domingo, 6 de dezembro de 2020

MENINA PARADA NAS ESCADAS


estava uma menina parada, imóvel, em equilíbrio eterno...

a menina está parada, absolutamente imóvel, nos degraus da mínima loja da menina judite – esta já nada tem de menina, cabelos brancos apanhados atrás e óculos de vidros grossos de ver o mundo a medo; vende, a par de não sei que mais, uns rebuçados feitos em casa, de chocolate aguado, cúbicos, embrulhados em papel vegetal branco, ainda não existe a asae, nem tão pouco se imagina que possa vir a existir
a menina parada tem duas tranças de cabelo castanho, a aclarar nas pontas aprisionadas por laços de seda ou de cetim coloridos, os braços enlaçados sobre o estômago, uma camisola de lã e uma saia de tecido grosso, talvez de lã, desenhada em xadrez de tons predominantemente castanhos, tudo a indicar outono
a saia é elemento deveras importante, a menina está vaidosa da sua saia, desdobrada em pregas, ligeiramente mais curta na parte da frente, só aparência, apenas porque a menina empinou um pouco a barriga para a frente
os olhos da menina são castanhos, como o cabelo e o xadrez da saia, e desenham-se em bico, esticados nos lados, qual chinesinha. estão colados na distância do céu imenso, nas nuvens escuras semeadas no cinzento lá de cima, talvez mais logo venham a despenhar-se em fitas aquáticas, mas, por agora, permanecem fixas, como fixos se imobilizam os olhos, a saia, os braços da menina e esta própria
está parada, os pés nas escadas, as mãos no estômago, a saia ao redor das pernas, os olhos no céu
a menina está vaidosa da sua saia, talvez se tenha detido para poder ser observada, admirada, há de ser saia nova, todavia entregou os olhos ao longe, em reflexão profunda
a menina reflecte muito, agora será no mistério do céu e da sua água armazenada em barrigas ambulantes, chamadas nuvens, ou será em mistérios outros, quem sabe se o sentido daquela incomensurável lonjura do para lá daquele tecto cinzento, quem sabe se a simples beleza da estação anunciada…
assuntos tão importantes como a sua saia nova
a menina é reflexiva e vaidosa, tão uma quanto outra
há lugar para muitas caixas na cabeça da menina
em que pensará a menina para além da beleza da sua saia nova?

👤

Ignoro se acontece a outras pessoas, mas eu, mais do que recordar episódios da infância, visualizo imagens fixas, contadoras de histórias que nem sempre entendo, como a imagem acima, de uma menina, eu, com sete ou oito anos, parada numas escadas, em pose de mostrar saia nova e olhos pregados no céu de nuvens em misteriosa (ou encantada?) cogitação
gosto da menina presa naquela imagem e adorava poder resgatar o seu pensamento/sentimento...




segunda-feira, 23 de novembro de 2020

PÓ DAS ESTRELAS


lembro-me que estava escuro, talvez noite ou zona crepuscular, e, de dentro do quarto, através da nesga incerta das cortinas mal fechadas, fui surpreendida por uma incandescência deveras estranha, luz fortíssima, vinda do céu em movimento vertical, para cá e para lá, como se empenhada em varrer aquele negrume
desenhava um círculo redondo, possível base de cilindro, assim uma luz gorda, intensa, muito amarelo-dourada, contendo ameaça de calor, e não se fixava, percorria o horizonte celeste do lado de fora da janela, de um lado para o outro
provinha de um objecto voador de corpo arredondado e cheio, que se movia como um avião, mas não parecia ser um avião
eu assistia àquela visão com um misto de fascínio e terror, pela força do brilho, o inusitado do objecto e, mais, do conjunto formado por ambos
surgiu, então, por detrás do objecto-voador-não-se-sabia-qual, outro objecto voador, este mais conforme ao formato de avião, embora parecesse um helicóptero incorporado numa estrutura um pouco mais comprida e de asas mais próprias de avião, aparentando um aparelho militar
o meu espanto e medo exponenciaram-se, aquilo parecia episódio de uma guerra de mundos, o meu e outros, quem sabe se protagonizada por seres desconhecidos, talvez de outra galáxia
mal tive tempo de dar largas ao espanto e nem sequer de formular perguntas – aliás, que perguntas, se nem um mínimo estava esclarecido?! –, comecei a ouvir um som de altifalante, proveniente da altura daqueles aparelhos e com todo o ar de comunicado marcial
a princípio, não percebi a mensagem daquela voz – ou vozes, mais pareciam vozes, como se um coro de imposições –, apenas que falavam em turco, língua para mim desconhecida, o que me induziu a pensar que o comunicado era dirigido a eventuais residentes turcos no país
depois, a voz (ou vozes) passou a expressar-se na minha própria língua e anunciava: "um terrível e indomável incêndio devastou istambul, alastrando, agora, por toda a turquia, de onde se dirige para espanha; prevê-se que, de seguida, atinja lisboa, portugal"
eu habitava lisboa, portugal
o movimento aéreo aumentou substancialmente, o objecto-voador-não-se-sabia-qual continuava a jorrar sua luz intensa e circular, que ameaçava queimar-me os olhos vigilantes por trás das cortinas mal fechadas (não batiam uma na outra, qual se num dos lados ou nos dois minguasse uma tira de tecido); curiosamente, não conseguia desviar os olhos da luz, como se para ela fosse atraída por inversa lei da gravidade, mas franzia-os, a fim de os proteger daquela ameaça de fogo)
também a espécie de helicóptero/avião; agora, não um mas vários, voando de um lado para o outro, numa azáfama de urgência e prevenção, acrescentavam à mensagem do fogo a chegar um alerta: "mantenham-se em casa, janelas e portas fechadas, estão em curso trabalhos destinados a sustar o fogo, se vier, quando vier, que é o esperado"
divisava-se já uma neblina cinzenta, fumo vindo de céus outros, e cheiro a queimado
interroguei-me se, no seu caminho de caprichosa geografia – directo da turquia para espanha?! –, o fogo teria passado por paris, frança
é que os meus pais encontravam-se em paris, assunto de um congresso ou algo do género
troquei impressões com a avó e outros familiares, entretanto chegados ao quarto, partilhei a preocupação sobre os pais, que era um mais em relação à treva que já tomava conta do céu
e a notícia, largada dos altifalantes lá de cima: "o fogo acaba de devastar paris"
a minha angústia, uma aflição de que apenas guardo memória enquanto tal, não tanto se chorei ou gritei ou torci as mãos
os helicópteros/aviões/militares – já não cabia dúvida, no meio de toda a estranheza por esclarecer, de que se tratava de uma operação militar – desdobravam-se em actividade frenética, transportando materiais semelhantes a toros de madeira, que faziam descer com a ajuda de cordas
adiante da minha janela alta de vários andares havia um rio ou riacho (não era muito largo), em cujas margens vários homens trabalhavam afanosamente no que parecia ser a construção de uma barreira
aí eram despejados os enormes toros de madeira, verdadeiros troncos de árvores
numa das descargas, um dos toros atingiu um magote de trabalhadores, alguém alertou e, como ninguém parecesse dar atenção, essa pessoa, uma mulher, avisou que um deles estava morto e, para o demonstrar, pegou-lhe na ponta de um pé, levantando-lhe a perna e largando-a, de seguida, ao que tombou como se pertença de boneco de trapos
aí, sim, ficou claro o acidente e a sua funesta consequência
entretanto, eu, a avó e as outras pessoas – duas, três, uma delas o meu irmão? –, começámos a andar pela casa e, vá-se lá saber porquê, em menos de nada, estávamos fora da porta
ansiosa, pedi aos outros que voltassem a entrar, que atendessem aos avisos de que deveriam manter-se dentro de casa, de portas trancadas, mas a avó disse: "tenho de ir ao fundo das escadas buscar algo que, inadvertidamente, deixei cair"
explicou tratar-se de um embrulho com as jóias de sua filha – minha mãe –, que havia recolhido por precaução, para o caso de ser necessário fugir
mas fugir como, para onde, se a ameaça paira no ar – aliás, veio do ar! – e as ordens são para permanecer em casa e não sair?!, perguntei a mim mesma, tão perplexa quanto angustiada, enquanto avistava, lá em baixo, bem ao fundo das escadas, um embrulho de pano enrolado
eventualmente, acordei
💥
decorridos uns dias, fiquei a saber que, naquela noite, uma bola de fogo em tons de azul esverdeado tinha cruzado os céus da andaluzia, espanha, e desaparecido algures sobre o alentejo, portugal
se bem que a outra luz, a que eu própria presenciara nessa mesma noite, fosse de um amarelo intenso, não consegui deixar de pensar se, de alguma maneira, não se tratava da mesma luz...
e concluí: ele tem razão, não passamos de "pó  das estrelas com vida..."

