quinta-feira, 15 de setembro de 2022

DA LEITURA À GUERRA NA UCRÂNIA

 
OU
De Irmãos Inesperados a Assassinos de Irmãos

A leitura tem sido uma das mais gratas companhias na minha vida. Para além do conhecimento e da evasão que proporciona, o que mais prezo nela é o diálogo que permite estabelecer com o pensamento e a emoção vertidas pelo Autor, através das palavras, diálogo esse, feito de identificação, contraponto, espanto, reconhecimento, interrogação, resposta, dúvida e muito mais.
 
Certos autores afirmam que o livro, uma vez dado a público, deixa de lhes pertencer, passando a ser pertença dos leitores. Chegam alguns a  propor que, daí em diante, o verdadeiro escritor é o leitor e não eles. Obviamente, não acredito, levo este tipo de asserção à conta de modéstia (falsa modéstia?) ou provocação (benigna), mas, ultrapassada a letra, creio entender o que pretendem significar: referem-se, por certo, àquela espécie de troca/identificação mental e emocional que a leitura (certas leituras) proporciona ao leitor (empenhado, atento e ávido dessa transacção, por vezes, mesmo, simbiose), tornando-o parte daquele diálogo com o escritor, ou melhor, com a entidade, liberta da pessoa real do escritor, que subsiste dele ou para além dele, nas ideias e emoções que entregou ao livro.

Exemplifico: acabo de ler o livro IRMÃOS INESPERADOS, de Amin Maalouf, distopia com ponto de partida num cenário em que o mundo está à beira da guerra nuclear (obviamente devida à loucura dos homens...), quando a intervenção de um povo superior (para o chamar de alguma maneira) vem sustar tão medonho risco, criando, em contrapartida, uma série de eventos assustadores (eles próprios, a princípio, tomados como manifestações iniciais da receada catástrofe nuclear), povo esse que tem o poder de curar as doenças e evitar a morte.

Este o contexto em que se esgrime uma reflexão sobre o estádio a que a humanidade chegou, a especulação sobre a origem, a sede e as intenções ocultas do povo superior (salvador), o papel que a morte (o medo da morte) desempenha na própria definição/comportamento da natureza humana (tal como a conhecemos e se comporta), e, em contrapartida, sobre o peso (bem maior) que a morte representa no povo superior, nos (raros) casos em que a não pode evitar.

Sob o ponto de vista dos humanos, essa reflexão parte de uma divisão fulcral: entre os que vêem com esperança a presença/intervenção salvadora do povo superior, que apoiam, e aqueles que a repudiam; o antagonismo de posições radica no facto de os primeiros considerarem que a espécie humana, por si, é irrecuperável, só podendo ser salva (de si própria...) mediante uma intervenção controladora externa (a salvação pressupõe controlo), enquanto os outros partem do princípio de que essa intervenção (porque necessariamente controladora) implicando a  humilhação da espécie humana, equivale ao seu banimento enquanto tal (ou seja, como até agora a conhecíamos, enquanto um todo poderoso e dominador, nomeadamente das restantes espécies).

No duro momento que atravessamos – em que, ainda nem sequer saídos da inédita pandemia do novo coronavirus, com todos os seus efeitos, directos e indirectos, na saúde e na vida de milhões de seres humanos e no panorama económico e social mundial, nos deparamos perante uma avassaladora e cruel guerra (não o são todas?), infligida por um oligarca psicopata (Putin) a um país vizinho (Ucrânia), em condições de falta de justificação e brutalidade (mas assim são as leis da força, infundadas e brutais), em grau apenas igualado pelo nível de bravura dos agredidos e resistentes —, não podemos deixar de ponderar a questão da natureza humana, essa imperfeita natureza, que tanto é capaz da barbaridade mais pre-histórica como da heroicidade e solidariedade mais puras. No seu conjunto, qual a evolução desta espécie, para que lado pende o balanço da sua ambivalência ou bipolaridade, o seu destino é subsistir, autodestruir-se ou ser destruída?  E, neste último caso – e seguindo a linha reflexiva da ficção –, poderá a destruição ocorrer por via da (hipotética) dominação benigna (?) de entidade terceira, (um povo enigmático, talvez paralelo) que nos observa e está pronto a actuar para evitar a nossa loucura?

