da identificação com a personagem Ève, que não lamenta, antes celebra, a possibilidade de a humanidade ser destronada pelo povo superior: Os amigos de Empédocles avançam sempre, sem se envolver nas nossas querelas, sem se deixarem distrair com as nossas crenças estúpidas. E encontram-se hoje muito à nossa frente, em todos os domínios do conhecimento, e também na arte da felicidade… É a eles que quero beber! (cfr. p.68)

Em contrapartida, o personagem Alec Zander (pseudónimo do protagonista narrador Alexander) é bem outra: … supondo que os “compatriotas” de Agamémnon e Demóstenes são realmente o que parecem ser, tão omnipotentes, tão perfeitos, uma humanidade nitidamente superior, o que é que nós, eu e os meus semelhantes, nos iríamos tornar? … Uma espécie inferior, um esboço final de criação sobre o qual os arqueólogos, paleontólogos e pesquisadores de exotismos se debruçarão amanhã?… Temos os nossos defeitos, dizia para mim mesmo, somos até muitas vezes insuportáveis, criminosos e bárbaros. Mas somos nós! (cfr. mesma página)

Para mim, estes pensamentos – a reflexão de que emergem e que suscitam –, revelam-se da mais acutilante realidade, particularmente, no triste e penoso momento que vivemos, mas que, por outro lado, não passa do simples momento que somos!

E, repito, estou do lado de Ève, assim: Ève dá a impressão de ter sido despertada de repente a meio do mais belo sonho. Ela admite-o, aliás. “O que está a acontecer há três semanas é o que venho pedindo desde a infância, sem ousar acreditar. Que uma força, surgida sabe-se lá de onde, declarasse os homens incompetentes e os pusesse sob tutela; que lhes confiscasse as bombas, os mísseis, as bases militares, os palácios, as prisões, as fábricas de gás, os laboratórios, os matadouros… E, de súbito, quando já nada esperava, o meu sonho tornou-se realidade!”  (cfr. pp. 194/195)

A julgar por Ève, o que se desenrola à frente dos nossos olhos é nada mais, nada menos que a agonia do velho mundo, isto é, do mundo tal como o conhecemos. O seu desaparecimento afigura-se-lhe tão inelutável que já fala dele como se se tratasse de um facto estabelecido.
“Os historiadores que se debruçarem amanhã sobre a nossa civilização dirão que estava tão corroída que bastou um piparote para que se afundasse. O golpe de misericórdia veio de onde nunca se esperara, mas acabaria por chegar, em breve, de uma forma ou de outra. Tínhamos inventado armas mortais que haviam acabado por se voltar contra nós. Nesta mesma noite, uma máquina infernal — nuclear, bacteriológica ou química — podia ter explodido numa grande cidade, matando dezenas de milhares de pessoas e causando pânico global. Com alguma sorte, poderíamos adiar o desastre por mais um ano, dois anos, cinco anos… Mas tê-lo-íamos evitado indefinidamente? Certamente que não. Os ódios apenas aumentaram, e a tecnologia preparava para eles — umas vezes com conhecimento de causa, outras com perfeita inocência — os instrumentos que lhes permitiriam desencadear-se e destruir tudo. Qual a probabilidade de escaparmos de um cataclismo? Nenhuma. Foi por isso que os nossos contemporâneos se agarraram desta maneira aos seus salvadores inesperados.”
“E achas mesmo que todas essas pessoas que se estão a manifestar fazem a mesma análise que tu?”, perguntei-lhe eu.
“Talvez não usem o mesmo vocabulário, mas estão todas com o mesmo estado de espírito, causado pela mesma realidade calamitosa e pelos mesmos medos.”
Em resposta, limitei-me a franzir os lábios enigmaticamente. Não consigo dizer se a minha vizinha romancista está a ver bem a coisa ou se está enganada. É verdade que às vezes tem tendência para se entusiasmar, mas aprendi a nunca aceitar as suas “iluminações” de ânimo leve. (Cfr. pp. 214/215)

Nota: Este texto foi escrito há uns meses. Infelizmente, não perdeu actualidade.