"Somos pó das estrelas com vida, dotado pelo Universo com o poder de decidir o que fazer – e só agora começámos."
in, ASTROFÍSICA PARA GENTE COM PRESSA
Neil deGrasse Tyson  





quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O MENINO QUE PERDEU AS BOTAS

certo dia, um menino, aproveitando a distracção do pai, com quem passeava à beira do paredão, correu com quantas pernas tinha e só parou bem lá ao fundo, onde já não podia ser alcançado pelo olhar daquele, perdido que ficara à conversa com uns amigos
ficou a observar o horizonte, muito ao longe, mal adivinhado, devido à espessa cortina de névoa que tornava a paisagem translúcida
deixou-se fascinar pelo imenso manto ondulante por sobre o chão, que brilhava aqui e ali, tal qual respingos de diamante ou de simples zircão
Invadido por tanto de fascínio quanto de curiosidade pelo que suspeitava esconder-se mais além, esqueceu-se de pensar ou sequer de recordar as costumeiras advertências dos pais e descalçou as botas e as meias, colocando estas dentro daquelas e ambas sobre o paredão
descendo a rampa, logo sentiu os pés afundarem-se em areia, agora dourada à proximidade do olhar, experimentando uma engraçada sensação de cócegas que o fez sorrir
caminhou, caminhou e, à medida que avançava, começou a ouvir um murmúrio, logo transformado em rugido, e a sentir sobre a pele e os cabelos uma humidade, logo transformada em gotas de água
pensou que alguém o recebia com brincadeiras malandras e prosseguiu, animado com a perspectiva de descobrir quem seria, ao mesmo tempo que o seu sorriso se ampliou de contentamento
logo a seguir, assustou-se, porque um pé se lhe afundou na areia e, de desequilíbrio em desequilíbrio, viu-se empurrado a mergulhar de cabeça numa superfície fria e molhada 
e, sem ter tempo para se levantar, levou com o que lhe pareceu ser um grande balde de água fria pela cabeça abaixo, que o voltou a amarrar ao chão, deixando-o, por momentos, impossibilitado de respirar, para, de imediato, se lhe dissolver em cima numa espécie de efervescência
o certo é que a névoa estava cada vez mais densa e o menino não conseguia ver bem o que se passava, mas, por essa altura, podia concluir que se tratava de água, uma água barulhenta e borbulhante, que tirara o dia para se meter com ele (ou assim parecia)
já com o sorriso um pouco apagado, pois se sentia deveras a congelar, decidiu, contudo, prosseguir e indagar quem poderia estar para além daquela névoa cada vez mais cinzenta a pregar-lhe semelhante partida – sim, agora já pensava em partida e não em mera brincadeira
equilibrou-se como pôde e continuou, mas logo sentiu um braço forte puxá-lo para dentro-não-sabia-de-quê com muita força e, mesmo – pareceu-lhe – certa dose de violência
conforme pôde, lá conseguiu manter a cabeça de fora e esbracejar, apesar do que não alcançou a saída daquele não-sabia-o-quê 
foi, então, que ouviu um riso vindo bem lá do fundo e a voz desse riso perguntou-lhe, obviamente divertida: "que fazes aqui, rapazinho?" e ele, que não via ninguém e procurava respirar a custo, disse: "onde estás e quem és?" "eu sou o mar e estou à tua volta, mas não respondeste à minha pergunta" "Ah! – gaguejou o menino, aflito com a água que o rodeava e lhe sabia a sal – chamo-me manel e, e  e vim para desvendar o que a névoa esconde, mas, mas..." e não terminou a frase, porque já um jacto de água lhe entrava pela boca e nariz adentro, enquanto um braço poderoso o arrastava para dentro do agora-já-fazia-uma-ideia-de-quê
foi ao fundo daquela barriga imensa e, para seu enorme espanto, deixou de sentir quer o frio quer a aflição por respirar
em vez disso, deu consigo a oscilar, com ligeiros movimentos de pernas e braços, enquanto, de olhos muitíssimo abertos, contemplava, deslumbrado, um mundo maravilhosamente colorido por toda a sorte de plantas e animais, que nunca havia visto ou sonhara ver (descontados alguns, poucos, conhecidos dos livros)
entabulou conversa com vários desses seres misteriosos e, em particular, com um, de belíssima e transparente figura, que lhe disse chamar-se cavalo marinho, lhe explicou que mundo era aquele e lhe perguntou a que mundo pertencia
o menino explicou-lhe que pertencia à terra e que tinha ido à descoberta do mais-além-da-névoa, que estava muito feliz por o ter conhecido, a ele e aos outros fascinantes seres, mas que não podia ficar ali para sempre, embora ignorando como havia de regressar ao seu mundo...
prontamente, o cavalo marinho disse, "eu levo-te" e, sem esperar resposta ou agradecimento, aumentou de tamanho até se tornar o dobro do menino e mandou-o saltar-lhe para o dorso e agarrar-se a ele, o que o menino, mudo de deslumbramento, cumpriu, mal conseguindo articular um "obrigado"
e começava, fascinado, a viagem de regresso, por novas e fantásticas paragens que o cavalo marinho decidira mostrar-lhe, quando...
– manel, o que fazes aí deitado na areia, com o mar quase a chegar-te aos pés? mexe-te, temos de regressar a casa, já é tarde e está a refrescar muito, ainda te constipas!
dizia-lhe o pai, abanando-lhe um ombro, ao aperceber-se de que ele dormitava.
ao fim de uns momentos, o menino, atarantado e a contragosto, levantou-se e disse:
– ora, pai, logo agora que o cavalo marinho...
mas a sua frase – e, pior, a sua viagem – perdeu-se, porque o pai, já a ficar mais zangado do que impaciente, lhe perguntava:
– e as botas, manel, onde estão as tuas botas e, já agora, as meias?




Nota: este história surgiu-me de um par de botas infantis, com as meias dentro, com que me deparei sobre o paredão da Praia Grande, momento que registei na fotografia supra.


