sábado, 25 de novembro de 2017

O SENTIDO DA VIDA DO SR. JOBERT


o sr. Jobert descongelou. em sentido figurado, entenda-se (não que tivesse sido libertado duma câmara frigorífica onde tivesse entrado por engano ou para onde o tivessem empurrado por acidente ou, bem pior, por descarada maldade)! apenas quero dizer que, até então, a sua vida fora muitíssimo hirta, espartilhada por varetas, das quais, apesar de inúmeras tentativas, não conseguira libertar-se. donde provinha tudo isso, não é o momento nem interessa indagar. o importante é que o sr. Jobert, finalmente, descongelou, ou seja, desenvencilhou-se das varetas que, durante anos e anos, por sinal os mais duradouros da sua vida, lhe impuseram aquela tão incómoda quanto prejudicial rigidez.

o menino Jobert tinha sido uma criança como outra qualquer. talvez. para dizer a verdade, não sei nada sobre a sua infância, se foi alegre ou taciturna, calma ou ansiosa, equilibrada ou disparatada. também não interessa nada, já vai tão longe a infância do sr. Jobert! lembro-me agora, de raspão, muito de raspão, de ter ouvido dizer que fora uma criança feliz, mas, como não foi ele a dizê-lo, ignoro se se trata da verdade ou não. afinal, como pode alguém testemunhar os estados de alma de outrem, quando, as mais das vezes, nem o próprio os conhece? de resto, devo admitir nunca me ter cruzado com nenhum conhecido do sr. Jobert, pelo que esse hipotético testemunho só pode pertencer ao domínio da invenção (embora não premeditada, não é minha intenção deturpar os factos).

na adolescência, Jobert começou a dar mostras de inquietação, seguida de tédio. posso afirmá-lo, porque li os papéis para onde começou a confessar-se ou a desabafar, por volta dos quinze anos, e que foi mantendo até descongelar. portanto, tudo o que passo a referir baseia-se nesses papéis. não que sejam muitas coisas, até porque a vida do sr. Jobert foi pobre de acontecimentos. o mesmo não se diga dos seus pensamentos. eram bem profundos, repletos de sentido, mas, em geral, tristes ou desesperados. porquê trazê-los aqui?

direi, apenas, que o sr. Jobert trabalhou com afinco, mas, talvez por ser tão hirto, não teve sorte nas coisas do trabalho. amou profundamente, mas talvez por ser tão hirto, a sorte não lhe sorriu nas coisas do amor. e o mesmo sucedeu nos restantes capítulos que, segundo as normas estabelecidas, completam o leque das relações humanas: a família, os amigos e o resto. mesmo no jogo. não será exagero afirmar que o sr. Jobert sofria duma qualquer inquinação que lhe impedia o triunfo! imagine-se, até conseguia desmentir, por negativa dupla, o provérbio, sorte ao jogo, azar ao amor. como já se disse, acumulava azar em ambos (para além dos demais campos da vida). evidentemente, cheguei a colocar a questão: as coisas passavam-se assim devido à sua rigidez ou, inversamente, esta derivava do facto de as coisas sucederem assim? nunca cheguei a nenhuma conclusão (nem creio haver resposta para tal tipo de questões).

a partir de certa altura, o sr. Jobert retirou-se, porque chegou o tempo de se retirar. do trabalho insatisfatório e pesado, dos amores desejados, sonhados e não vividos, dos amigos ausentes, da família demasiado ocupada para dar pela sua existência, e do resto. estava  muito cansado. mesmo muito cansado.

então, olhou para trás e sentiu um enorme alívio. escreveu nos seus papéis: já passou. acrescentou um ponto de exclamação e um smile. confesso que fiquei espantada com o smile. depois caí em mim e achei que fazia todo o sentido. o smile, o ponto de exclamação, a frase, o (triunfal) descongelamento do sr. Jobert. tudo fazia todo o sentido!

voltei ao alfarrabista onde adquirira o livro desconjuntado em cujas entranhas deparara com os papéis manuscritos do sr. Jobert. ansiosa de curiosidade, indaguei sobre a sua origem e a do seu proprietário. respondeu-me ele: 

- olhe, foi uma coisa deveras estranha, um velhote que eu nunca vira apareceu por cá, mirou e voltou a mirar um e outro livro, sem se decidir por nenhum, e, enquanto me distraí na atenção a um cliente, esgueirou-se, deixando esse livro, agora seu, sobre um canto do balcão. mal me apercebi, corri para a rua, mas já nem a sombra lhe vislumbrei. esperei dias, depois meses e a seguir anos, pelo menos uns dez, que ele voltasse para recuperar o livro. nunca voltou. foi assim que acabei por o colocar à venda. curiosamente, nunca reparei nos manuscritos de que fala. de resto, nunca consegui saber nada sobre o tal velhote, apesar de ter perguntado a diversos clientes.

o alfarrabista ainda continuou a dizer coisas - certas pessoas, quando não sabem, vão sempre dizendo coisas, talvez convencidas de que assim preenchem o vazio da ignorância -, mas deixei de o ouvir. 

já na rua, exultava com a convicção de ter percebido a razão por que o sr. Jobert, finalmente, descongelara. e senti-me muito feliz por ele.







terça-feira, 21 de novembro de 2017

NUNCA NENHUM ABRAÇO SERÁ O ÚLTIMO!



E disse que nem sequer pudera dar-lhe um último abraço, como se não fosse óbvio que nunca se consegue dar o último abraço!

Não me lembro onde ouvi ou li aquela frase. Posso até ter sido eu a pensá-la, sei lá!

Apenas estou certa de que nunca se consegue dar o último abraço.

Pela simples razão de que ninguém está interessado no último abraço! O último abraço é o que sela uma união partida, é o abraço para nunca mais - por exemplo, eu para aqui, condenada a permanecer neste mundo, e tu para ali, de partida para a lonjura do desconhecido sem regresso, sem possibilidade de regresso.

Por outro lado, o último abraço é um mito. Não, é uma aspiração do desejo, o desejo que brota da nostalgia, dos confins do aconchego perdido.

Portanto, quando te vi pela última vez e te abracei ou não te abracei, não é verdade que esse tenha sido o último abraço, e também não constitui motivo para me lamentar, mais tarde, no tarde da autocensura (autocomiseração?), de não ter podido (ou conseguido?) dar-te o último abraço.

Entendes-me? Penso que sim. Afinal, até tu, apesar da grande generosidade dos teus afectos ou talvez por isso mesmo, deves ter sentido que não pudeste dar algum último abraço. Igualmente por isso, pela generosidade dos teus afectos, nunca me dirias que te falhei o último abraço. E como gostaria de o ter dado!

Não, não gostaria nada de ter dado esse abraço! Quem está interessado em abraços que selam a separação fatal, definitiva?!

Queria, mesmo, era ter continuado a abraçar-te, abraçar-te hoje, amanhã e até sempre.

Por isso, resolvi prodigalizar os meus abraços. Não a torto e a direito, mas a quem gosta de os receber e retribuir. Inspirada em ti, embora aquém de ti!

Mas sei que nunca nenhum abraço será o último!

