sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

UMA MENINA ESTÁ PARADA NO TEMPO

uma menina está parada no tempo ou será no meio do tempo?, não se trata da mesma coisa e talvez não, porque o tempo não há-de ter meio (ou, se tiver, fica sempre lá, ou seja, quem está parado é ele), mas, para o caso, não interessa
o facto é que uma velhota se cruza com a menina, vem de longe, agigantando-se à medida que se aproxima, até se tornar do seu exacto tamanho, quando lhe fica mesmo à frente, por um nanossegundo do tempo em que (ou no meio do qual) a menina está parada
a velhota prossegue, sem se deter, e vai diminuindo de tamanho à medida que se afasta da menina, até ficar reduzida ao tamanho de uma formiga e, depois, ao mínimo de uma pulga
a menina limitou-se a mover a cabeça para a acompanhar desde a distância inicial, em que começou a vê-la, até à distância final, a que deixou de a ver
então a sua cabeça voltou-se para a frente e a menina, quer dizer, a sua cabeça – o resto já estava –, ficou parada no espaço ou no meio do espaço, ignoro se é a mesma coisa, em qualquer caso, ficou parada no (ou no meio do, vá-se lá saber) tempo e do espaço e teve de começar a pensar em coisas para se distrair daquela imensa monotonia, diria mesmo, pasmaceira
vai daí a menina pensou no que lhe estava mais à mão, por assim dizer, a velhota que lhe passara à frente, ou melhor, a menina pensa na velhota que lhe passa à frente – porque, é bem sabido e convém não esquecer, a menina está parada – e vê-se a si mesma, mas como posso ver-me a mim mesma na outra, que já vai longe, à minha frente ou atrás de mim, no tempo e no espaço em que (ou no meio do qual) estou parada, pegunta-se
ao mesmo tempo, sente uma tontura, de tal forma que o seu corpo perde o equilíbrio, inclina-se para a frente, cai, bate com a cabeça numa pedra da paisagem e sente uma dor aguda
sem ousar levantar-se, porque ainda está tonta e receia não se equilibrar, ganha a consciência súbita de que já não está parada no (ou no meio do) tempo e do espaço – não que, anteriormente, possuísse a consciência inversa – e interroga-se, perplexa, afinal, é o tempo que passa por mim ou eu pelo tempo e, é o espaço que existe à minha volta ou sou eu que projecto o espaço para fora de mim
agora, mais do que tonta, sente-se baralhada, mas quer-lhe parecer que já restabeleceu o equilíbrio das pernas e, com determinação, levanta-se e fecha os olhos, à espera que se faça luz, enquanto, ao longe, uma pulga dá lugar a uma formiga e depois a uma, ainda não se percebe bem…
e a menina lá fica, parada no tempo e no espaço... ou talvez não