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

EM MEMÓRIA DE UM CIDADÃO DESCONHECIDO


Nota prévia: este post é inspirado num caso verídico. Infelizmente...

O pai, octogenário, telefona, a perguntar se sabe notícias do irmão. A sua voz, frágil e agitada, revela a preocupação e ansiedade de quem, há vários dias, exactamente três, tenta contactar o filho, sem êxito.

Responde-lhe que não e, logo de seguida, liga para o telemóvel do irmão. Também sem êxito.

Já tomada de uma inquietação premonitória, dirige-se, sem demora, a casa dele. Ninguém acode ao toque da campainha. Por sorte – e há sortes que mais parecem azares! –, um morador acaba de estacionar e dirige-se para a entrada do prédio. A medo, mas não sabendo que mais fazer, ela dirige-se-lhe e pergunta-lhe se conhece o António, seu irmão, e se o tem visto ou sabe o que... 

Não, não consegue acabar a frase, é interrompida pela resposta brutal (porque lhe soa brutal) do interpelado: "O António!? O António morreu no sábado passado, mesmo aqui à porta. Caiu para o lado e já não se levantou. O INEM levou o corpo, mas já nada havia a fazer!"

Ela, tomada por um espanto situado para além da dúvida e do terror, fraqueja sobre os joelhos, ameaçando desmoronar-se, os olhos muito abertos, secos, ainda, os lábios trementes, incapazes de formular o pedido, diga-me que é mentira, que não está a falar do António, o meu irmão António...

Só então o mensageiro se apercebe de não estar perante uma simples vizinha ou conhecida, de que os une – unia –, a ela e ao António, uma relação de fraternidade que só podia ser profunda; consciente da sua falta de tacto, recrimina-se, em silêncio, para dentro de si, um silêncio que interrompe para lhe perguntar, desajeitado, as coisas que se impõem, enquanto lhe estende a mão, num amparo que já vem tarde e, aliás, de nada serve, porque de nada poderia servir.

Reequilibrada nas pernas ainda bambas, recolhidas as forças restantes e as parcas informações complementares, ela afasta-se aos tombos, não literalmente, que as tempestades da cabeça e do coração nem sempre têm expressão corporal, entra no carro, arranca incerta, sem saber bem o que fazer, por onde começar, enquanto pela cabeça lhe passa uma variedade de imagens e pelo coração uma cavalgada de sentimentos: como se num relâmpago ardente, vê o irmão, vê-se a ela e ao irmão, crianças, adolescentes, não necessariamente por esta ordem, os pais, ai os pais, como poderá dar uma notícia assim aos pais?, porque tem uma pessoa de viver para além dos oitenta anos para assistir a uma coisa assim, a morte de um filho!?, mas estará morto, será mesmo verdade?, não terá o vizinho trocado as identidades?, vê-lo, precisa de o ver, obter uma certeza, melhor, um desmentido, não pode ser, vai-se a ver daqui a nada passa o susto, é só reunir a coragem para o ver, mas onde?, na morgue, numa mesa fria, de metal cortante de tão frio, não, não pode ser, não pode ser ele, o António não, não, não.

E dá consigo parada num semáforo, com as mãos cravadas no volante, os braços a tremer, a boca aberta num grito que depressa é choro e baba e ranho e saca do telemóvel, marca o número dele, do António, sabe que ele vai atender, um, dois, três toques, mais, até que surge a gravação a remeter para a caixa de mensagens. Salta no assento, a buzinaria à sua volta é ensurdecedora, o sinal está outra vez vermelho e os condutores de trás, furiosos, proferem impropérios, chamam-lhe nomes, e ela avança e quase bate no carro que se lhe atravessa à frente, confiante na prioridade ditada pelo verde do seu sinal. Trava bruscamente. As buzinadelas recomeçam pouco depois, caiu o verde, já pode avançar. Para mais à frente, apenas o tempo necessário para se recompor. Pensa no pior e no melhor e o melhor é que tudo pode não passar de um erro, de uma grosseira confusão de identidades, afinal, pensa, ficou tão aturdida que não atendeu bem ao que o vizinho do António disse, não se certificou de que ele soubesse bem quem era o António, mas, ao mesmo tempo, não acredita nesta crença mágica e sabe que só há uma maneira de confirmar.

Já no departamento da polícia, pede para falar com o chefe. Indicam-lhe que espere. Aproveita para tentar por a cabeça em ordem, e o telemóvel toca, atende, não atende?, não atende, é a mãe, desta vez é a mãe, octogenária, não tem condições para lhe dizer, não enquanto não obtiver a prova, a prova de que não se trata do António e, mesmo depois, como posso dar-lhes a notícia, interroga-se, num novelo de contradição e angústia, o estômago a chegar à boca.

Decorre meia hora. A angústia, a ansiedade, o desnorte, o esforço de compostura e muito mais elevam-se numa multiplicação alucinante, muito para além das regras da matemática.

O chefe acaba por chegar e, pela sua boca, a informação, inesperada, surrealista, assustadora: "O corpo está na morgue, onde aguarda cremação"! Seguem-se as informações complementares, por exemplo, que sim, que lhe encontraram a carteira e o telemóvel, mas não, não atenderam as inúmeras chamadas de familiares e amigos que, entre aquele fatídico dia e este, quatro dias depois, soaram desesperadamente à sua procura. E não, não é adiantada qualquer explicação lógica para o facto de a autoridade não ter diligenciado contactar qualquer familiar ou amigo e ter destinado o que restou daquele ser humano à cremação!

(Digo eu que não é adiantada, porque não pode haver, simplesmente não pode haver explicação lógica!)

Inexiste grau de estupefacção e de revolta susceptível de quantificar a estupefacção e a revolta que se apoderam dela! Então é assim, encontra-se um morto na via pública, tombado à porta de casa, um cidadão na posse dos seus direitos e do seu telemóvel e da sua carteira e das suas impressões digitais e do seu número de contribuinte e de cidadão, e não se procura a família ou os amigos ou, no limite, algum conhecido!? Espera-se que apareçam por milagre ou, quem sabe?, que não apareçam, e, decorridos nem quatro dias, decide-se-lhe o futuro dos restos, para mais, um futuro de não deixar rasto!?

O espanto e revolta só podem elevar-se ao patamar da dor e do sentimento da absoluta necessidade de exigir responsabilização!

Afinal, por um sinistro jogo de absurdo, esteve à beira de não conseguir resgatar o corpo, ou seja, de não poder comprovar que – bem contra a intensidade do desejo contido na sua esperança mágica – fora mesmo o António, o seu querido António, que num soalheiro dia de Outono, em plena pandemia de Covid-19, mas por uma qualquer razão estranha a esta, tinha partido deste mundo sem poder despedir-se. E isto é dizer que esteve a um mínimo passo de lhe ter sido negado despedir-se dele e dar à sua matéria remanescente um destino conforme às suas crenças. Ela, seus pais octogenários, demais familiares e amigos. Não é coisa pouca! E assusta!






segunda-feira, 19 de outubro de 2020

ANTÓNIA GOSTA, A DITADORA ENCAPOTADA!

A D. Antónia Gosta é governante numa casa pequena mas confusa, onde habitam pessoas de todas as idades, mas, vá-se lá saber porquê!, teima em considerá-las e tratá-las todas como crianças.

