quarta-feira, 28 de outubro de 2020

EM MEMÓRIA DE UM CIDADÃO DESCONHECIDO


Nota prévia: este post é inspirado num caso verídico. Infelizmente...

O pai, octogenário, telefona, a perguntar se sabe notícias do irmão. A sua voz, frágil e agitada, revela a preocupação e ansiedade de quem, há vários dias, exactamente três, tenta contactar o filho, sem êxito.

Responde-lhe que não e, logo de seguida, liga para o telemóvel do irmão. Também sem êxito.

Já tomada de uma inquietação premonitória, dirige-se, sem demora, a casa dele. Ninguém acode ao toque da campainha. Por sorte – e há sortes que mais parecem azares! –, um morador acaba de estacionar e dirige-se para a entrada do prédio. A medo, mas não sabendo que mais fazer, ela dirige-se-lhe e pergunta-lhe se conhece o António, seu irmão, e se o tem visto ou sabe o que... 

Não, não consegue acabar a frase, é interrompida pela resposta brutal (porque lhe soa brutal) do interpelado: "O António!? O António morreu no sábado passado, mesmo aqui à porta. Caiu para o lado e já não se levantou. O INEM levou o corpo, mas já nada havia a fazer!"

Ela, tomada por um espanto situado para além da dúvida e do terror, fraqueja sobre os joelhos, ameaçando desmoronar-se, os olhos muito abertos, secos, ainda, os lábios trementes, incapazes de formular o pedido, diga-me que é mentira, que não está a falar do António, o meu irmão António...

Só então o mensageiro se apercebe de não estar perante uma simples vizinha ou conhecida, de que os une – unia –, a ela e ao António, uma relação de fraternidade que só podia ser profunda; consciente da sua falta de tacto, recrimina-se, em silêncio, para dentro de si, um silêncio que interrompe para lhe perguntar, desajeitado, as coisas que se impõem, enquanto lhe estende a mão, num amparo que já vem tarde e, aliás, de nada serve, porque de nada poderia servir.

Reequilibrada nas pernas ainda bambas, recolhidas as forças restantes e as parcas informações complementares, ela afasta-se aos tombos, não literalmente, que as tempestades da cabeça e do coração nem sempre têm expressão corporal, entra no carro, arranca incerta, sem saber bem o que fazer, por onde começar, enquanto pela cabeça lhe passa uma variedade de imagens e pelo coração uma cavalgada de sentimentos: como se num relâmpago ardente, vê o irmão, vê-se a ela e ao irmão, crianças, adolescentes, não necessariamente por esta ordem, os pais, ai os pais, como poderá dar uma notícia assim aos pais?, porque tem uma pessoa de viver para além dos oitenta anos para assistir a uma coisa assim, a morte de um filho!?, mas estará morto, será mesmo verdade?, não terá o vizinho trocado as identidades?, vê-lo, precisa de o ver, obter uma certeza, melhor, um desmentido, não pode ser, vai-se a ver daqui a nada passa o susto, é só reunir a coragem para o ver, mas onde?, na morgue, numa mesa fria, de metal cortante de tão frio, não, não pode ser, não pode ser ele, o António não, não, não.

E dá consigo parada num semáforo, com as mãos cravadas no volante, os braços a tremer, a boca aberta num grito que depressa é choro e baba e ranho e saca do telemóvel, marca o número dele, do António, sabe que ele vai atender, um, dois, três toques, mais, até que surge a gravação a remeter para a caixa de mensagens. Salta no assento, a buzinaria à sua volta é ensurdecedora, o sinal está outra vez vermelho e os condutores de trás, furiosos, proferem impropérios, chamam-lhe nomes, e ela avança e quase bate no carro que se lhe atravessa à frente, confiante na prioridade ditada pelo verde do seu sinal. Trava bruscamente. As buzinadelas recomeçam pouco depois, caiu o verde, já pode avançar. Para mais à frente, apenas o tempo necessário para se recompor. Pensa no pior e no melhor e o melhor é que tudo pode não passar de um erro, de uma grosseira confusão de identidades, afinal, pensa, ficou tão aturdida que não atendeu bem ao que o vizinho do António disse, não se certificou de que ele soubesse bem quem era o António, mas, ao mesmo tempo, não acredita nesta crença mágica e sabe que só há uma maneira de confirmar.

Já no departamento da polícia, pede para falar com o chefe. Indicam-lhe que espere. Aproveita para tentar por a cabeça em ordem, e o telemóvel toca, atende, não atende?, não atende, é a mãe, desta vez é a mãe, octogenária, não tem condições para lhe dizer, não enquanto não obtiver a prova, a prova de que não se trata do António e, mesmo depois, como posso dar-lhes a notícia, interroga-se, num novelo de contradição e angústia, o estômago a chegar à boca.