(Imagem obtida em pesquisa Google)




sexta-feira, 17 de novembro de 2017

ENQUANTO HOUVER UM LEITOR


Um encontrão violento quase o atirou ao chão. Equilibrou-se a custo, na exata fronteira entre o passeio e a rua, por onde circulava um trânsito desabrido e barulhento. Elevou os olhos numa interrogação muda, como quem aguarda um pedido de desculpas, mas já o outro se afastava, gesticulando e falando alto para o telemóvel preso à cara, qual excrescência indecorosa.

Ainda mal se recompusera, já uma voz impaciente o instava a mexer-se, fazendo-o sentir-se um empecilho. Prosseguiu em passo mais rápido do que o usual, não por pressa, mas para evitar novas agressões.

Um quarteirão adiante, franqueou a porta dum café, encaminhou-se para uma mesa recuada, despiu o casacão cinzento, ajeitou-se na cadeira e pôs-se a observar, através da montra, a agitação muda que desfilava no exterior.

O passeio fazia-se estreito para a quantidade de pessoas que nele se cruzavam, todas movendo as lábios em conversas frenéticas, as mais das vezes tendo os telemóveis como únicos interlocutores.

Procurando não dar nas vistas, retirou do bolso do casacão cinzento um volume pequeno, aí do tamanho dum tablet, revestido de papel de embrulho. Aconchegou-o nas mãos plissadas das rugas duma vida longa e mergulhou nele os olhos cinzentos e gastos. Apressou-se a resguardá-lo, quando o empregado, rapaz novo, talvez nem vinte anos, vivaz, com o nome Jorge afixado na camisa, se aproximou. Pareceu-lhe surpreender nele um olhar estranho. Tentou dissimular a inquietação, repreendendo-se intimamente pela possível inépcia na proteção do tesouro ou, em alternativa, pela tendência paranóica, antes fosse este o caso. Não lhe passara despercebida a atenção dissimulada que Jorge costumava dedicar à sua entrada no café e a pressa com que se adiantava aos colegas para o atender. Não lhe alimentou a tentativa de entabular conversa, como tem passado?, há uns dias que não aparecia, está uma confusão lá fora, etc. Limitou-se a acenar a cabeça, numa cortesia seca - forma de ser descortês -, atalhando com o pedido habitual, chocolate quente e torrada. Jorge ainda disse, com este frio sabe mesmo bem um chocolate quente! Ele manteve-se impassível.

Enquanto comia a torrada com o vagar ditado pela fragilidade dentária e sorvia, em golos espaçados, a bebida doce e reconfortante, atravessou a montra, por cima dos bolos que a decoravam, reflectindo sobre o cenário exterior. Como é possível que, ano após ano, as pessoas entrem nesta espécie de loucura coletiva, enchendo ruas e lojas numa entrega desmesurada a um consumismo inútil e injustificado, em nome, dizem, do Natal? - interrogou-se. Caiu numa espiral de memórias, pairou nos tempos da infância, em como apreciava o ritual da oferta e em como os hábitos eram mais razoáveis e as escolhas mais criteriosas. Recuperou o momento em que, pelos seis anos, recebeu aquele presente. Ocorreu-lhe o nome, a autoria, o enredo, as imagens, o formato, o cheiro, sim, até o cheiro! Apertou o objeto que retirara do abrigo cinzento. Pensou num bunker, sim, aquele tipo de objetos tornara-se maldito pela percentagem dominante, como classificava os governantes e os que, com o seu voto acéfalo, lhes conferiam o poder. 
Jorge personificou-se como se vindo do nada e perguntou-lhe se queria mais alguma coisa. Mal-humorado, disparou:
- Porquê, já vão fechar?
- Não, ainda não! - respondeu o rapaz, sem denotar aborrecimento.
Pediu a conta.
O empregado desanimou. Aspirava à existência duma linguagem especial, destinada a irmanar os amantes daquele tipo de objetos, de que, sendo criança, o pai lhe falara em segredo, mostrando-lhe alguns, escondidos no sótão. Pena o desaparecimento misterioso do pai, pouco depois! A mãe nunca lhe revelou o esconderijo, se é que o conhecia. Mais tarde, por pesquisas na NvET - Núcleo virtual de Estupidificação Total, ficou a saber que, outrora, tinha havido locais destinados a guardar tais objetos e a receber pessoas que os quisessem ver ou deles dispor temporariamente. Mas essa informação, que só por erro dos gestores da NvET persistira nos respetivos ficheiros, foi retirada e ele expulso da USZ  - Universidade do Saber Zero, por violação da regra da proibição da curiosidade. Por isso, em vez de engrossar as fileiras dos que compunham o frenesim lá de fora, estava ali a servir. Especialmente por isso, sentia-se tão curioso em relação ao velho de olhos cinzentos e tão desejoso de conversar com ele.
Escureceu, o halo dos candeeiros da rua fazia rodopiar os flocos de neve como se estrelas cadentes.  O homem recolheu o objeto no bolso do casacão, deixou o dinheiro da conta em cima da mesa e saiu. Ficou satisfeito por Jorge não ter reaparecido. Na realidade, postara-se, discretamente, no passeio oposto.

Andou uns bons quarteirões, desceu ao metro, entrou na carruagem sobrelotada, saiu quando tinha de ser, e, por fim, denotando já algum cansaço, vertido na fundura das olheiras, atravessou uma rua e chegou a casa. Meteu a chave à porta, sem reparar que, colado a si, estava Jorge. Só no interior se apercebeu, instando-o, num sobressalto agressivo, a sair.
- Tenha calma, senhor, peço-lhe apenas que me ouça, depois vou-me embora - disse Jorge, sem sombra de violência, mas tirando-lhe as chaves da mão e fechando a porta.
O velho, dividido entre a impotência e a raiva, atirou-se para cima do sofá gasto, pelo menos tão gasto quanto ele, e anunciou:
- Enganaste-te no alvo, não possuo nada que valha a pena roubar!
- Não venho roubar, senhor, venho antes fazer-lhe uma oferta, um pedido e duas perguntas…
Perante a muda e espantada interrogação desenhada no rosto do velho, prosseguiu:
- Gostaria muito de saber o seu nome e o do seu tesouro, refiro-me ao embrulho que costuma trazer consigo.
Como o outro permanecesse mudo, adiantou, a medo:
- Estou a falar do livro e queria muito pedir-lhe que mo mostrasse. Compreendo o seu espanto, principalmente pela minha idade e pela forma como o abordei, mas, como sabe, não conviria ter esta conversa em público, para salvaguarda de ambos. Sabe, eu já tive um livro, aliás, mais do que um, nas mãos. Eram do meu pai, escondia-os no sótão e mostrava-mos em segredo, deixando-me folheá-los e lê-los. Depois desapareceu misteriosamente e nunca mais peguei ou sequer vi um livro. Até vislumbrar o seu, através do disfarce de papel de embrulho. 
O velho, agora mais calmo, reparou verdadeiramente no rapaz, nos seus olhos cinzentos e na franqueza que deles emanava. Como quem exclui uma última dúvida, indagou:
- E que livros eram esses?
Sem revelar qualquer hesitação, Jorge citou vários títulos, mas deteve-se num, não podendo evitar um apontamento nostálgico: 
- Lembro-me como se fosse hoje, ainda lhe vejo as imagens e lhe sinto o cheiro…    
O velho interrompeu-o,
- E que querias oferecer-me?    
- Pois - disse o rapaz, enquanto retirava um objeto que trazia escondido entre a camisa e o casaco -, é isto, uma capa de tablet, para substituir o papel de embrulho com que costuma envolver o seu livro, parece-me que assim será mais convincente e correrá menos riscos.
O velho só tinha mais uma pergunta:
- E que livro era esse de que te recordas tão bem? 
O rapaz respondeu, sem hesitar. Apaziguado, o velho retirou do bolso do casacão cinzento o seu precioso livro e entregou-lho, dizendo:  
- Toma, ofereço-to, agora vai embora e não te esqueças de usar essa capa de tablet, não vá alguém descobrir o que levas aí. Exibia um sorriso feliz. Depois, apagou os olhos.
O rapaz não insistiu em perguntar-lhe o nome.