De um modo geral, ostenta uma face bonacheirona, espalha optimismo e parece que está sempre a rir – vá-se lá saber porquê! –, mas, quando lhe dão os azeites – passe a foleirice da expressão –, não é para brincadeiras. Certa vez, inclusive, os seus ajudantes tiveram de a afastar dum velho que teimava em arremessar-lhe um boato, apesar da sua insistência no respetivo desmentido. Ora, por muita razão que tivesse, não foi bonito ou, sequer, justificado, quanto mais não fosse, pela idade do boateiro e, vá lá!, por lhe caber (à D. Antónia) a responsabilidade de se comportar à altura de uma governante que se preze.

Não valeria a pena repisar neste episódio de má memória, não fosse ele próprio (já) revelador de certos tiques, que, apesar de manter disfarçados sob a imagem de bonomia, reforçada pela fofura do corpinho anafado, aí começaram a revelar-se ou a confirmar-se (no caso de pessoas mais atentas ou informadas).

Refiro-me a tiques de, como dizer?, de ditadora, pessoa que quer os seus governados – esses que, como acima se disse, trata indiscriminadamente como se fossem todos criancinhas... estúpidas ou, no mínimo, parvinhas – muito bem adestrados e não hesita em recorrer a todos os meios para o conseguir.

Vai daí, há uns meses, quando, devido à palermia do Covid-19, as coisas se complicaram e teve de os mandar adoptar cautelas especiais, muito especiais, por exemplo, ficarem em casa, pretendeu que cumprissem sem objecções. Mas, sejamos justos, como eles acataram sem problemas, desatou a elogiá-los para além da conta, numa demonstração estratégica de reconhecimento, amor e apreço pelo próximo, destinada a que eles, pobres crianças, a tomassem como boa e certa e a que tal não pudesse deixar de relevar quando das próximas sondagens e eleições – sim, porque, na sua casa, as governantes são escolhidas por essas vias, embora nem sempre o cargo seja atribuído a quem recolheu mais votos, visto haver outras matemáticas de formar vencedores.

É claro que, nesta estratégia, a D. Antónia beneficia do total, diria mesmo, cúmplice, apoio do avô (não dela mas das crianças). Trata-se de um idoso com imensa pedalada, mesmo não dormindo, com olhos azuis e enorme tendência para beijos, abraços e, sobretudo para ser – e continuar a ser, ao menos enquanto puder – o avô mais querido de todos.

Ora bem, o pior foi quando as coisas pareceram normalizar e a D. Antónia e o avô desataram a incitar as crianças a sair e comprar caramelos, chupas, refrigerantes e um longo etc. de coisas que fazem circular e crescer a economia, que, coitada, resultou um bocado murcha, na decorrência da anterior ordem de exílio caseiro. As crianças – aliás, tal qual os adultos... –, sabe-se como é!, quando se lhes dá a mão pedem logo o braço e por aí fora e, mais cedo ou mais tarde, está escrito, as coisas voltam a complicar-se e a D. Antónia, com o apoio do avô, tem de tomar medidas.

Está um bocado à nora, porque, constrangida com o estado da economia, não pode voltar a fechar as crianças em casa; por outro lado, em bom rigor, bem sabe que foi ela a mandá-las para a rua, sempre com enormes louvores à forma como se tinham comportado (como se portarem-se bem fosse um mais em relação ao simples cumprimento do seu dever!). Acresce que, tal como as coisas descambaram e começam a aparecer buracos por tudo quanto é lado, fica receosa de que lhe peçam responsabilidades, e, em última análise, venham a retirar-lhe a governança. Está como tola no meio da ponte! 

Todavia, não é de seu feitio permanecer em tal estado demasiado tempo; por um lado, é perita na arte da autodefesa e da artimanha, por outro, beneficia da protecção do avô. Assim, juntam-se ambos e combinam, bzzz, bzzz, bzzz. E, mal o pensam, melhor o põem em prática.

A D. Antónia, secundada pelo avô, começa a espalhar que a culpa é das crianças, que são umas descuidadas, que mais isto e mais aquilo, que assim não pode continuar e, quando o terreno já está bem preparado, exibe o golpe por trás das acusações: ameaça as crianças de que vai passar a controlá-las uma a uma, não ela directamente, que não chega para tanto, mas a polícia da casa, e que se não ficarem away – sim, em inglês! – de certos comportamentos, vão ter de pagar fortunas – o que, de resto, bem preciso é, pois os cofres da casa estão a rasar o vazio.

Vai daí, as crianças, prontas a obedecer, começam a ouvir a vozearia das crianças mais esclarecidas da casa e, mesmo, dos polícias, a chamar a atenção, que assim não, não pode ser, nem as regras da casa o permitem, quanto mais o bom senso e a boa e sã governança! Num instante, esquecem a ameaça e as vozes esclarecidas, voltam à brincadeira e, como, apesar de ser outono, o tempo está esplendorosamente estival, enchem as esplanadas e passeiam-se pelas ruas, em amenos e descuidados convívios.

O avô acobarda-se, não adianta opinião convincente sobre a ameaça da D. Antónia, e esta, sempre risonha e anafada, acaba por afirmar com todos os dentes que não, não se trata de uma ameaça, nunca esteve em causa impor nada, mas tão só levar as crianças a aderirem, até porque, se estas aderirem voluntariamente (ainda que sob ameaça...) não é necessário impor nada! E que não, não se reconhece como uma ditadora, longe dela, ahahah.

E é isto, a D. Antónia Gosta bem pode dizer que não é uma ditadora, mas lá que tem tiques de ditadora, ai isso tem! Mas – v´am lá ver, como ela diria –, isto sou eu a pensar!



(desenho meu sobre foto do google)




terça-feira, 13 de outubro de 2020

AVEC LE TEMPS...


já tinha deixado para trás o tempo sem cor, o tempo amarelo das mimosas, o tempo vermelho das cerejas, vários tempos cinzentos e ainda outros tempos cuja cor não importa mencionar, até porque foram tempos de matizes variados, difíceis de colorir

deixou todos os tempos para trás não por ousadia ou desaforo, apenas porque é da natureza da vida: os tempos sucedem-se em movimento contínuo, substituindo-se uns aos outros, num atropelo por vezes vantajoso, outras vezes prejudicial (ou assim parece, ao menos até ao tempo do tempo seguinte)

não lhe foi preciso abandonar todos esses tempos para perceber que o melhor era, mesmo, permanecer em cada tempo, sem cuidar dos tempos idos, por menos maus ou muito maus que tivessem sido – e alguns haviam sido mesmo muito maus
 
de vez em quando, voltava os olhos e, sobretudo, o coração para trás, não para lamentar ou recriminar o que ficara, mas com o intuito de procurar alguma explicação ou justificação de si ou das suas circunstâncias, ou ainda um pedaço de céu límpido – um gesto amoroso, uma candura, um prazer ou apenas um remanso momentâneo de paz... – que lhe permitisse mimar-se, à sombra de uma nostalgia não feita de saudade, mas tão só de aconchego, que era para ela o verdadeiro sabor da nostalgia. longe de si voltar atrás ou chorar o que deixara, apenas aconchegar-se um pouco na recordação de um momento feliz, que tinha a lucidez de saber que era passado e nunca poderia substituir o presente, ou sequer alimentá-lo. digamos que se tratava de um passatempo, uma espécie de sonho lúcido ou uma fantasia, uma fantasia ao contrário das que inventara nos tempos idos – inclusive, até há bem pouco tempo –, nunca muito convencida de que iriam realizar-se, mas nem por isso menos encantatórias e oportunas. não tinha começado a criar histórias intermináveis mesmo no resvés da adolescência?! tantos personagens imaginários com os quais coloria os tempos cinzentos... sem nunca confundir ficção com realidade, antes como quem constrói recursos para dar cor e brilho a esses tempos, talvez na secreta esperança de que uma vida de faz de conta pode ajudar a ultrapassar um tempo que se contado...