Decorre meia hora. A angústia, a ansiedade, o desnorte, o esforço de compostura e muito mais elevam-se numa multiplicação alucinante, muito para além das regras da matemática.

O chefe acaba por chegar e, pela sua boca, a informação, inesperada, surrealista, assustadora: "O corpo está na morgue, onde aguarda cremação"! Seguem-se as informações complementares, por exemplo, que sim, que lhe encontraram a carteira e o telemóvel, mas não, não atenderam as inúmeras chamadas de familiares e amigos que, entre aquele fatídico dia e este, quatro dias depois, soaram desesperadamente à sua procura. E não, não é adiantada qualquer explicação lógica para o facto de a autoridade não ter diligenciado contactar qualquer familiar ou amigo e ter destinado o que restou daquele ser humano à cremação!

(Digo eu que não é adiantada, porque não pode haver, simplesmente não pode haver explicação lógica!)

Inexiste grau de estupefacção e de revolta susceptível de quantificar a estupefacção e a revolta que se apoderam dela! Então é assim, encontra-se um morto na via pública, tombado à porta de casa, um cidadão na posse dos seus direitos e do seu telemóvel e da sua carteira e das suas impressões digitais e do seu número de contribuinte e de cidadão, e não se procura a família ou os amigos ou, no limite, algum conhecido!? Espera-se que apareçam por milagre ou, quem sabe?, que não apareçam, e, decorridos nem quatro dias, decide-se-lhe o futuro dos restos, para mais, um futuro de não deixar rasto!?

O espanto e revolta só podem elevar-se ao patamar da dor e do sentimento da absoluta necessidade de exigir responsabilização!

Afinal, por um sinistro jogo de absurdo, esteve à beira de não conseguir resgatar o corpo, ou seja, de não poder comprovar que – bem contra a intensidade do desejo contido na sua esperança mágica – fora mesmo o António, o seu querido António, que num soalheiro dia de Outono, em plena pandemia de Covid-19, mas por uma qualquer razão estranha a esta, tinha partido deste mundo sem poder despedir-se. E isto é dizer que esteve a um mínimo passo de lhe ter sido negado despedir-se dele e dar à sua matéria remanescente um destino conforme às suas crenças. Ela, seus pais octogenários, demais familiares e amigos. Não é coisa pouca! E assusta!






segunda-feira, 19 de outubro de 2020

ANTÓNIA GOSTA, A DITADORA ENCAPOTADA!

A D. Antónia Gosta é governante numa casa pequena mas confusa, onde habitam pessoas de todas as idades, mas, vá-se lá saber porquê!, teima em considerá-las e tratá-las todas como crianças.

De um modo geral, ostenta uma face bonacheirona, espalha optimismo e parece que está sempre a rir – vá-se lá saber porquê! –, mas, quando lhe dão os azeites – passe a foleirice da expressão –, não é para brincadeiras. Certa vez, inclusive, os seus ajudantes tiveram de a afastar dum velho que teimava em arremessar-lhe um boato, apesar da sua insistência no respetivo desmentido. Ora, por muita razão que tivesse, não foi bonito ou, sequer, justificado, quanto mais não fosse, pela idade do boateiro e, vá lá!, por lhe caber (à D. Antónia) a responsabilidade de se comportar à altura de uma governante que se preze.

Não valeria a pena repisar neste episódio de má memória, não fosse ele próprio (já) revelador de certos tiques, que, apesar de manter disfarçados sob a imagem de bonomia, reforçada pela fofura do corpinho anafado, aí começaram a revelar-se ou a confirmar-se (no caso de pessoas mais atentas ou informadas).

Refiro-me a tiques de, como dizer?, de ditadora, pessoa que quer os seus governados – esses que, como acima se disse, trata indiscriminadamente como se fossem todos criancinhas... estúpidas ou, no mínimo, parvinhas – muito bem adestrados e não hesita em recorrer a todos os meios para o conseguir.

Vai daí, há uns meses, quando, devido à palermia do Covid-19, as coisas se complicaram e teve de os mandar adoptar cautelas especiais, muito especiais, por exemplo, ficarem em casa, pretendeu que cumprissem sem objecções. Mas, sejamos justos, como eles acataram sem problemas, desatou a elogiá-los para além da conta, numa demonstração estratégica de reconhecimento, amor e apreço pelo próximo, destinada a que eles, pobres crianças, a tomassem como boa e certa e a que tal não pudesse deixar de relevar quando das próximas sondagens e eleições – sim, porque, na sua casa, as governantes são escolhidas por essas vias, embora nem sempre o cargo seja atribuído a quem recolheu mais votos, visto haver outras matemáticas de formar vencedores.