UM MENINO ESPECIAL


O menino tem uns olhos grandes, serenos, não se sabe se perdidos em algum longe desconhecido. O cabelo, sempre cortado a preceito - não fossem o pai e a avó cabeleireiros -, é dum castanho bem claro e faz um remoinho brincalhão no alto da testa. A pele é lisa e sedosa, como compete a qualquer criança, e duma brancura de leite morno. Os dentes de cima são um pouco salientes, como os da mãe, o que lhe dá um ar malandro. As mãos são delicadas, finas como os braços e as pernas. Está sempre muito bem arranjado, com roupas e calçado lindos e confortáveis, e rodeado de divertidos peluches.

O menino habita um corpo frágil, confinado a uma cadeira de bebé, pois não consegue aguentar-se por si, mas a cabeça, repousada no encosto, mexe-se quando é o caso, para seguir um som, um movimento ou, quem sabe, uma imagem. E pisca os olhos, em  alvoroço, quando alguém se lhe dirige num tom mais efusivo. Não sei se é susto, espero que não. Abre-se num sorriso feliz - parece feliz e assim desejo - quando ouve o nome pai, mãe ou avó. É lindo de ver, porque diz mais do que as suas palavras ausentes conseguiriam.

O menino é tranquilo, não chora, nunca o ouvi chorar! Ouvi-o, sim, balbuciar, como quem tagarela ou chilreia. 

O menino é lindo e suscita amor. E amor é o que o menino recebe. Da avó - que o cuida com o esmero devido à mais bela preciosidade -, do pai - que sempre esteve lá e o segura com o enlevo duma infinita ternura -, da mãe - duma forma aparentemente mais desprendida -, e das pessoas que com ele vão convivendo, como é o meu caso, enquanto cliente do cabeleireiro da avó - onde trabalham o pai e a mãe, esta esteticista, e onde o menino passa os dias. 

Há quase oito anos, o menino desceu a este mundo, com uma antecipação de cerca de três meses em relação ao previsto, ou seja, nasceu por volta do sexto mês de gestação. A mãe, então uma jovem de pouco mais de vinte anos, contou-me que, quando o médico lho apresentou, mal excedia o tamanho da sua mão e parecia um pássaro, o que lhe desencadeou uma reacção de fuga. Devo dizer que fiquei espantada e comovida com a franqueza e a coragem do seu relato. O pai terá aceitado melhor a situação. A avó foi sempre o grande esteio.

Logo a seguir ao nascimento, o menino teve de sofrer uma violenta intervenção cirúrgica. Sobreviveu. Crê-se que, algures no processo de tão atribulado nascimento, terão ocorrido lesões cerebrais irreparáveis. Daí a situação do menino. De resto, ao longo da sua curta vida, já foi sujeito a outras intervenções.

O menino é 100% dependente de cuidados alheios, mas isso não faz dele uma carga. Pelo contrário, faz dele uma preciosidade. É tão amado, o menino!

Interrogo-me, muitas vezes, sobre os pensamentos do menino, sobre os seus sentimentos, as suas visões e impressões. Sinto, tenho quase a certeza, que a sua mudez e imobilidade escondem um mundo muito rico, ao qual, infelizmente, não podemos aceder.

Confabulo com a ideia de que o menino é um anjo.

Penso, frequentemente, que o mundo seria um lugar bem melhor se todas as crianças proporcionassem e recebessem o amor que o menino desperta e recebe.

Os pais do menino já não estão juntos, cada um construiu uma nova relação e deu-lhe um irmão - desta vez, crianças saudáveis.

O menino chama-se Tiago. Não o vejo como um menino deficiente, mas como um menino especial, muito especial.








quarta-feira, 1 de novembro de 2017

QUE SERÁ FEITO DA BONECA PERDIDA?


Não me recordo do nome da senhora, apenas da sua enorme simpatia e generosidade. Vivia no primeiro andar da moradia pegada à nossa, era casada, sem filhos, creio que por impossibilidade biológica. Em contrapartida, tinha uma trupe de sobrinhos, uns sete (todos irmãos), seis dos quais emparelhados em casais de gêmeos - enfim, a velha máxima, tão velha quanto a humanidade, uns com tanto, outros com tão pouco. Lembro-me de os ver aparecer de visita, de vez em quando. Não viviam na mesma cidade.

A senhora amava crianças, só podia! Doutra forma, não estaria eu aqui a recordar este episódio da infância, tão resistente à inexorável passagem do tempo.

Deveria andar entre os cinco e os sete anos - mas, que sei eu, a esta distância! - e, lá em casa, a regra era não me deixarem ir a casa de ninguém. Que a mãe tenha autorizado a senhora a levar-me à dela é um mistério que, até hoje, permanece insondável, nesta minha cabeça. Mas aconteceu!

Recebeu-me muito bem, com o sorriso franco e entusiástico que, apesar do apagamento das feições, permanece vincado na minha memória. Introduziu-me às histórias infantis radiofónicas - seria a Branca de Neve, a Bela Adormecida? -, universo que apenas conhecia na versão escrita ou maravilhosamente narrada pelo pai, e que, por certo, me encantou. As duas, ela e eu, na varanda que dava para a rua, sentadas, a ouvir atentamente a transmissão, via rádio, da bela história contada! Com um prato de bolachas, que talvez me tenham sabido melhor do que as disponíveis em casa - sabe-se como são as crianças, tendem a valorizar as ofertas simples e genuínas (eu, como não há maneira de deixar de ser criança, continuo nessa onda).

Regressada a casa, em resposta a perguntas feitas - não era de relatos espontâneos -, aludi às bolachas. A mãe, que tinha as suas normas educativas, avisou-me de que tudo bem, mas, quando voltasse a casa da senhora, não deveria aceitar nada, para não incomodar. Certamente registei, certamente não devo ter percebido bem ou nem me dei ao trabalho de perceber ou não me atrevi a questionar, não sei, certamente e como era de regra, nem pensei em desobedecer.