Estas são questões que já alimentavam o meu pensamento (a minha incurável inquietação) e lamento afirmar que – naquilo que muitos considerarão pessimismo, mas reputo de simples realismo –, tendo a considerar que a redenção está na extinção da espécie humana.
  
Na verdade, não creio que tenha conserto, isto é, que seja passível de encontrar um equilíbrio positivo, versus tensão permanente, entre o bem e o mal, as duas faces de que padece o mundo, porque são a base da sua concepção ou mero surgimento!

Também não acredito em entidades redentoras, basta atentar na base de toda a, todavia maravilhosa, Natureza, a do verso e do reverso, do bem e do mal, da felicidade de uns ser a desgraça dos outros. Até as plantas servem de alimento aos animais e estes de alimento uns aos outros e todos de alimento aos homens e estes – pasme-se! – de alimento uns aos outros…

É neste momento histórico que me calha este livro! E mergulho na aludida identidade temática/reflexiva, por via da identificação com a personagem Ève, que não lamenta, antes celebra, a possibilidade de a humanidade ser destronada pelo povo superior: Os amigos de Empédocles avançam sempre, sem se envolver nas nossas querelas, sem se deixarem distrair com as nossas crenças estúpidas. E encontram-se hoje muito à nossa frente, em todos os domínios do conhecimento, e também na arte da felicidade… É a eles que quero beber! (cfr. p.68)

Em contrapartida, o personagem Alec Zander (pseudónimo do protagonista narrador Alexander) é bem outra: … supondo que os “compatriotas” de Agamémnon e Demóstenes são realmente o que parecem ser, tão omnipotentes, tão perfeitos, uma humanidade nitidamente superior, o que é que nós, eu e os meus semelhantes, nos iríamos tornar? … Uma espécie inferior, um esboço final de criação sobre o qual os arqueólogos, paleontólogos e pesquisadores de exotismos se debruçarão amanhã?… Temos os nossos defeitos, dizia para mim mesmo, somos até muitas vezes insuportáveis, criminosos e bárbaros. Mas somos nós! (cfr. mesma página)

Para mim, estes pensamentos – a reflexão de que emergem e que suscitam –, revelam-se da mais acutilante realidade, particularmente, no triste e penoso momento que vivemos, mas que, por outro lado, não passa do simples momento que somos!

E, repito, estou do lado de Ève, assim: Ève dá a impressão de ter sido despertada de repente a meio do mais belo sonho. Ela admite-o, aliás. “O que está a acontecer há três semanas é o que venho pedindo desde a infância, sem ousar acreditar. Que uma força, surgida sabe-se lá de onde, declarasse os homens incompetentes e os pusesse sob tutela; que lhes confiscasse as bombas, os mísseis, as bases militares, os palácios, as prisões, as fábricas de gás, os laboratórios, os matadouros… E, de súbito, quando já nada esperava, o meu sonho tornou-se realidade!”  (cfr. pp. 194/195)

A julgar por Ève, o que se desenrola à frente dos nossos olhos é nada mais, nada menos que a agonia do velho mundo, isto é, do mundo tal como o conhecemos. O seu desaparecimento afigura-se-lhe tão inelutável que já fala dele como se se tratasse de um facto estabelecido.
“Os historiadores que se debruçarem amanhã sobre a nossa civilização dirão que estava tão corroída que bastou um piparote para que se afundasse. O golpe de misericórdia veio de onde nunca se esperara, mas acabaria por chegar, em breve, de uma forma ou de outra. Tínhamos inventado armas mortais que haviam acabado por se voltar contra nós. Nesta mesma noite, uma máquina infernal — nuclear, bacteriológica ou química — podia ter explodido numa grande cidade, matando dezenas de milhares de pessoas e causando pânico global. Com alguma sorte, poderíamos adiar o desastre por mais um ano, dois anos, cinco anos… Mas tê-lo-íamos evitado indefinidamente? Certamente que não. Os ódios apenas aumentaram, e a tecnologia preparava para eles — umas vezes com conhecimento de causa, outras com perfeita inocência — os instrumentos que lhes permitiriam desencadear-se e destruir tudo. Qual a probabilidade de escaparmos de um cataclismo? Nenhuma. Foi por isso que os nossos contemporâneos se agarraram desta maneira aos seus salvadores inesperados.”
“E achas mesmo que todas essas pessoas que se estão a manifestar fazem a mesma análise que tu?”, perguntei-lhe eu.
“Talvez não usem o mesmo vocabulário, mas estão todas com o mesmo estado de espírito, causado pela mesma realidade calamitosa e pelos mesmos medos.”
Em resposta, limitei-me a franzir os lábios enigmaticamente. Não consigo dizer se a minha vizinha romancista está a ver bem a coisa ou se está enganada. É verdade que às vezes tem tendência para se entusiasmar, mas aprendi a nunca aceitar as suas “iluminações” de ânimo leve. (Cfr. pp. 214/215)