É claro que, nesta estratégia, a D. Antónia beneficia do total, diria mesmo, cúmplice, apoio do avô (não dela mas das crianças). Trata-se de um idoso com imensa pedalada, mesmo não dormindo, com olhos azuis e enorme tendência para beijos, abraços e, sobretudo para ser – e continuar a ser, ao menos enquanto puder – o avô mais querido de todos.

Ora bem, o pior foi quando as coisas pareceram normalizar e a D. Antónia e o avô desataram a incitar as crianças a sair e comprar caramelos, chupas, refrigerantes e um longo etc. de coisas que fazem circular e crescer a economia, que, coitada, resultou um bocado murcha, na decorrência da anterior ordem de exílio caseiro. As crianças – aliás, tal qual os adultos... –, sabe-se como é!, quando se lhes dá a mão pedem logo o braço e por aí fora e, mais cedo ou mais tarde, está escrito, as coisas voltam a complicar-se e a D. Antónia, com o apoio do avô, tem de tomar medidas.

Está um bocado à nora, porque, constrangida com o estado da economia, não pode voltar a fechar as crianças em casa; por outro lado, em bom rigor, bem sabe que foi ela a mandá-las para a rua, sempre com enormes louvores à forma como se tinham comportado (como se portarem-se bem fosse um mais em relação ao simples cumprimento do seu dever!). Acresce que, tal como as coisas descambaram e começam a aparecer buracos por tudo quanto é lado, fica receosa de que lhe peçam responsabilidades, e, em última análise, venham a retirar-lhe a governança. Está como tola no meio da ponte! 

Todavia, não é de seu feitio permanecer em tal estado demasiado tempo; por um lado, é perita na arte da autodefesa e da artimanha, por outro, beneficia da protecção do avô. Assim, juntam-se ambos e combinam, bzzz, bzzz, bzzz. E, mal o pensam, melhor o põem em prática.

A D. Antónia, secundada pelo avô, começa a espalhar que a culpa é das crianças, que são umas descuidadas, que mais isto e mais aquilo, que assim não pode continuar e, quando o terreno já está bem preparado, exibe o golpe por trás das acusações: ameaça as crianças de que vai passar a controlá-las uma a uma, não ela directamente, que não chega para tanto, mas a polícia da casa, e que se não ficarem away – sim, em inglês! – de certos comportamentos, vão ter de pagar fortunas – o que, de resto, bem preciso é, pois os cofres da casa estão a rasar o vazio.

Vai daí, as crianças, prontas a obedecer, começam a ouvir a vozearia das crianças mais esclarecidas da casa e, mesmo, dos polícias, a chamar a atenção, que assim não, não pode ser, nem as regras da casa o permitem, quanto mais o bom senso e a boa e sã governança! Num instante, esquecem a ameaça e as vozes esclarecidas, voltam à brincadeira e, como, apesar de ser outono, o tempo está esplendorosamente estival, enchem as esplanadas e passeiam-se pelas ruas, em amenos e descuidados convívios.

O avô acobarda-se, não adianta opinião convincente sobre a ameaça da D. Antónia, e esta, sempre risonha e anafada, acaba por afirmar com todos os dentes que não, não se trata de uma ameaça, nunca esteve em causa impor nada, mas tão só levar as crianças a aderirem, até porque, se estas aderirem voluntariamente (ainda que sob ameaça...) não é necessário impor nada! E que não, não se reconhece como uma ditadora, longe dela, ahahah.

E é isto, a D. Antónia Gosta bem pode dizer que não é uma ditadora, mas lá que tem tiques de ditadora, ai isso tem! Mas – v´am lá ver, como ela diria –, isto sou eu a pensar!