Dias depois, voltei a casa da senhora. O programa foi igualmente simpático, mas as bolachas recusadas, com a educada frase, muito obrigada, mas não me apetece - assim, como a mãe ensinara. Ela não ligou muito, pois tinha uma oferta melhor, uma boneca, Isabelinha - imagino-a a chamar-me assim, apesar de não ser essa a forma por que familiarmente me nomeavam - anda ver a boneca que tenho ali para ti! Disse-o com a expectativa alegre das pessoas que amam oferecer e, sobretudo, surpreender a felicidade dos destinatários da oferta - como reconheço essas emoções! Recebeu a minha recusa com a decepção que uma tal recusa pode causar numa tal pessoa - felizmente, nunca a experimentei, mas não me custa imaginar. Lá estava eu, talvez envergonhada, seguramente triste, muito obrigada, mas não! Tive o bom senso de não acrescentar, não me apetece... Ela insistiu, mas nada me demoveu na recusa (talvez resultante duma interpretação demasiado literal dos comandos maternos, senão duma pontinha de parvoíce, seguramente duma manifesta falta, à altura, de espírito crítico e poder reivindicativo - pobre criança obediente!).

A senhora ficou deveras triste e, quando me devolveu, relatou o incidente à minha mãe. Assisti com iguais doses de estoicismo e de tristeza. A mãe deve ter dito à senhora que agradecia muito, mas não queria que se estivesse a incomodar - calculo, embora já não me lembre.

Nunca soube a história daquela minha boneca, teria pertencido à senhora, teria sido comprada de propósito para mim? Também nunca vim a saber o que terá sido feito daquela minha boneca, talvez tenha ido parar a uma das sobrinhas. Sei, apenas, que essa minha boneca, apesar de ser uma boneca perdida, faz parte da colecção de bonecas de carne e osso da minha infância, que conservo entre os meus bens mais preciosos - e, por opção, são cada vez menos!

(Dedicado à senhora que amava crianças, esteja onde estiver, e à memória da minha querida mãe, que queria que eu fosse uma menina educada)





terça-feira, 26 de setembro de 2017

A FORÇA DO DESASSOSSEGO


seguiu por ali fora com os pés às costas, porque estavam muito cansados. as mãos seguravam os tornozelos, roçando o pescoço transpirado. os olhos viraram-se para trás, desejosos de calcular o caminho percorrido. para a frente não se conseguia prever a distância, apenas se vislumbrava uma linha perdida num mar de nevoeiro baço. tanto podia ser já ali como nem tanto ou muito mais. os olhos espantaram-se, para trás alcançava-se uma vastidão incalculável. a boca abriu-se num assombro, imitou bem um ronco quando articulou e deixou sair as palavras, tanto tempo, já tanto tempo! e o tempo confundiu-se com o espaço. imagens sucediam-se, ilustrando diferentes geografias, paisagísticas e humanas. um relógio alucinava num tic-tac vertiginoso, como quem desfaz à pressão a soma de incontáveis segundos. o corpo parou, hirto, para não se deixar cair. já não suportava o peso dos pés. deixou-os escorregar pelas costas abaixo, mandou-os ocupar o seu lugar, não digo a sua função. impunha-se conceder-lhes uma folga. as mãos, libertas do dever de os segurar, soltaram-se ao lado do corpo, agitando-se brevemente, para descontrair a dormência. pareciam asas de pombas escuras adejando no meio do nada. mas de nada aquilo não tinha, por assim dizer, nada. tratava-se duma paragem. não a primeira paragem, nem a segunda paragem, nem a terceira, nem a quarta nem por aí fora. já perdera a conta das paragens. de repente, era aquilo. auscultava o tempo e o espaço já desfeitos e desistia de contar o que estava por vir. parecia-lhe uma imensidão, o de trás, e sabia ser um enigma, o da frente. só queria surpreender uma pista, já não digo certificar-se, do que faltava percorrer e do respectivo como. contudo, bem sabia da impossibilidade. deixou-se cair no chão, enterrou a cabeça nas mãos-pombas, gesto de desespero. imaginou aquela linha ali à frente, a que marcava o termo da distância em falta, a alinhar-se com os seus olhos cansados, num ponto de fusão, porque já chegava. tinha a certeza de que já chegava, com toda a força do sentir e do aguentar. por mais que tivesse de esperar, nada mudaria o essencial e o essencial era que tudo não passava de tempo perdido, de imagens sem sentido, sem fio condutor, excepto o da via sacrificial sem objecto, melhor, sem propósito. estações e estações de espinhos, como se rosas ausentes de pétalas, caules intermináveis destituídos do sentido de ser flor. roeu-se de desespero. moeu-se. mais uma vez, só mais uma vez, prometeu. já devia saber que não adianta, não vale a pena. o desespero. nem o resto, sobretudo o resto. fechou os olhos, sem vontade de os voltar a abrir, embora isso não dependesse de si. ou dependia? quer dizer, podia depender, evidentemente! recomeçou o desassossego. levantou-se e prosseguiu.






domingo, 24 de setembro de 2017

O BOTÃO ASSASSINO - II

(continuação e fim)

Saído da Igreja, o Sr. C arrastou-se até casa, com a disposição que se calcula ser a de qualquer animal a caminho do matadouro. Embora roído pela contrariedade, levou um ramo de flores à mulher, tal como o botão preto, aliás, o Padre P, lhe indicara. A Sr.ª C, quer dizer, o botão castanho, recebeu o ramo com o espanto de quem é surpreendido pela aproximação dum OVNI e murmurou entre dentes, enquanto se dirigia à cozinha, mas o que é isto? Ele fechou-se no escritório, ofendido com aquela reacção. É no que dá ser simpático com as mulheres, rosnou para os seus botões (por assim dizer). Pouco depois, anunciou, cheio de maus modos, que não lhe apetecia jantar, desandou para o quarto e enfiou-se na cama. Ela sentiu um enorme alívio e, não fosse o encanto quebrar-se, nem lhe perguntou se se sentia bem ou se não queria, ao menos, um chá e umas bolachas. 