Nota: Este texto foi escrito há uns meses. Infelizmente, não perdeu actualidade.







quarta-feira, 13 de julho de 2022

A CLEPSIDRA: TEMPO DE DESCONTAR O TEMPO


Chega um momento em que, de forma mais ou menos súbita (e cortante), tomas consciência de que já não é tempo de contar o tempo, mas antes de o descontar. Sei que parece um lugar comum, e certamente o será para quem ainda não foi atingido por esta banal realidade; todavia, para quem o foi, a questão reveste-se de contornos subtis, embora gritantes, e induz reflexão e comparações que, até então, não ocorreriam (simplesmente, não poderiam ter ocorrido).

Por exemplo, compreendes a essência da canção Avec le temps e o porquê do fascínio que, desde jovem, exerceu sobre ti (e associas a recordação dos filmes do Ingmar Bergman, à cabeça, Morangos Silvestres, também vistos e pressentidos com tanta acuidade, ainda antes do tempo…). Mais curioso, pensas que o tempo ido é como os teus mortos, os entes queridos que já partiram, quero dizer, morreram.

Não pretendo ser confusa, passo a explicar ou, pelo menos, a ensaiar uma tentativa de explicação: aquela frase que ainda ontem pronunciavas a propósito de tantos episódios da tua era passada, a frase, parece que foi ontem, deixa de fazer sentido. Nada parece que foi ontem, nem a infância, nem a adolescência, nem o tempo dos primeiros amores ou dos últimos (sim, porque agora sabes que foram os últimos, embora também saibas que nada é definitivo, tudo se transforma e, curiosa e paradoxalmente, tudo permanece em aberto…); nem o que aconteceu, sei lá!, nos anos ou meses mais recentes parece que foi ontem ou sequer anteontem. Apenas foi e a memória do que foi esbate-se de cada vez que te bate à porta (ou lhe bates à porta) e deixas de distinguir a nitidez da imagem, a clareza dos sons e inclusive, talvez, o âmago dos sentimentos, último bastião de resistência. Mesmo que pretendas desfiar a linha da tua vida, organizar arquivos, fazer balanços, nem que seja apenas por um desejo (ou obsessão?) de limpeza – não para concluíres saldo, não vale a pena apurar o saldo do passado, precisamente porque o passado já se cumpriu e não se pode mudar –, facilmente perdes o fio da meada, derivas por caminhos paralelos ou não tanto que, aliás, a vida nada tem de linear, só na tua cabeça à procura de ordem, tentativa de organizar o caos, de preparar o momento para que a clepsidra desconta, mais ou menos apressadamente (consoante o cansaço da tua espera). É aí que entra a canção citada, porque, na verdade, Avec le temps, va, tout s’en va

E associas os teus mortos, os teus mortos que não podes dizer que morreram parece que foi ontem. Não foi ontem, foi quando foi e, tal como com o tempo, a princípio, quando ainda jaziam à vista, estendeste a tua mão para o alto, os dedos prolongados em frente e tiveste a sensação de que esses dedos (quase) tocavam os etéreos dedos deles, embora sabendo que pela última vez. Até idealizaste a cena do tecto da Capela Sistina, aquela em que o dedo de Deus se estende em direcção ao de Adão; só que, neste caso, pela mão de Michelangelo, para a eternidade, enquanto no teu caso – do (ansiado) toque entre a ponta dos teus dedos e a dos teus mortos –, tal contacto, pura idealização (ilusão sabida ilusão), se desvanece e, no momento seguinte, já não é possível, porque os teus dedos ficaram no mesmo lugar, esticados de meter dó, enquanto os deles, dos teus mortos, deslizavam para o desconhecido ou para lugar nenhum, à velocidade dos fenómenos espaciais.