(desenho meu sobre foto do google)




terça-feira, 13 de outubro de 2020

AVEC LE TEMPS...


já tinha deixado para trás o tempo sem cor, o tempo amarelo das mimosas, o tempo vermelho das cerejas, vários tempos cinzentos e ainda outros tempos cuja cor não importa mencionar, até porque foram tempos de matizes variados, difíceis de colorir

deixou todos os tempos para trás não por ousadia ou desaforo, apenas porque é da natureza da vida: os tempos sucedem-se em movimento contínuo, substituindo-se uns aos outros, num atropelo por vezes vantajoso, outras vezes prejudicial (ou assim parece, ao menos até ao tempo do tempo seguinte)

não lhe foi preciso abandonar todos esses tempos para perceber que o melhor era, mesmo, permanecer em cada tempo, sem cuidar dos tempos idos, por menos maus ou muito maus que tivessem sido – e alguns haviam sido mesmo muito maus
 
de vez em quando, voltava os olhos e, sobretudo, o coração para trás, não para lamentar ou recriminar o que ficara, mas com o intuito de procurar alguma explicação ou justificação de si ou das suas circunstâncias, ou ainda um pedaço de céu límpido – um gesto amoroso, uma candura, um prazer ou apenas um remanso momentâneo de paz... – que lhe permitisse mimar-se, à sombra de uma nostalgia não feita de saudade, mas tão só de aconchego, que era para ela o verdadeiro sabor da nostalgia. longe de si voltar atrás ou chorar o que deixara, apenas aconchegar-se um pouco na recordação de um momento feliz, que tinha a lucidez de saber que era passado e nunca poderia substituir o presente, ou sequer alimentá-lo. digamos que se tratava de um passatempo, uma espécie de sonho lúcido ou uma fantasia, uma fantasia ao contrário das que inventara nos tempos idos – inclusive, até há bem pouco tempo –, nunca muito convencida de que iriam realizar-se, mas nem por isso menos encantatórias e oportunas. não tinha começado a criar histórias intermináveis mesmo no resvés da adolescência?! tantos personagens imaginários com os quais coloria os tempos cinzentos... sem nunca confundir ficção com realidade, antes como quem constrói recursos para dar cor e brilho a esses tempos, talvez na secreta esperança de que uma vida de faz de conta pode ajudar a ultrapassar um tempo que se contado...

agora, de cada vez que ía ao baú dos tempos idos, notava que algumas objectos já por lá não andavam ou então tinham perdido cor e brilho e, com eles, a própria definição. pensava, então, na canção do Léo Ferré, "Avec le temps" – "Avec le temps/Avec le temps, va, tout s´en va/On oublie le visage et l´on oublie la voix/Le coeur, quand sa bat plus, c´est pas la peine d´aller/Chercer plus loin, faut laisser faire et c´est trés bien..."

percebia, então, porque sempre amara essa canção, mesmo no tempo muito ido em que a conhecera e não prestava atenção à letra (porque nunca se concentrava o suficiente para prestar atenção às letras das canções, o que não significa que lhes não entendesse o sentido)

de resto, já sabia, de há muito e de experiência, que as caras eram as primeiras a desaparecer, com elas as vozes, talvez depois as histórias. e o amor? o amor, esse, não se podia esvair na lembrança, o amor não, ou assim fantasiava, embora com a lucidez de admitir que podia não passar de mera fantasia, como as fantasias dos tempos muito idos

o curioso é que não sentia cansaço nem estava impossibilitada da ilusão. talvez apenas se tivesse tornado invisível, uma impressão concreta de que já não... mas que sabia ela? e que importava?! era o tempo presente e também ele, pela ordem natural das coisas, se tornaria passado, se não para ela, para outros... agora já divisava o tempo em que a sua face se esbateria e acabaria por virar mancha e depois nada. e a sua voz, cada vez mais sem corpo. até ficar apenas a memória do amor. sim, talvez esta sobrevivesse

de resto, que importância poderia ter tudo isso? não muita, mas alguma, a de explicar o divertimento com que, ao dizerem-lhe, "estás quase a fazer anos", ela respondia, com um ar gaiato e lúcido, de quem irreleva a passagem do tempo, porque é assim e está bem assim (et c´est très bien)...

... e o que respondia era:

"agora já não faço anos, limito-me a descambar para o dia seguinte!"

e sorria, porque sempre foi de sorrir, e despertava sorrisos (e talvez os seus sorrisos sejam uma espécie de amor...) 







quinta-feira, 1 de outubro de 2020

CINZENTO-ALMA


minha alma é cinzenta
cor de fumo denso
peso de fumo breve
faz-lhe falta outono
cheiro de chuva em terra
murmúrio de vento
ondas de mar serenas
flores pálidas
ramagens em movimento
folhas secas, em queda
tapetes frágeis 
amarelo-vermelho-cobre-dourado
nuvens baixas, redondas
prontas a abrir portas
crepúsculos circulares
descidos ao de leve sobre as copas das árvores
carícia de ramos despidos
oh! como tudo é cinzento!
e eu que nem gosto de cinzento-cor
amo o cinzento-alma, outono
(que a minha alma não se dá com sol vibrante)
que seria de mim sem o cinzento?!