agora, de cada vez que ía ao baú dos tempos idos, notava que algumas objectos já por lá não andavam ou então tinham perdido cor e brilho e, com eles, a própria definição. pensava, então, na canção do Léo Ferré, "Avec le temps" – "Avec le temps/Avec le temps, va, tout s´en va/On oublie le visage et l´on oublie la voix/Le coeur, quand sa bat plus, c´est pas la peine d´aller/Chercer plus loin, faut laisser faire et c´est trés bien..."

percebia, então, porque sempre amara essa canção, mesmo no tempo muito ido em que a conhecera e não prestava atenção à letra (porque nunca se concentrava o suficiente para prestar atenção às letras das canções, o que não significa que lhes não entendesse o sentido)

de resto, já sabia, de há muito e de experiência, que as caras eram as primeiras a desaparecer, com elas as vozes, talvez depois as histórias. e o amor? o amor, esse, não se podia esvair na lembrança, o amor não, ou assim fantasiava, embora com a lucidez de admitir que podia não passar de mera fantasia, como as fantasias dos tempos muito idos

o curioso é que não sentia cansaço nem estava impossibilitada da ilusão. talvez apenas se tivesse tornado invisível, uma impressão concreta de que já não... mas que sabia ela? e que importava?! era o tempo presente e também ele, pela ordem natural das coisas, se tornaria passado, se não para ela, para outros... agora já divisava o tempo em que a sua face se esbateria e acabaria por virar mancha e depois nada. e a sua voz, cada vez mais sem corpo. até ficar apenas a memória do amor. sim, talvez esta sobrevivesse

de resto, que importância poderia ter tudo isso? não muita, mas alguma, a de explicar o divertimento com que, ao dizerem-lhe, "estás quase a fazer anos", ela respondia, com um ar gaiato e lúcido, de quem irreleva a passagem do tempo, porque é assim e está bem assim (et c´est très bien)...

... e o que respondia era:

"agora já não faço anos, limito-me a descambar para o dia seguinte!"

e sorria, porque sempre foi de sorrir, e despertava sorrisos (e talvez os seus sorrisos sejam uma espécie de amor...) 







quinta-feira, 1 de outubro de 2020

CINZENTO-ALMA


minha alma é cinzenta
cor de fumo denso
peso de fumo breve
faz-lhe falta outono
cheiro de chuva em terra
murmúrio de vento
ondas de mar serenas
flores pálidas
ramagens em movimento
folhas secas, em queda
tapetes frágeis 
amarelo-vermelho-cobre-dourado
nuvens baixas, redondas
prontas a abrir portas
crepúsculos circulares
descidos ao de leve sobre as copas das árvores
carícia de ramos despidos
oh! como tudo é cinzento!
e eu que nem gosto de cinzento-cor
amo o cinzento-alma, outono
(que a minha alma não se dá com sol vibrante)
que seria de mim sem o cinzento?!











quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O MISTÉRIO DO FUNDO DAS ESCADAS


Algo que li naquele livro conduziu-me à cave, mais concretamente, ao pequeno compartimento disfarçado sob as escadas que a serviam. Não me recordo se tinha porta (esta noite, sonhei que sim), mas isso não passa de mero pormenor irrelevante, porquanto, para mim, sempre se revestiu do mistério dos espaços fechados a sete chaves, destinados a abrigar monstros, fantasmas ou simples objectos que num repente ganham vida, prontos a atacar ao mais pequeno descuido de quem, desprevenido, se atreva a visitá-los ou apenas espreitá-los.

Aliás, a própria cave, vá-se lá saber porquê, também me inspirava certo temor ou, no mínimo, inquietação. Todavia, não passava de uma simples cave, de resto, bastante ampla, do tamanho da própria casa. Desdobrava-se em quatro enormes divisões: uma servia de adega e, como tal, as suas paredes eram forradas de uma estrutura de madeira onde repousava um exército de garrafas; noutra atulhavam-se enormes arcas e um comprido tabuleiro de madeira, destinados a guardar os produtos vindos da terra, desde feijões a fruta; seguia-se aquela onde residiam diversos brinquedos e, mais tarde, caixotes e mais caixotes de livros e cadernos, documentando a nossa passagem – minha e do meu irmão – pela escola, o liceu e a faculdade (do que só vim a aperceber-me demasiado tarde); finalmente, em frente às escadas que vinham do rés-do-chão, encontrava-se a sede da máquina de costura Singer e de uma enorme arca ou malão para onde eram atirados os trapos em desuso, incluído o vestido de noiva de minha Mãe – escusado será dizer que, com muita pena minha, a traça era a verdadeira dona daquele espaço. Comum a todas as divisões eram as teias de aranha pendentes dos altos tectos e as janelas rectangulares, de caixilhos vermelhos, defendidas por gradeamentos decorativos, verdes escuros, que davam para o jardim; também o soalho de madeira e um corredor de cimento que as ligava.

Embora não fosse habitual, cheguei a brincar na cave, na companhia de outros miúdos. Porém, descer à cave desacompanhada representava uma espécie de aventura, se bem que apenas sob o prisma do receio de perigos ignotos e não pelo empolgamento da curiosidade e da recompensa gratificante.

Porém, o que verdadeiramente me causava arrepios era o tal desvão (aquele aproveitamento do parco espaço sob as escadas, aliás, desnecessário, pois, se havia coisa que não faltava, era espaço disponível para arrumações e o mais que fosse, nas quatro referidas divisões).

No fim das escadas, lá estava ele, com a sua escuridão à espreita, pronto a atrair para dentro da sua barriga húmida e sinistra o mais inocente e desprevenido dos mortais. Para cúmulo, embora fosse dotado de uma lâmpada, esta estava sistematicamente avariada, adensando – se possível! – a ameaça do terrível mistério escondido. 

E que escondia o interior daquele espaço vivo ou morto-vivo? Pois, nada de especial, apenas mais uma miríade de objectos caídos em desuso, mas que, pelos vistos, não havia vontade (ou coragem) de deitar fora: o triciclo, a bicicleta de pneus furados, montes de pares de sapatos e malas, sobretudo meus, alguns abandonados por mero cansaço e não por excesso de uso, etc. Enfim, como eu bem sabia, nada susceptível de justificar a minha inquietação e temor. Só que, como tantas vezes sucede, o que eu sabia não coincidia com o que sentia.

Após ter deixado de viver naquela casa, sempre que aí regressava experimentava a mesma inquietação com a cave e, em particular, com o seu esconso, ao ponto de andar sempre a fechar a porta que dava acesso às respectivas escadas, como se assim pudesse travar o que quer que de lá pudesse sair (e não estou a pensar em simples correntes de ar, embora também não saiba de que poderia tratar-se). Todavia, meus Pais insistiam em manter a porta aberta, ignoro por que razão.