Decorridos três dias de grande inquietação e mau feitio, o botão cinzento, ou seja, o Sr. C, compareceu, novamente, no confessionário do Padre P, que, pressentindo-lhe a intranquilidade e movido pela curiosidade, o incentivou a prosseguir a confissão suspensa:
- Fico feliz por te ver de volta, qual espécie de filho pródigo! Desabafa, então, o teu pecado!
Sem mais preâmbulos, tal a necessidade de se libertar do peso que o oprimia ao ponto de lhe desnortear a vida, o Sr. C retomou a confissão no exacto ponto em que a deixara:
- Depois da pancada e do roubo a que a Menina P e o seu comparsa, o botão roxo a quem ela chamou Prx, me sujeitaram, vesti-me o mais depressa que pude e saí daquele antro. Quando cheguei à rua, já não vi sinal deles. Pensei em telefonar à Polícia, mas desisti, com vergonha de ter de contar o sucedido, sentia-me ridículo por me ter deixado apanhar em semelhante esquema. Um tanso, é o que vão pensar de mim, não me saía isto da cabeça. Entretanto, a nuca latejava-me, numa dor funda, e sentia-me tonto. Dirigi-me ao hospital mais próximo, onde, após umas horas de espera e vários exames, me mandaram para casa, com recomendação de repouso por 24 horas e uns comprimidos. Já passava da meia noite quando cheguei a casa, a minha mulher estava mais chateada do que preocupada, por eu não ter avisado. Esquecera-me por completo. Só então me lembrei que tinha de tratar do cancelamento dos cartões bancários e do telemóvel. Dispensei o jantar que ela conservara no forno, agarrei-me ao computador e ao telefone de casa e tratei desses assuntos, embora sabendo que já ia tarde. Aleguei que os tinha perdido, só podia, visto não ter participado o roubo à Polícia. 
- Bem, e depois? - incentivou o Padre, já impaciente com tantos pormenores e receoso de não sair dali nenhuma história de jeito, que justificasse tanta angústia confessional.
- No dia seguinte, quando vi o estado das minhas contas bancárias e o preço do novo Iphone que tive de comprar, a decisão apresentou-se-me com uma nitidez e uma urgência que não admitiam contraditório. Traduzia-se em duas palavras: VINGANÇA IMEDIATA! 
Nos dias seguintes, procurei, em vão, o botão vermelho com brilhos dourados, ou seja, a menina P. Naturalmente, mudara-se. Fiz-me de detective pelos cafés das redondezas, sobretudo os mais rascas, distribuí umas notas a uns quantos botões rafeiros, e, passada uma semana, bingo! De longe, escondido atrás das árvores duma rua escura, avistei-a, plantada sob um candeeiro, no preparo em que a vira a primeira vez, com as coxas a escorregarem do vestido brilhante e aquele sorriso de convite, todo escancarado. Fiz marcha atrás, cautelosamente e fui-me preparar para o dia seguinte.

Havia um botão estranho. Tinha dois buracos no meio, mas, se se reparasse com a devida atenção, havia mais dois, embora obstruídos, para não se notarem. Iluminava-o pela frente um amarelo ofuscante, capaz de lhe dissimular o ar pesado, conferido pelo cinzento escuro da parte de trás. Podia bem ser um homem ainda novo, de ombros largos, talvez com algum excesso de peso, enfiado num fato um tanto exótico, com lentes de contacto e farto cabelo loiro. O Senhor A. Verdadeiramente, era o Sr. C, sob disfarce. 

- No dia seguinte - continuou o Sr. C, perante a impaciente curiosidade do Padre P -, depois do escurecer, dirigi-me ao poiso-sob-o-candeeiro da menina P, esperei que não passasse ninguém por perto, meti conversa com ela, e quando se propôs levar-me até ao apartamento, sugeri um desvio prévio para tomarmos um copo, acenando-lhe com a promessa duma nota extra. Notei-a inquieta ao entrar no meu carro - na verdade, não era meu, trouxera-o, de empréstimo, do Stand, depois de todos terem saído -, mas sosseguei-a com um largo sorriso de pacóvio rendido, e lá fomos. Para longe, cada vez mais longe, até que ela, agitada, no lugar do morto, perguntou, - afinal para onde vamos?, ao que, secamente, respondi - Já vai ver, estamos a chegar. Estacionei, pouco mais à frente, num pinhal sombrio. Vi que tremia, enquanto tentava abrir a porta do carro. Estava trancada. Com alguma dificuldade, enfiei-lhe um gorro pela cabeça abaixo, até ao pescoço, e atei-lhe as mãos. Destranquei as portas, saí e fui ajudá-la a sair. Enquanto a adentrei no pinhal, oscilava entre debater-se furiosamente e choramingar numa falsa humildade. Atei-a, pela cintura, a um pinheiro e retirei-lhe o gorro, que saiu pesado de lágrimas. Mandei-a calar-se, com um ar tão imperioso e calmo, que ela não teve como não. De seguida, como quem ensaia um streaptise, retirei as lentes de contacto e coloquei os óculos, arranquei a cabeleira loura e acomodei-me confortavelmente no meu fato cinzento escuro. Apesar da escuridão, só quebrada pelas luzes do carro, ela percebeu. Soltou um grito tremendo, pediu perdão, fez promessas, e eu ali, a saborear aquele desespero. Virei-lhe as costas, dirigi-me ao carro, peguei na barra de ferro que arranjara num ferro-velho e regressei. Deve ter pensado que me fora embora, pois, quando voltou a ver-me, desatou num berreiro infernal - desculpe a alusão, Padre! Calou-se, mal lhe desferi o violento golpe, em plena testa. Esguichou um bocado de sangue e caiu para o lado. Regressei ao carro. À medida que me distanciava do pinhal, fui jogando fora, para as margens arborizadas da estrada, os instrumentos da vingança, primeiro a cabeleira, depois a barra de ferro, o gorro de lã, as cordas e, finalmente, as lentes de contacto. A menina P já estava! Talvez, mais tarde, decidisse dar o mesmo tratamento ao Sr. Prx, mas, de momento, sentia-me saciado. Este era o pecado que lhe queria confessar.
- Mas isso é muito grave, meu filho, isso não é pecado, é crime, não é coisa que se absolva com arrependimento e penitências! - disse o Padre P, numa enorme aflição.
- Olhe, Padre, se não é pecado, vim bater à porta errada...
- Não é isso, só quis dizer que não é só pecado, é crime. E dizes-me, para mais, que não estás arrependido?
- Não estou, não, mentiria se dissesse que sim.
- Olha, creio que ainda estás em choque, mas deves fazer o que tem de ser feito, ir à Polícia e confessar o teu crime. Se quiseres, acompanho-te. Depois, teremos tempo para tratar a questão do perdão, afinal, Deus não vai embora, estará sempre à tua espera.
- Nesse caso, não tenho mais nada a fazer aqui. Agradeço a sugestão e o apoio, mas não, não me vou entregar à Polícia.

Sem dar tempo de reacção ao Padre P, o Sr. C saiu apressadamente da Igreja. Após várias voltas, seriamente desnorteado, pelas ruas da cidade, dirigiu-se a casa. Agitavam-se-lhe na cabeça pensamentos lúgrubes como pássaros negros em céu tempestuoso. Abriu a porta, avançou até à sala e encontrou a mulher a falar com dois agentes da Polícia, devidamente fardados e servidos dum café acabado de fazer. Cheirava bem. O coração caiu-lhe aos pés, atirou-se para uma poltrona de veludo, enquanto os outros se levantavam, e a mulher lhe anunciava:
- Olha, estes senhores agentes vieram entregar os teus cartões de crédito e o teu Iphone. Não me disseste nada, afinal o que aconteceu? Perdeste-os ou roubaram-tos? É por isso que tens andado tão esquisito? Nunca me dizes nada!
À medida que ela falava, a cor dele foi sofrendo inúmeras mutações, do escarlate ao amarelo desmaiado, e, antes que pudesse responder, um dos Polícias, adiantou:
- Na verdade, encontrámos estes seus pertences em circunstâncias estranhas e gostaríamos que nos dissesse a razão disso. Que saibamos, de acordo com os nossos registos, não participou nenhum roubo... 
- Circunstâncias estranhas, que circunstâncias estranhas? - interrompeu a Sr.ª C, toda agitada.
O Sr. C, por uma vez na vida, sentiu-se grato pela intervenção da mulher. Sempre lhe evitou o vexame e, pior, a suspeita dos polícias, por não ter sido ele a formular aquela interrogação óbvia (óbvia se quisesse passar por inocente...). Só então reuniu forças e domínio para reagir:
- Sim, a minha mulher pergunta bem, que circunstâncias estranhas? Só sei que os perdi, há dias. Mal me apercebi, fui logo tratar dos cancelamentos,... quero dizer, dos cartões, incluído o do Iphone.
Os agentes, em vez de lhe responderem, exibiram-lhe um saco de plástico transparente, devidamente selado, e perguntaram:
- O senhor reconhece este objecto?
- Que objecto? - fez-se ele de parvo, pensando ganhar tempo.
- Ora, esta cabeleira loura, aqui dentro do saco!
- Ah! não estava a perceber... sim, parece uma cabeleira,... mas nunca a vi,... quer dizer,... nunca a tinha visto - balbuciou, trémulo.
Já bastante enervada e quase fora de si, a Sr.ª C, dirigindo-se aos agentes, perguntou:
- Mas, afinal, vão-me dizer ou não que raio se passou?
- Minha Sr.ª, ainda não sabemos exactamente o que se passou, mas pode crer que lá chegaremos. Entretanto, precisamos que o seu marido nos acompanhe para prestar depoimento. Vamos, Sr. C? - disse o agente, num interrogação que era, indubitavelmente, uma ordem.