E, à medida que o tempo passa, e muito contra tua vontade e com muita raiva tua, deixas de lhes recordar as feições, as feições dos teus mortos, não mais ouves o canto das suas vozes, das suas gargalhadas e dos seus choros, e os episódios que viveste com eles, bons ou maus – não há vidas perfeitas! – diminuem no rigor dos contornos. Talvez apenas permaneça a memória dos sentimentos ou, tão só, uma névoa dessa memória. O mesmo sucede com o teu tempo ido, mas nem isso te impede de, embora com estranheza e sentimento de culpa (ou algo semelhante), começares a senti-los longe, muito longe de ti, assim como longe está a criança e tudo o mais que foste, em tempos que não mais parece que foram ontem.

Em suma, as memórias remotas do tempo e das pessoas que te morreram e já não parece que foi/foram ontem permanecem, mas acomodadas na categoria das memórias da memória, uma outra forma ou um outro nível de identidade e de pertença, não sei bem a quê. Também não interessa saber. As coisas são como são e ter consciência delas, por duro que possa parecer, é melhor do que não ter, ao menos para quem não aprecia enganos, sobretudo para quem não aprecia auto-enganos.

Tudo isto para dizer que decidi deixar de ter o cabelo castanho claro (um pouco mais claro do que o seu natural), finalmente outorguei liberdade aos meus cabelos brancos. Ainda vai em poucos centímetros, não dá para ver se são muitos ou poucos, com distribuição homogénea ou não, logo se vê. Obviamente sei que vou parecer mais velha, mas que interessa o parecer quando comparado com o ser! E o ser, o que é, é que me tenho deixado fascinar pela clepsidra, plim, plim, plim, a água a pingar inexoravelmente e eu a pensar nos projectos que se acumulam e para os quais não vislumbro horizonte de realização útil. Who cares?, plim, plim, plim, Avec le temps, Morangos Silvestres, os dedos a deixar de se tocar, tretas, mas tretas que não podia deixar passar em vão, afinal sempre fui dada a reflexões e a (des)organizar as ideias, proporciona-me um certo conforto, isto de destralhar a mente (ou será o espírito?)… 

Estou a desfrutar do processo de libertação dos cabelos brancos. De resto, se não gostar do efeito, posso sempre voltar a pintar…


(imagem obtida em pesquisa Google)





quarta-feira, 8 de junho de 2022

A ILHA DAS CABEÇAS ROLANTES


Soprava um vento agudo, daqueles que assobiam histórias por contar; forçava-a a caminhar inclinada para a frente, atrapalhando-a na pressa de chegar ao cais onde o barco aguardava, impaciente, pronto a largar (pois, quanto mais depressa empreendesse a travessia, mais depressa estaria de regresso, afastado da ilha, o inóspito e acanhado rochedo onde apenas morava um farol desactivado e a casa, abandonada, do faroleiro).

As ondas agitavam-se numa ameaça de crescendo, em perfeita sintonia com a força do vento e, tal como este, soavam alto, no que, para quase todos, constituía, sem sombra de dúvida, uma ordem de distância, mas, para ela, representava simples apelo. Sentia-se atraída por aquela música que, aos ouvidos dos restantes, não passava de monstruoso ruído, ameaça de forças misteriosas, sabia-se lá quais.

O capitão do barco incluía-se neste grupo, o de quase todos excepto ela, mas não tivera coragem de recusar o inusitado pedido, transportá-la, a ela e aos seus pertences, até à ilha maldita — como a haviam designado após o encerramento do farol e a partida do último faroleiro.

A meia dúzia de casas, agora em ruínas, que completara a paisagem havia sido progressivamente abandonada, talvez pelas razões que conduziram ao desfecho final, aquele de que ninguém pretendia ou ousava falar, talvez por sequer lhe conhecer os exactos contornos, talvez pelas tenebrosas suspeitas que não podiam eximir-se de conjecturar.