Certo dia, depois de a casa já ter sido esvaziada, o que lhe conferiu um peso descomunal e insustentável, fui visitá-la uma última vez, na esperança, tornada necessidade, de desvendar o mistério da cave, ou melhor, do sinistro e ameaçador compartimento situado sob as escadas.

Mal abri a porta da rua, o silêncio envolveu-me no seu pesado manto negro, quase me paralisando pernas e braços. Comecei a respirar com dificuldade, à medida que tentava avançar, afastando as franjas que me atavam os membros e enegreciam a alma. Nem sequer podia socorrer-me de um copo de água, pois a água havia sido cortada há muito. 

Após um esforço desmedido, lá consegui arrastar-me pelo corredor de mosaico que conduzia à porta da cave. Encontrei-a aberta, como no tempo em que meus Pais insistiam em a manter assim. Então, a  opressiva presença da ausência deles pesou-me (ainda) mais do que o espesso manto de silêncio que me aturdira à entrada, ensaiando manietar-me os movimentos e travar-me o avanço.

Segurei corajosamente a lanterna de que me munira – como é natural, à semelhança da água, também a luz havia sido cortada – e ensaiei passos leves nas escadas, cuja madeira, de há muito poupada a outras passadas, se queixou num murmúrio dorido.

Venci o primeiro lanço e atirei-me ao segundo, o que virava para baixo, em direcção ao corredor de cimento. Do lado direito, lá estava aquela boca aberta, expelindo nada mais que um monumental negrume, de cujos insterstícios espreitavam dentes ameaçadores, amarelecidos duma velhice que era mais eternidade. 

Controlando a tremura interior, respirei fundo e dei um passo em frente, pronta a mergulhar naquela gruta cominadora e a enfrentar o  terror que aí se albergava. À medida que avançava, tive de inclinar o corpo, pois o tecto ia decrescendo, adaptando-se ao declive das escadas sob as quais se situava. Mãos suaves como veludo pousaram no meu rosto e cabelo, provocando-me um arrepio de terror. Não conseguia vê-las, apenas sentir-lhes a textura e aperceber-lhes, ao de leve, a cor, cinzenta escura. Senti-me agoniada, mas prossegui, afastando aquelas mãos com as minhas, que brilhavam, brancas e trémulas, à luz desmaiada da lanterna, ela própria prestes a desmaiar.

Pelo caminho, fui encontrando objectos vários, entregues a um abandono cuja dor só as pessoas abandonadas poderiam entender – foi o que pensei e creio que com razão, até porque, se quem abandona conseguisse entender, talvez se forçasse a rever a sua posição, embora para isso carecesse de empatia, o que, por certo, quem abandona não possui.

Estes pensamentos distraíram-me e com a distracção consegui ver mais claramente: atrás dos objectos, ou melhor, escondidos atrás daquela miríade de objectos (tornados) inúteis, encontravam-se uns olhos amendoados de menina de tranças. Um bibe com coelhinhos bordados em relevo cobria-lhe os joelhos. Sorriu-me timidamente e eu devolvi-lhe o sorriso tímido, como se entre mim e ela apenas residisse um espelho e não a escuridão espessa e o silêncio pesado daquele sinistro lugar. Depois, a menina estendeu-me as mãos e, como se no tal espelho, estendi-lhe as minhas. Os seus olhos de amêndoa sorriram aos meus e vice-versa e ela disse e eu disse, tal qual um eco, "leva-me daqui", "leva-me daqui". E prometemos uma à outra que sim: "Vem, levo-te comigo", "Vem, levo-te comigo". 

Subimos a escada juntas, sem perguntas, mas também sem respostas. Se monstro havia naquele compartimento, para lá ficou. Comigo só veio a menina dos olhos de amêndoa.

Desliguei a lanterna, fechei a porta da casa e só me lembro de ter pensado: para sempre! À cautela, guardei a chave, para nunca mais.

Nota: Esta ficção, baseada em aspectos autobiográficos (a cave existiu, com a configuração descrita), foi-me inspirada pelo livro Vem Aí  o Senhor, de Gonzalo Torrente Ballester (o primeiro da trilogia Os Prazeres e as Sombras). Concretamente, pela parte em que o protagonista encontra como razão do seu regresso à casa de família (há muito desabitada) a curiosidade por desvendar o que se situa atrás da porta da torre que sua mãe havia mandado fechar para o impedir de aí aceder. É assim a Literatura, um manancial de inspiração e de comunhão de ideias!








quinta-feira, 6 de agosto de 2020

CAMINHO TORTUOSO DE PEDRAS SOLTAS E ESCORREGADIAS


Estava à conversa com uma amiga, conversa de alma, de dores de alma, puxadas bem lá do fundo, da ferida aberta por acontecimentos funestos e, pior, absurdos. Sim, era mais isso, absurdos!

Naquele dia, pode dizer-se que tomava conta da conversa, impelida por uma necessidade indesejada de desenterrar mortos e vivos, como se o desabafo constituísse a peça indispensável para poder equilibrar-se no tortuoso caminho de pedras soltas e escorregadias que devia pisar se quisesse continuar a atravessar o rio turvo em que se transformara a sua existência. E, nesse momento, havia todas as razões para não prosseguir, mas existia uma – ou disso pretendeu convencer-se! – que ditava em sentido contrário.

A situação era tão mais espantosa quanto o seu hábito consistia em ouvir os outros, não em alardear as dores que lhe consumiam as forças – já não digo o prazer ou o desejo ou o interesse ou a simples procura do sentido – para continuar a travessia ou, no mínimo, aguentar-se em pé.

A amiga, talvez espantada com a magnitude daquele sofrimento e, sobretudo, da sua inédita exposição, assumiu o papel de ouvinte, mais, o de confortadora – para o qual, diga-se de passagem, nem tinha grande jeito, mas que, no caso, desempenhou com empenho e a perfeição possível.

O desabafo prosseguiu com tintas de desespero e desistência, envolto numa pureza visceral, e, de repente, ela interrompeu-se. Acabava de tomar consciência de que o absurdo cercava a sua existência com a naturalidade com que o mar rodeia a ilha, a assertividade com que o populista faz promessas aos eleitores e a maldade com que o predador vigia a presa e, por fim, a consome.

Então, tomada de súbita acalmia, disse: "Sabes, por vezes tenho a sensação de que já morri, ando por cá, mas já morri, algures, num lugar indeterminado, num ponto incerto do tempo!"

A amiga fitou-a, perplexa e sem palavras, apenas porque teve a sensação de que aquilo bem podia ter acontecido, e pensou: que posso eu dizer que seja capaz de trazer à vida uma pessoa que vive com o fardo de se saber morta, mas sem o alívio de o estar?

Acabou por dizer qualquer coisa animadora – tão banal quanto animadora; afinal, naquela circunstância, a sua função era ouvir e mostrar apoio. E isso conseguiu fazer.





sexta-feira, 17 de julho de 2020

AINDA SEM TÍTULO


Cheguei um pouco atrasada. Ela já estava à espera, sentada num banco do parque. Mesmo antes de dizer «Olá!», notei qualquer coisa estranha, sem perceber exactamente o quê, talvez uma sombra de inquietação ou um farrapo de desespero. Não aprofundei, foi sempre esse o meu mal, aliás, causador de males bem maiores, esse de captar sinais, mas abster-me de os interpretar. Quantos desgostos e – atrevo-me a dizer! – tragédias poderiam ter sido evitados, caso me tivesse aplicado mais! Mas agora é demasiado tarde para lamentações, já nada pode mudar o curso dos acontecimentos.