E lá foi o Sr. C, o botão cinzento.

Ia escoltado por dois botões azuis escuros, muito luzidios, com quatro furos no meio, perfilados em paralelo, dois mais dois, muito certinhos. Bem podiam ser dois jovens e atléticos agentes da Polícia, desfilando nas suas fardas impecáveis. E eram. Os Agente A1 e A2.

O botão que me contou esta história refugiou-se na sua casa e nunca mais apareceu. Fica, pois, em aberto, o que se passou a seguir. Terá o crime do Sr. C sido descoberto? 
     

(Imagem obtida em pesquisa Google)


    

sábado, 16 de setembro de 2017

O BOTÃO ASSASSINO - I


Era um botão cinzento escuro, de aspecto pesado, com quatro buracos no meio. Podia bem passar por um homem maduro, largo de ombros, com algum excesso de peso, enfiado num fato de bom corte e com óculos redondos, sobreponde-se a um par de olhos um tanto arregalados. O Senhor C.

Era um botão preto, baço no centro, onde espreitavam dois buracos, e brilhante no rebordo. Pela cor e pelo aparato - aquele contraste brilho/baço -, passava bem por um padre. Não era difícil idealizar a batida esvoaçante, acompanhando o andar acelerado de quem tem de acudir aos necessitados da paróquia e, ao mesmo tempo, angariar, insistentemente, fundos junto dos poderosos. O Padre P.

O Padre P entrou na igreja, vindo não se sabe donde, e, após um esboço de genuflexão frente ao altar-mor, dirigiu-se ao casinhoto lateral, sentou-se, ajeitou aquela confusão de roupas, saia sobre calças, recostou-se o mais comodamente que conseguiu, afastou a cortina de tecido adamascado vermelho escuro, tipo sangue seco, e espreitou pelos buraquinhos da divisória de madeira fina. Não viu ninguém. Suspirou, matutando no alheamento dos paroquianos. 

Interrompeu-o o chiar das dobradiças da porta da igreja, seguido do ecoar duns passos firmes e pesados, que conduziram um botão entroncado e arquejante até ao seu casinhoto.

Esperou que o botão se acomodasse, no seu fato cinzento escuro de fazenda cara. Sentiu-lhe o bafo, quente, mas de hálito indefinido, quando ele, o Sr. C, dobrado sobre os joelhos, encostou a cabeça à divisória onde pequenos orifícios desenhavam uma filigrana indefinível. Ao fim dum tempo considerado razoável, vendo que o outro não tomava a iniciativa, disse, num tom suave e convidativo, - Então, meu filho, o que te traz por cá?
O Sr. C agitou-se, num desassossego comprometido, sem conseguir expulsar da boca seca uma palavra sequer. O botão preto exortou, com um timbre de impaciência na voz, 
- Vamos lá, meu filho, diz lá o que te trouxe aqui, que o tempo urge, em menos de nada há missa, e tenho de me despachar.
A resposta surgiu, de rajada, - Padre, eu pequei!
- Ora, isso não é novidade, por que outra razão estarias aqui? E, afinal, não pecamos todos? Preciso é que me digas qual foi o teu pecado e se estás arrependido.
- Ó, foi grave, tão grave que tenho receio de o confessar, e, para ser sincero, não estou arrependido, se é que isso serviria para alguma coisa...
- É claro que serve, é, mesmo, requisito essencial para seres perdoado, o arrependimento e, claro, a penitência. Mas, antes de mais, precisas de me dizer o que fizeste de tão mau. Sabes, por certo, que o que aqui disseres aqui permanecerá, ao abrigo da mais estrita das confidencialidades.
Talvez reassegurado pelas palavras do padre, sobretudo as alusivas à confidencialidade, o Sr. C respirou fundo, como quem se prepara para alijar uma carga pesada, e disse, - No princípio...

Havia um botão castanho, dum castanho esmaecido, que não chegava a ser cor de café com leite, com uns arrebiques no rebordo e umas estrias, aqui e ali, devidas ao excesso de uso. Podia bem passar por uma senhora de meia idade, sem profissão, encarregada da canseira da casa e da família, vivendo na sombra dum marido cinzentão, com uma profissão bem remunerada mas pouco entusiasmante, que voltava a casa macambúzio,  exigindo as refeições a horas e a mulher à disposição para lhe satisfazer os apetites sexuais, não que fossem muitos ou muito frequentes e não que se empenhasse minimamente em os tornar agradáveis. A Sr.ª C. Por coincidência casada com o Sr. C.

O casal C, está bom de ver, vivia emaranhado numa rotina entediante, mas nem parava para pensar que a vida podia ser outra coisa. Até que.

Havia um botão vermelho, dum vermelho vibrante, com reflexos dourados e, talvez por isso, um ar provocador. Bem podia encarnar uma mulher da vida, bamboleante na sua roupa justa, com as pernas à mostra mais do que a decência impunha, e uns lábios grossos e suculentos, entreabertos sobre dentes ligeiramente desviados. Só podia ser a rapariga da esquina, a Menina P.

- No princípio - continuou o Sr. C - limitei-me a olhar, mas fiquei logo perturbado. Ali estava ela, enrolada num vestido vermelho vivo, cheio de brilhos dourados, que mal lhe tapava as coxas, e com um sorriso descarado a explodir dos lábios rechonchudos, por entre os quais deixava espreitar uma ponta de língua muito cor de rosa e húmida. Parecia que me convidava e desconvidava ao mesmo tempo. Já tinha escurecido, eu dirigia-me a casa após mais um dia de trabalho árduo - sou gerente duma loja de automóveis, ganho bem, mas sai-me do pêlo - e, admito, aquela visão perturbou-me. Senti-me desafiado, veio-me à ideia a figura doméstica da minha mulher, a esperar-me à porta como uma imposição, ali especada, sem outra ambição que não a de satisfazer necessidades alheias, minhas e dos filhos. Deu-me raiva a sua passividade e, sobretudo, a sua falta de brilho...