Mas agora, ali estava ela, ofegante, puxando um trólei que, diferentemente da restante carga, não mandara previamente entregar ao capitão do barco, talvez por conter os seus bens mais preciosos, aqueles cuja conservação lhe interessava garantir a todo o custo — pelo menos foi o que ele pensou.


Quando ela o contactara a pedir aquele serviço, ele tentara sondar as suas motivações para tão desajustada pretensão, mudar-se para tal e tão suspeito isolamento. Ela evadiu resposta, aliás, de modo não inteiramente contundente, mas definitivamente eficaz, deixando claro que ele não tinha nada com isso. Ele abordou a questão num outro ângulo, insinuando as sombras que pairavam sobre a ilha, dados os acontecimentos aí ocorridos, mas, às perguntas concretas dela, não foi capaz de apresentar factos definitivos, claros e comprovados, porque, verdadeiramente, nem ele nem ninguém os conhecia (o aparecimento sucessivo de cabeças rolando na praia do lado de cá, à medida do desaparecimento dos parcos habitantes da ilha, nunca fora esclarecido, tanto mais que, para além do resto, os correspondentes corpos nunca  se encontraram…).

Chegados a este ponto, ela, no seu tom incisivo, confrontou-o com um surpreendente maço de notas e perguntou, de modo seco e definitivo, que não dava margem a mais hesitações ou tregiversações: — Responda-me, apenas, se está interessado em levar-me lá, a mim e a meia dúzia de caixotes que lhe serão entregues na véspera da partida, a efectuar depois de amanhã. Se não for o senhor, há-de ser outro. 

Ele sabia-a despossuída de razão, mais ninguém estaria disposto a prestar aquele serviço, mas, perante o volume de notas exibido e, sobretudo, mais qualquer coisa, talvez a força hipnótica que exalava dos olhos dela, perfurando os seus, aceitou. Ainda a advertiu da necessidade de antecipada consulta das condições meteorológicas para o dia pretendido, pois, sob certas condições, aquele mar tornava-se deveras perigoso, mas ela recusou-se a aceitar adiamentos, enfiou-lhe as notas na mão, virou costas e, elevando um braço, disse: – Até depois de amanhã, sexta-feira, nessa altura dou-lhe o resto do dinheiro. Ele espantou-se, mas da sua boca aberta não saiu som que a conseguisse alcançar, estava já fora de vistas, mas esse som exprimiria a dúvida sobre que dinheiro a mais, afinal não era já imensamente desproporcionada a quantia entregue, elevadíssima para tão curta travessia!? Bem, afinal talvez ela soubesse que o preço daquele transporte não se media em simples questão de distância, talvez. Afinal, quem era aquela mulher? Porque quereria mudar-se para um sítio tão inóspito e sinistro, para mais, sozinha? Assim fluíram, inquietos, os pensamentos do capitão.


Quando, finalmente, chegou ao cais, ele aguardava-a, preocupado, sem saber muito bem como abordar a questão. Enquanto hesitava em carregar o trólei e ajudá-la a subir para o barco, que balançava perigosamente nas vagas rentes ao cais, disse-lhe: – A senhora há de desculpar, mas, como vê, o mar está muito agitado, repare só na altura das ondas, e a velocidade do vento não para de aumentar, pelo que a travessia não pode ser efectuada em condições de mínima segurança. Temos de adiar, aliás, a previsão para amanhã é bem mais favorável e, por certo, apenas um dia de espera não deverá causar-lhe grande transtorno.

Sem sequer uma hesitação, ela retirou novo maço de notas do bolso do impermeável azul eléctrico que a cobria do pescoço até à borda das botas de borracha, enfiou-lho na mão e disse: – Tem de ser hoje, não há alternativa, contrato é contrato, e pode crer que os riscos de incumprimento serão bem superiores aos do mau tempo…

Intrigado e dominado por um medo irracional, sugerido por esta ameaça incompreensível, ele resignou-se ás ordens dela e, em menos de dez minutos, entranharam-se naquela rota de alturas gigantescas e mergulhos profundos, antecipando, a cada segundo, o momento em que iriam ser depositados no fundo do mar, empurrados pelos destroços da frágil embarcação. Estes eram os receios dele, no meio do dantesco esforço por controlar os nervos e o barco, no cerne de tão funesto temporal. Quanto a ela, permanecia numa calma espantosa, apenas exibindo tensão na forma como agarrava as mãos a um varão metálico, tentando não ser arrastada borda fora.