Tinha as pernas cruzadas, a de cima oscilando num movimento rítmico e nervoso, elevando-se e baixando-se, do joelho até ao dedo grande do pé, esticado, como se essa parte do seu corpo fosse dotada de vida própria… e maníaca. Numa espécie de contenção, que destoava do movimento da perna, espetava as costas, muito direitas, contra a madeira do banco, pintada de vermelho sangue, já a descascar e a escurecer, por efeito da passagem de muitas estações sem manutenção. Numa das mãos, segurava uma sanduíche de queijo quase intacta – nem sei porque reparei no pormenor do recheio –, que ora levava à boca, para uma dentada fugaz e desinteressada, ora pousava na embalagem de cartão, largada a seu lado. No intervalo, passava a mão de dedos finos e nervosos pelos longos cabelos dourados, como se procurasse submeter o que a brisa de início de primavera insistia em desmanchar. Os olhos, castanhos claros, pareciam empenhados em não me encarar ou mesmo em fugir de mim.

Desculpei-me pelo atraso e perguntei, «Afinal o que se passa, Joana, aconteceu alguma coisa? Pareces tão ansiosa…»

Em vez de responder – e como a dar-me razão –, agitou-se no banco, virando-se para o outro lado, oposto ao ocupado por mim, talvez à procura da sanduíche. No acto, impaciente e brusco, entornou uma garrafa de sumo – Compal Vital Frutos Vermelhos, reparei – de encontro às calças, onde alastrou, de imediato, uma enorme mancha vermelha arroxeada. Elevou a voz, não para me reponder, mas para protestar, «Merda!»

«Calma!», disse eu, enquanto lhe estendia dois ou três lenços de papel, que ela me arrancou da mão e aplicou furiosamente sobre as calças, enquanto repetia, agora mais baixo e com os olhos brilhantes de lágrimas – ou assim me pareceu –, «Merda, merda!»

Pela minha parte, já não sabia que fazer. Conhecia-a suficientemente bem para não estranhar um ou outro assomo de mau feitio ou impaciência, mas aquilo era um exagero, nunca a vira tão transtornada. Porém, também é verdade que, ultimamente, haviam acontecido coisas estranhas, inexplicáveis (que talvez o não fossem, caso me tivesse dado aos trabalho de lhes interpretar os sinais). 

Foi então que, como se tivesse acabado de ganhar coragem, espantou os olhos na minha direcção e entreabriu os lábios carnudos, de onde, num fio de voz assustado, saíram estas palavras, «Sabes, Pequenina – era esta a minha longínqua alcunha, sendo o meu nome, Mafalda –, há assuntos que gostaria de falar contigo, mas não pos…»

 A frase ficou assim, a meio, interrompida pelo som estridente de um telemóvel, que a fez saltar do banco e precipitar a mão para dentro do bolso do casaco. Deteve-se um momento a fixar o écran e depois atendeu, com voz estrangulada. Afastou-se, fazendo-me um breve sinal, que não percebi bem, mas assumi como aviso para esperar (embora, mais tarde, tenha pensado se o seu significado não fora, justamente, o oposto).

Decorrido nem meio minuto, regressou, apanhou a mala pousada no banco, olhou-me com os olhos a fugir e afastou-se em passo rápido, não sem antes dizer, num fio de voz, quase já de costas voltadas, «Desculpa Pequenina, não queria que as coisas fossem assim, desculpa.»

Já se perdia, reduzida no tamanho, para lá da espessura das árvores, de cuja folhagem sobressaíam algumas flores, quando consegui fechar a boca espantada. Não fui a tempo de lhe perguntar nada. Aliás, nunca mais haveria de lhe perguntar fosse o que fosse, pois foi a última vez que a vi, embora, na altura, não o tivesse percebido ou sequer suspeitado e, mais tarde, se tenha tornado tarde demais. 

Ainda perplexa, levantei-me para ir embora. Foi então que vislumbrei algo, ou melhor, alguém que parecia… não, não podia ser! Apressei o passo. Não que me tivesse valido de muito.






terça-feira, 14 de julho de 2020

JÁ NEM SEI QUE DIA DAQUILO: DESPEDIDA!


Já nem sei em que dia (daquilo) vamos, mas, como dizia o outro, é só fazer as contas.

No princípio (Dezembro de 2019) era longe (Wuhan, China), tão longe que nem chegaria cá – vaticinou a autoridade.

Depois, começou a aproximar-se (Itália, Espanha...).

Impôs-se entre nós no início de Março, com o primeiro infectado, os que se lhe seguiram e o alvoroço associado.

Entretanto, espalhou-se pelo mundo, ao ponto de merecer honras de pandemia.

Que me lembre, foi a primeira pandemia da minha vida, quero dizer, assim tão perto, pronta a morder-me a pele. Agravada pela novidade do vírus causador – Covid-19 –, sobre o qual, num mundo em que, não raro é elevada à categoria de deusa, a Ciência pouco sabia, como, de resto, pouco continua a saber.

Desencadearam-se teorias da conspiração, generalizou-se a ideia de impotência, com o espanto e medo associados, reflectiu-se sobre a globalização e outros chavões, constatou-se que a natureza estava a melhorar – esquecendo que o vírus é parte dela! – e houve, até, quem acreditasse que a humanidade sairia renovada da experiência.

Cantaram-se loas aos profissionais de saúde, desancaram-se os políticos quando hesitaram e louvaram-se quando decidiram e calhou os resultados serem bons, mudaram-se as vidas, à sombra do confinamento e, sobretudo, do medo (e este foi tanto que os stocks de papel higiénico se esgotaram!).

Falou-se até à exaustão em curvas, picos e planaltos, idosos e lares de terceira idade, ventiladores e cuidados intensivos, etiqueta respiratória, distanciamento social e (após negação inicial) máscaras, testar, testar, testar e, finalmente, milagre.

Entretanto, caiu-se na (outra) real e desatou a falar-se em condições sociais, emprego, exportações, turismo, em suma, economia, e atalhou-se com o célebre lay-off e outros remendos possíveis. 

Pelo caminho, montou-se um circo de variedades, com pontos altos no anúncio da recandidatura do Presidente da República e na atribuição do prémio UEFA aos profissionais de saúde.

Constatado o milagre, as pessoas foram autorizadas a sair, embora com razoáveis cautelas e pertinentes advertências. 

Estava aberto o caminho para o novo normal!

Para mim, o novo normal significou desconfinar com as necessárias cautelas. 

Em geral, fui levada a constatar que para a maioria das pessoas (independentemente das razões e das condições sócio-económicas), o novo normal é o velho normal. Poderia dar exemplos, mas tornava-se exaustivo, para além de desnecessário (cada qual terá a sua própria experiência).

Entretanto, a situação  – número de infectados e de mortos, estado da economia e finanças, etc. – é a que se sabe. O milagre reverteu!

E eu cansei! Não de adoptar as medidas de cautela recomendadas – ou por outra, cansei, mas persevero, segundo o princípio de que o que tem de ser tem muita força –, mas cansei de dar para este peditório (do Covid-19). Falha-me a paciência e o interesse, já basta o que basta!

Limito-me a acrescentar que extraí, aliás, reiterei três conclusões:

) Não há milagres grátis;

) O Covid-19 é como a dívida pública: não se abate, gere-se;

) O que é preciso é calma.