Estúpida que fui, trocar uma carreira de gestora, que, por acaso, se anunciava de êxito, por esta pasmaceira que é a casa, esperar pelo mastronço do meu marido, cada vez mais previsível e igual a si próprio, sem sombra de imaginação ou interesse em mim! Os filhos, esses, nem se fala, muito queridos em pequeninos, a fazerem-me dar por bem empregue o abandono da profissão, depois, cheios de embirrações adolescentes, e, finalmente, em fuga ou em vias disso, que querem casas próprias, carros próprios, vidas próprias, e eu, eu para aqui, neste abandono de doméstica, ao serviço desta cambada. Que estúpida fui! E agora é tarde, definitivamente tarde!

Que grande palerma, mais um que já apanhei e nem deu por isso. Coitado!

- Estou a ouvir-te, meu filho, podes continuar - disse o padre, já inquieto por adivinhar longa a confissão.
- No dia seguinte, lá estava ela, na mesma esquina, ainda mais provocante. Hesitei, não sabia como abordá-la, não estava habituado a transgredir, quero dizer, a sair da rotina. Como se tivesse adivinhado, ela dirigiu-se a mim, perguntou-me se tinha lume, estendendo um cigarro, como quem diz, vem cá. Tartamudeei, respondi-lhe que não, - não fumo, menina, - P, disse ela, e eu, - não fumo, menina P. Devia estar um bocado apalermado, porque ela riu, exibindo toda a sensualidade dos lábios grossos e suculentos, como se tivesse acabado de se lambuzar em mel. Palavra puxa palavra, acabei num apartamento manhoso, não longe dali, com ela colada a mim, a enfiar-me a língua pelas goelas, a desapertar tudo quanto era botão e a correr o único fecho éclair das minhas peças de roupa. Aplicava-se com um vagar langoroso e sistemático que me deixava em ebulição, como já não sentia há muito e, de resto, nunca senti com a minha mulher. No entusiasmo crescente (e digo crescente em todos os sentidos) em que me encontrava, nem reparei na aproximação dele...

Havia um botão roxo, feio na cor e na grosseria do seu plástico barato, talvez proviesse da loja do chinês, parecia um proxeneta enfiado num fato garrido, piroso, com a ponta da unha do mindinho quase do tamanho do dedo. Podia bem ser o Sr. Prx.

- E depois? - impacientou-se o padre, já a olhar para o relógio e a clamar secretamente por mais originalidade.
- Senti um impacto na nuca, desabei sobre o sofá ali ao lado, virei-me como pude e vi-o, um sujeitinho nojento, cheio de gel no cabelo, enfiado num fato roxo de tecido e corte grosseiros, e com um bigode que lhe escorria, num riso diabólico - desculpe a alusão - pelos cantos da boca. Atordoado como estava, não consegui perceber o que ele dizia ao botão vermelho, quero dizer, à Menina P, mas bem vi que trocavam risos alarves, enquanto esvaziavam os bolsos do meu casaco e calças, que jaziam, espalhados pelo chão forrado de uma alcatifa velha e suja, manchada sabe-se lá de que fluidos. Em menos de nada, tinham-me limpado a carteira, com tudo o que tinha dentro, e o telemóvel. Exigiram-me os códigos, sob ameaça duma navalha de ponta e mola e da promessa de morte, caso os números fornecidos não fossem os correctos. Depois, saíram por entre gargalhadas cínicas, enquanto ela, desenhando um gesto obsceno com o dedo do meio da mão direita, não sei porque fui reparar neste pormenor, me dizia, - bye-bye, babe...
- Bem, parece-me que já tiveste parte da tua penitência, só não percebo como não estás arrependido! Espero que agora, que verbalizaste o teu pecado, já tenhas reconsiderado. Vai para casa, leva um bonito ramo de flores ou um perfume à tua mulher, reza um terço antes de dormires, e fica em paz. Agora vai, que o teu pecado está perdoado, obviamente na pressuposição do arrependimento e do cumprimento destas duas pequenas penitências.
- Mas, padre, ainda não cheguei à parte que queria confessar, isto é só o contexto, os factos que levaram ao verdadeiro pecado...

- Nesse caso, e desculpa-me interromper-te, mas tenho missa dentro de 5 minutos, considera a confissão suspensa, volta amanhã pelas 16H, e, entretanto, aproveita para reflectires no arrependimento, sem o qual não te valerá a pena voltares, que isto é um confessionário católico e não uma qualquer agência de desabafo ou espécie de reality show privado. Até amanhã.

Sem mais, levantaram-se ambos ao mesmo tempo. O botão cinzento, quer dizer, o Sr. C, dirigiu-se para a rua, cabisbaixo, enquanto o botão preto, quer dizer, o Padre P, se orientou para a sacristia, tropeçando na batina e quase caindo, na pressa de se preparar para a  missa. Na igreja, por entre o sussurro de rezas murmuradas, espalhava-se meia dúzia de botões velhos e escuros, que bem podiam ser o grupo habitual das beatas resistentes.

(continua)



(Imagem obtida em pesquisa Google)





quinta-feira, 17 de agosto de 2017

A MORTE DA SR.ª T.


dança-te na cabeça a canção, era uma vez um morto, e lembras-te do teu primeiro morto, que, por sinal, foi uma morta. dás contigo a pensar que a canção deveria antes chamar-se era uma vez a primeira mortamas, obviamente, isso não faz qualquer sentido, visto não existir canção com tão macabro título (seja numa ou na outra versão). 

a tua primeira morta foi a velha sr.ª T., dona da padaria. vivia com duas filhas, ambas solteiras e já mulheres feitas, a C., ao que constava (e aparentava), meio tolinha, e a A., nada tolinha e amantizada com o padeiro, o sr. A., que era ou parecia meio doido, de vez em quando soltava uns berros que atordoavam a vizinhança, e vivia com elas. segundo as más línguas, o sr. A. teria sido amante da própria sr.ª T. ou, numa versão mais ousada ou mais criativa, chegara a acumular tais funções em proveito (espera-se!) de ambas, mãe e filha. 

a casa da morta (enquanto viva, está bom de ver) era bastante grande, albergando a habitação, a padaria, incluindo zona de fabrico e de venda ao público, e uma pequena loja, a cargo da menina J., vendedora, entre outros artigos de mercearia, duns tristes rebuçados de chocolate de confecção caseira, quadradinhos castanhos desbotados, algo ásperos ao toque da língua, embrulhados em papel de seda branco, atado nas pontas. a menina J. de menina só tinha o ser solteira, pois já era entrada de idade, ou assim a vias, e usava uns óculos com lentes tão grossas que mais pareciam fundos de jarra grosseira.

voltando à casa da Sr.ª T., dava para as duas ruas, aquela em que moravas e a outra, inclinada, que com ela se juntava num perfeito ângulo recto. chegaste a fazer vertiginosas descidas de bicicleta, em que o objectivo era contornar esse ângulo sem travões. duma das vezes, espalhaste-te ao comprido, com grande aparato, embora não muitos estragos e nenhum queixume, não fossem os pais lembrar-se de te apreender o veículo. de alguma forma, já intuías que as queixas nunca produzem bom resultado, servindo, quando muito, à infrutífera e nefasta confissão de fraqueza. mas isso são outras águas... 