Em menos de vinte minutos de tormenta, que a ele pareceram anos, acostaram no cais, quase desfeito, da ilha. Ele ancorou o barco conforme pode, ajudou-a a sair e, aliviado por ter conseguido chegar inteiro, mas revoltado perante a arbitrariedade das ordens dela, começou a descarregar os caixotes, sob a chuva torrencial  que lhe deslizava para as costas, escorrida da gola do impermeável, já de si todo encharcado da travessia. Uma vez concluída a tarefa, deixou-se ficar, enquanto ela, encostada ao trólei, o observava com ar interrogativo. Como se condicionado por ordem irrecusável, ele ofereceu-se para a ajudar a transportar os pertences, ao que ela anuiu, com naturalidade e sem surpresa, como se isso fosse o mais natural deste mundo, como se ele acumulasse as funções de marinheiro com as de carregador. Ao fim de um tempo, estava tudo dentro da casa do faroleiro. Ela sorriu pela primeira vez — Que sorriso lindo, parece outra pessoa!, pensou ele, estranhamente conquistado — e convidou-o a tomar uma bebida quente, enquanto abria um dos caixotes e retirava duas canecas e, da mochila, um termos. Despejou café nas canecas e estendeu-lhe uma delas. Ele segurou-a, grato, e levou-a à boca, deixando-se inundar pelo aroma e quentura da bebida. Ela fez o mesmo, sentada num dos caixotes por abrir.

Terminado o café, ela levantou-se e encaminhou o homem até à saída. Desejou-lhe boa viagem de regresso e, sem mais, fechou a porta, deixando-o exposto ao temporal que continuava a violentar o exterior, enegrecendo o rochedo mais do que negro ele já era por natureza. O vento uivava por entre as frinchas das janelas e, através dos vidros enevoados, ela viu-o caminhar apressado para o barco, num desespero por sair dali — Óptimo!, pensou ela, enquanto sorria num esgar trocista e impiedoso.

Chegado ao barco, ele hesitou,  mas acabou por entrar, sempre ficaria abrigado da chuva e do vento, mas não se atreveu a dar início à viagem de regresso, não enquanto aquelas condições permanecessem. Sabia que não estava seguro, o barco podia ser atirado contra os rochedos, mas a perspectiva de ser engolido pelo mar afigurou-se-lhe ainda mais aterradora, pelo que decidiu aguardar. Desconhecia que, duma das janelas da casa do faroleiro, um par de olhos frios e impacientes o observavam, desejosos de o verem fora dali, como se o que quer que ali tivessem ido fazer requeresse a mais pura solidão ou não pudesse de todo ser observado por testemunhas imprevistas (e indesejadas).

Entretanto, uma escuridão maior foi-se instalando, à medida do avanço das horas, o vento foi amainando, a chuva recolheu às nuvens e as ondas, se bem que agitadas, foram-se acalmando. O marinheiro aventurou-se, finalmente, a regressar, não sem lançar um olhar derradeiro à casa do faroleiro, que mal se divisava, às escuras. Então, viu uma réstia de luz. Seguindo-lhe o rasto ascendente, deparou com o topo do farol, o farol desactivado que voltara a acender-se sobre o mar à volta. Sentiu uma pressa ainda maior de zarpar dali. O motor do barco roncou na sua potência máxima.


(Caríssim@s leitores,

Se passarem por cá e quiserem saber o que se passou a seguir, por exemplo, se o marinheiro chegou são e salvo, por favor deixem comentário nesse sentido... 😉)








segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O MEU PRIMO RAUL PARTIU


Um menino com ar vivo, olhos grandes, amendoados, brilhantes, cabelo preto, caracóis (?), a vida toda pela frente, um entusiasmo que não passa despercebido.

