Madrugada de hoje, cerca das três. Minutos antes tinha apagado a luz, após quase três horas de leitura filosófica, tipo zapping, começando nos estóicos, passando pelo pensamento cristão e terminando nas luzes renascentistas, puro flash sobre o caos cósmico, contraste absoluto com todo o antecedente.
Preparava-me para dormir, porém os famigerados neurónios, desaustinados, não concordaram, mais parecia que alguém lhes tinha dado corda, vá-se lá saber porquê desataram a traçar o balanço do ano, coisa que, aliás, sempre os proibi de fazer, pois não vejo qualquer interesse em balanços, nem, aliás, sou contabilista. Vai daí, antes que o resultado se perdesse, voltei a acender a luz, sentei-me na cama, registei aplicadamente o resumo, e pensei, ao menos já tenho matéria para publicar em 31 de Dezembro, está quase aí e não antevejo grandes mudanças até lá, embora nunca se saiba, e sempre fico alinhada com a bitola da estupidez jornalística que ama mastigar factos passados até à mais desesperante exaustão.
Terminado o registo, vi uma avelã com a casca meia aberta a fitar-me, como quem pisca um olho, e não resisti. Perdido por cem, perdido por mil, vou ver o que esta tem para me dizer. Entenda-se que esta era uma revista em cuja capa repousava outonalmente a dita avelã. Bem sabia eu que, por essa altura, já devia estar a dormir, quanto mais não fosse para dar ao colagénio e à elastina a sua hipótese de recuperação. Mas a tentação foi mais forte. Aliás, estou convencida que foi coisa do destino, ciente de que eu precisava de me rir um bocado - o destino tem destas coisas, é castigador mas generoso, primeiro põe-nos em situação de precisar de rir, depois fornece-nos a pílula hilariante, bem haja.
Abri a revista ao calhas, calhou na página 5, lado direito, ornamentada com a fotografia dum livro, com o seguinte título :
"CULAÇO E CUFINO"!
(Notas: o realce das segundas sílabas não é invenção minha, reproduz o original. Autor: Paulo M. Coelho. Imagem da capa: pescoço dum padre, tingido por uma boca vermelha de baton).
Li e reli o título e pensei se não estaria a sofrer um AVC, pois não atinei com o sentido daquelas palavras (o mais próximo que me lembrei da primeira foi colaço, da segunda nada me ocorreu). Também não eram horas de ir consultar o dicionário (fi-lo, entretanto, sem êxito, embora tenha encontrado palavras muito interessantes, como cúfico, cujoeiro e culicídeos, cujos significados, todos decentes, não cabe aqui adiantar, de resto Vocês devem saber).
Passei à leitura da notícia do lançamento do livro, mencionando a respectiva apresentação pelo DR. Tomé Jardim, segundo o qual se trata dum "livro de muito agradável leitura, com humor", consistindo numa "alegoria referente à vida de dois irmãos que representam a essência do povo português".
Ocorreu, então, o verdadeiro momento de revelação, tratava-se, afinal, dos nomes dos irmãos, o CULAÇO e o CUFINO (aqui a responsabilidade pelo realce da 1ª sílaba já é minha), ilustres representantes da alma lusitana. E, como se não bastasse, a notícia prosseguia com a menção de que o evento tinha contado com uma "plateia atenta e interessada" e de que a "assistência fez perguntas sobre a arte da escrita e qual a diferença entre a prosa e a poesia".
Foi aqui que comecei a imaginar miríades de Srs. e Srs.ª Culaços, Cufinos, Cuisto, Cuaquilo, Cuqualquercoisa e Cuetc., espalhados pela plateia, rendidos à eloquência do Dr. CuTomé, apresentador, e embasbacados perante a resposta do autor do livro, P. M. CuCoelho, a diferença entre prosa e poesia é que a prosa é mais laça e a poesia mais fina ou vice-versa, V. Excs.ª decidem.
Este universo não só me deixou fascinada, como me provocou um dos mais desatinados e monumentais ataques de riso de que há memória.
Em pleno processo hilariante, o quarto inferior esquerdo da mesma página atraiu o meu olhar, qual chocolate Godiva, e fui confrontada com a notícia da mudança dalguns serviços do Cofre de Previdência, v.g., o "sítio do Cofre", da Rua dos Sapateiros para as instalações remodeladas da Rua da Prata, sendo que, "Os trabalhadores para ali deslocados aceitaram a mudança com entusiasmo pois podem usufruir de ... novas instalações sanitárias ...".
Foi então que comecei a imaginar o "sítio do cofre", que pensava ser uma entidade informática, logo, incorpórea, completamente empenhado na mudança, entusiasmadíssimo, a atravessar as ruas da baixa carregado de pastas de megabytes, para se instalar à secretária dum qualquer computador do novo destino. Mas o pior foi a visualização em 3D dum aparatoso desfile de Srs. e Srsª Culaços, Cufinos, Culargos, Cucaídos, Cugordos, Cumagros e um enorme etc. de C., a celebrarem, aparatosamente, as renovadas instalações sanitárias da Rua da Prata.
E dum ataque de riso desenfreado passei a outro ataque de riso desenfreado e, mesmo depois de ter apagado a luz, não parava de rir, de cada vez que visualizava a cena dos múltiplos Culaços e Cufinos conformadores da alma pátria, espantados com a metafísica distinção entre prosa e poesia e com o encanto das retretes do Cofre de Previdência.
Agradeço à Revista COFRE (título criativo, este!), do Cofre de Previdência dos Funcionários e Agentes do Estado, o extraordinário material sem o qual este post nunca teria sido possível, nem - e mais importante - os meus impagáveis (e rejuvenescedores, espero) ataques de riso.
Só mais umas coisinhas:
Provocação 1: E depois não querem ter má fama e que lhes baixem os salários e pensões!
Provocação 2: E depois não há Culaço ou Cufino que não se insurja contra aquela capa do New York Times!
Provocação 3 (em jeito de sugestão): E se o Dr. Tomé Jardim, ilustre Presidente do COFRE, mandasse guarnecer as renovadas instalações sanitárias da Rua da Prata com as preciosas revistas Cofre e, já agora, com vários prints do OE 2014?