da sr.ª T. apenas conservas o vulto, muito esfumado, de uma velhota, mesmo velhota, pelo rigoroso critério de comparação com a tua avó, sentada algures, na loja da padaria ou na da menina J., a passar o tempo e a manter a conversa em dia com as freguesas. na vida, já tinha cumprido a sua parte de trabalho, e agora distraía-se por ali, enquanto a filha, a menina A., e o padeiro regiam eficazmente o negócio. a outra filha, a C., assistia ao desenrolar da vida com o seu ar aparvalhado de alegada tolinha, sabe-se lá se beneficiando também, ocasionalmente, das habilidades do cunhado, embora isto não passe de mera e inútil especulação.

chegou um dia em que a velha sr.ª T. trocou a posição habitual de sentada - em que reside, cristalizada, na tua cabeça -, por um decúbito dorsal forçado e definitivo, como, mais cedo ou mais tarde, costuma acontecer a todos, no momento em que lhes finda esta vida de andar por cá.

terias uns seis, sete anos, um pouco mais ou um pouco menos, quando ouviste anunciar lá em casa que a sr.ª T. tinha morrido. foi a primeira vez que recebeste semelhante notícia, quer dizer, a propósito duma pessoa conhecida, real, ali tão perto. até então, só te tinham morrido pessoas (ou animais falantes, é praticamente igual) na magia das histórias, mas isso não era, de todo, a mesma coisa. para não falar nos pássaros que caíam do telhado e aos quais organizavas funerais, mais ou menos cerimoniosos, de conluio com o teu irmão, que se arrogava as funções de padre...

embora a sr.ª T. não pertencesse ao círculo de próximos (familiares, amigos), revestia, sem dúvida, a natureza de dado adquirido, fazia parte da paisagem do dia-a-dia, era vizinha, costumavas vê-la para ali sentada, calhando, falava com a tua mãe ou a tua avó, e, quem sabe, até te dizia olá ou sorria para ti. portanto, apesar de não haver razões para lhe sentires a falta ou entristeceres com a sua partida, percebeste, muito claramente, a diferença entre o estar e o deixar de estar, em suma, o enigma do sumiço dos mortos.

talvez por isso, por se ter consubstanciado numa tal percepção, tão súbita, vertiginosa e palpável, a notícia da morte da sr.ª T., a primeira morte duma pessoa propriamente dita, de carne e osso, real, deixou-te deveras perturbada. consegues perfeitamente (res)sentir o estado que sofreste na altura, mas não descrevê-lo. consegues, apenas, classificá-lo, coisa que, então, não dispunhas de ferramentas para fazer. e o que sentiste foi angústia. radicava num profundo medo face ao desconhecido, a morte, a ideia de morte, precisamente porque não compreendias bem o que isso era, mas criara-se a tal respeito, pelo modo como se falava, a ideia de que não devia ser coisa boa. todavia, recusaste aproximar-te para perceber melhor, ao contrário do teu irmão e doutros miúdos, pouco mais velhos do que tu, que foram, em romaria, espreitar o decúbito dorsal definitivo da Sr.ª T.. depois, o enterro desfilou pela rua e o teu medo e confusão ficaram a vê-lo passar. obviamente, não perguntaste aos outros miúdos o que tinham visto. muito menos endereçaste aos crescidos os porquês que a situação poderia ter requerido. e ainda muito menos partilhaste com eles o teu estado de alma. fizeste como quando te espalhavas nas corridas de bicicleta ou noutras andanças. talvez já soubesses que não vale a pena fazer perguntas difíceis, cujas respostas ninguém conhece ou pode fornecer. fechaste tudo muito bem fechado numa caixinha especial e guardaste num canto. para mais tarde. agora, por exemplo.



(a sr.ª T., estacionada na tua memória)









domingo, 30 de julho de 2017

QUATRO ESTAÇÕES, UMA INFÂNCIA


e havia o alarido das cigarras
porque era verão
e a cor grená do calor
espalhada como manto de veludo
mas sem peso
e o sabor metálico da limonada fresca
e a letargia das tardes intermináveis
desdobradas para cá das serras
sem um vislumbre de mar
e as noites mágicas, povoadas de estrelas vivas
contadoras de histórias
algumas deslizavam, cruzando-se com um desejo
às vezes, estoirava a trovoada
brava como raiva em puro desnorte
entravam os cobertores de lã
oferta de isolamento, protecção
calor exponenciado, mal dava para aguentar
e as rezas da avó, s. jerónimo e santa bárbara...
era o verão

e havia novelos de nuvens cinzentas a comandar o céu
porque era outono
e o cheiro dos lápis e das borrachas, dos cadernos e dos livros novos
o começo das aulas
e havia uns sapatos de carneira com atacadores
cor indefinida entre o bege, o cinzento e o branco sujo
e uma saia de flanela de lã, em várias cores
rodopiava em pregas ou em volumes redondos, já nem sabes
envaidecia-te e pensavas em não sei que enigma
talvez só percebido muito mais tarde
e uma colecção de bandoletes de lã que a mãe tricotou
uma de cada cor, aí umas seis, todas diferentes, todas iguais
bastava escolher e conjugar com as camisolas
era o outono

e havia frio (mas não se sentia)
porque era inverno
e caía chuva grossa
furava a terra do jardim com a certeza de balas
mas sem a maldade das balas
libertando um cheiro e um som inigualáveis
e também calhava nevar
o céu plúmbeo, cristalizado
anúncio de qualquer coisa a acontecer
e acontecia
alvos flocos a atirarem-se lá de cima, devagar
como quem se suicida docemente
sem desespero, mera oferta de paz
e os jogos e os bonecos de neve
e as recomendações ansiosas
cuidado não escorregues
cuidado não molhes os pés, que te constipas
cuidado não vivas
viver é um perigo
a vida está povoada de monstros
nem sabes quais, nem quantos, nem te digo
por isso é que são monstros, não?
havias de pensar, mais tarde
era o inverno 

e havia as flores amarelas, oferecidas em botão
porque era primavera
e um brilho inocente e poderoso
espalhado pelo sol
e diversos tons de verde espirravam promessas doutras cores
múltiplas e vibrantes cores
e uns sapatos novos de verniz, cor creme
fivela no peito do pé
para estrear no domingo de páscoa
e um vestido branco de bordado inglês
ajustado à cintura com fita de cetim
e a blusa amarela, leve como asas de borboleta
era a primavera 

e era assim
quatro estações bem definidas
os monstros ainda por vir
escondidos na barriga das advertências surdas
era a infância desprevenida
rolando em sucessão apetecida
sabia-se da sua ordem e cadência
diferença/repetição
conforto/segurança
o exacto contrário dos monstros anunciados
e tu amavas
amavas, sobretudo, as margens de transição
verão/outono/inverno/primavera
plenitude/sonho/aconchego/renovação
e era assim, como se eternamente