Assim sendo – e a menos que, num ataque de volubilidade, decida em contrário – aqui encerro esta minha espécie-de-diário.

Daí o título deste post.

P.S.: Reparei, com muito agrado, que o número de seguidores aumentou para 28! Muito obrigada!







sábado, 4 de julho de 2020

O FIM DA PRIMAVERA


Esta Primavera dói, magoa, arrasa. O meu coração já não tem força para esta Primavera, que me dói, magoa, arrasa.
O meu coração só teve angústias de Primavera e agora, justamente agora, estava disposto a dar saltos para além do pico do alto do vulcão.
Mas o quê, que sucede? Nada. Pior, que ao nada estava ele habituado!
Eis que surgiu um imprevisto de promessa, de esperança, e ele, meu coração, deixou-se levar, pendurou-se numas asas de mentira, como há muito não se tinha deixado pendurar.
 As asas romperam ao primeiro esboço de voo e ele tombou. Desde então, não tem parado de rolar, por aí a baixo, esfrangalhado, embrulhado nas brumas duma angústia muito antiga, misturadas com o veneno da desilusão tardia, demasiado tardia para se poder considerar mero acidente.
Digamos que nem chegou a ser hipótese, mas sucedeu como se a última hipótese. Qual aposta perdida!
 O meu coração encalhou na garganta e ficou preso num grito tão surdo, tão surdo, que se faz ouvir por todo o Japão e arredores. Deteve-se lá nas encostas esfumadas do belo Monte Fugi.
Raio de sina a do meu coração! Se eu pudesse, se estivesse nas minhas mãos, acabava de vez com a Primavera. Mas apenas para mim.
(Texto de Abril de 2014)






sábado, 13 de junho de 2020

103º DIA DAQUILO: O TESTE!


Mais de três meses da coisa! E o desconhecimento de quanto mais tempo teremos de viver com ela entre nós (ou, mesmo, connosco).
E tanta coisa (ou tão pouca) pelo caminho!

Vou, aqui, relembrar o episódio do teste: estávamos no início de Abril e, certo dia, acordei sem forças, prostrada, com uma ligeira dor de garganta, um pouco de tosse seca e o nariz entupido. Enfim, a desagradável sensação de infecção respiratória das vias superiores (como o médico costuma diagnosticar), a que, aliás, sou muito atreita e que, em circunstâncias normais, teria tratado do modo habitual, ou seja, com Brufene 600.

Todavia, não estávamos em circunstâncias normais, a coisa, de seu nome Covid-19, instalara-se entre nós há pouco mais de um mês e corriam ainda as mais variadas versões a seu respeito – coisa que, aliás, ainda hoje sucede, só que já não se liga nenhuma, porque, se é para ficar na mesma ou baralhado, é preferível não ligar. No que respeita à situação concreta, corria o boato (ou não boato, vá-se lá saber!) de que o dito medicamento não deveria ser tomado em caso de se padecer de Covid. À cautela, abstive-me de o tomar, ficando-me pelo paracetamol.

Talvez por isso, a mazela prolongou-se por mais tempo do que seria normal e, aí pelo terceiro ou quarto dia, decidi recorrer ao meu médico. Como não estivesse a dar consultas, entendi por bem estrear-me na Linha SNS24. Não estava, obviamente, convencida de ter contraído o vírus, mas, em bom rigor, também não o podia excluir. 

Logo à primeira chamada e aos toques inicais, fui atendida. Após um interrogatório que se me afigurou mais de natureza geral do que dirigido à concreta sintomatologia descrita, a senhora enfermeira corroborou a minha decisão de não tomar o Brufene e anunciou-me que tinha de fazer o teste. Ainda aleguei que talvez não, afinal não tinha febre, etc. e tal, mas ela foi peremptória.

Passadas umas horas, recebi, via comunicação electrónica, a pertinente requisição e a página da DGS com a lista dos locais onde poderia fazer o teste.

Não pretendendo dirigir-me a um Laboratório – com receio de aí apanhar a coisa que estava convencida de não ter –, ainda admiti optar pela realização no domicílio, mas rapidamente afastei tal hipótese, quando me ocorreu que poderiam aparecer-me à porta armados em heróis espaciais e criar na vizinhança um alarme desnecessário (do qual eu não deixaria de ser a vítima).

Decidi-me pela solução intermédia, Drive Through (realização do teste sem necessidade de sair do carro), uma fórmula cómoda e segura, tanto mais que precedida da adesão a uma app, com introdução, na mesma, de todos os elementos relevantes.

Lá fui eu na boa, convencida de que aquilo não custava nada, até porque nunca sofri dor ou desconforto com o uso de cotonetes, embora, até então, só as tenha usado nos ouvidos, e também porque, nas séries policiais, nunca ouvi ninguém queixar-se (de dor ou desconforto) pela recolha de ADN com o dito tipo de utensílio. A realidade mostrou-se, todavia, diferente. Quando me disseram para respirar fundo, nunca imaginei que fosse para conter a dor... Sem mais delongas, aquele pau comprido enfiado pelas narinas acima... ou abaixo, quando toca lá atrás, em cima ou em baixo – não sei onde, mas, a mim, pareceu-me nos miolos – doeu-me "pra" caraças, obrigando-me a mexer, involuntariamente, a cabeça, o que motivou a necessidade de nova ferroada. Às tantas, soltou-se-me uma lágrima, não de choro – que não sou dada a dramas –, mas reactiva à intrusão do palito agressor. 

Já à saída, como o nariz me doesse, perguntei a um enfermeiro se aquilo era normal. Respondeu-me que a dor passaria em breve e, ao meu desabafo de que não imaginara tratar-se de um processo tão doloroso, respondeu que sim, que também lhe tinha doido muito e até tinha chorado imenso. Mariquinhas, pensei.

Regressei a casa a imaginar que, porventura, não haveria melhor forma de induzir as pessoas a respeitarem as normas da DGS do que consciencializá-las do quanto custa efectuar o teste. Ainda admiti fazer chegar a sugestão à Dr.ª Graça Freitas, mas tive receio de que, às segundas, quartas e sextas, ela aderisse e às terças, quintas e sábados anunciasse que o teste, afinal, não custa nada, o que poderia baralhar as pessoas e ser contraproducente.

Durante o período em que aguardei o resultado, desejei secretamente que fosse positivo, tanto mais que, entretanto, os sintomas foram-se esbatendo e seria maravilhoso ter vencido o Covid-19 com tão pouco custo (excepto as dores do teste, mas, convenhamos, a sua duração é mínima). Todavia, para destruição das minhas fantasias, o resultado foi negativo!

Até o obter, fui diariamente contactada, por telefone, por uma médica do SNS (mas só a partir aí do quarto dia da minha chamada para o SNS24, porque, alegadamente, antes não houve disponibilidade).

Moral da história: se voltar a ter síndrome de infecção respiratória não ligo para a linha de saúde 24 – a não ser que me falte o ar e, neste caso, se conseguir falar! Não porque o SNS tenha funcionado mal, antes pelo contrário – excepto no tocante ao atraso no contacto da médica –, mas porque não quero submeter-me a novo teste (Uff!).

Agora, já em maré de desconfinamento, ainda queria falar dos meus progressos no regresso à vida, mas como este post já vai longo, deixo para o próximo.