É o meu primo Raul, uns poucos anos (quatro, cinco?) mais novo do que eu, naquele dia longínquo em que o convidámos para almoçar lá em casa, almoço do meu aniversário, eu no início da adolescência, ele para lá caminhando. Veio connosco, meu Pai e eu, do Liceu, era 17 de Dezembro de um ano muito ido, embora para a conservação da memória, esta de que venho falar, pareça o ano ontem.

Em nossa casa, os dias de aniversário eram celebrados com muito carinho, um ou dois presentes – nada de grandes aparatos e muito menos carestias – e almoço melhorado, sempre a culminar no bolo russo ou bolo enrolado – torta de chocolate –, que a Mãe, com suas delicadas mãos, terminava num acabamento de açúcar, desenhado com finos traços decorativos. A mesa, vestida de toalha festiva, era enfeitada, as mesmas mãos, com bombons animados de variadas cores, feitos de chocolate recheado com um creme ligeiro. Não recordo se havia o hábito de se cantarem os Parabéns e soprarem velas, creio que não, mas aqueles eram ditos do fundo do coração, logo pela manhã, – nesse dia, sendo eu a destinatária, assim: Viva a Bélita! Tudo se restringia ao nosso núcleo familiar, pais, avó que connosco vivia, meu irmão e eu. 

Contudo, naquele dia, por razões que me fugiram da memória, convidámos aquele priminho. E ainda bem! Levou-nos alegria e vivacidade e, também, um presente para mim. Tratou-se de um cachecol de xadrez, em tons suaves que incluíam um diáfano verde água, feito de tecido macio e envolvente, que achei maravilhoso, tanto naquela altura como muito mais tarde, quando, já levado por anos de distância, lhe perdi o rasto, mas nem assim deixei de o procurar no enorme malão da cave, onde iam parar as peças caídas em desuso. Creio que o cachecol representou, para mim, a novidade de um presente extra – tão mais valorizado quanto, por esses tempos, eram raros e de pouca monta os presentes que me cabia receber –, mas, sobretudo, a alegria de a mesa de aniversário se ter aberto a um novo comensal, desmentindo a ideia de que o mundo éramos apenas nós os cinco.

Na verdade, adorei a novidade do almoço com novo participante e, estou certa, o Raul adorou o almoço. Disse até – e creio terem sido estas as suas palavras – que havia de ir mais vezes almoçar a casa do tio doutor (meu pai, professor do Liceu, irmão mais velho da sua mãe).

O tempo correu, como sempre corre, e, anos mais tarde, vim a cruzar-me com ele, também em casa de meus pais – na cidade da qual ambos já tínhamos saído –, acompanhado da mulher e de duas ou três crianças pequeninas, seus filhos. Era ainda muito novo, creio que na casa dos vinte, e eu comentei, – Então, Raul, já tantos meninos!, agora ficas-te por aqui, não? Respondeu-me, com convicção, que viriam os que Deus quisesse. E assim foi, as crianças foram-se sucedendo, formou uma linda e vasta família.

Entretanto – dotado de formação superior na área de engenharia –, afirmou-se e ascendeu profissionalmente a limiares justificados por uma clara inteligência e uma enorme força de vontade e competência.

A dada altura, precisei de uma ajuda sua e não hesitou em prestar-ma.

O tempo continuou a correr, como sempre corre, já se sabe, e nas décadas seguintes – aliás, à semelhança de sempre –, poucas vezes nos vimos, essas poucas em bons e maus momentos da vida familiar.

Há uns tempos, tive conhecimento de que o Raul, que sempre vira pujante de força e afirmação, padecia de uma doença grave.

Hoje, o meu irmão telefonou-me a dar a tristíssima notícia da sua morte, a morte do menino espevitado e alegre que tinha levado um bonito e inesquecível cachecol e, sobretudo, um fôlego complementar de vida e alegria ao meu longínquo aniversário já não sei de há quantos anos. Vieram-me as lágrimas aos olhos, engoli-as, decidi converte-las em palavras.

Há pessoas que, nem que seja por um curto episódio de vida, têm lugar marcado no nosso coração, não importando se com elas convivemos muito ou pouco. Assim o Raul, para mim. 

Despeço-me dele desta maneira, desejando que descanse em paz, na santa paz do Senhor, como creio ser aquilo que almejava e em que acreditava.






quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

POBREZA MENSTRUAL...

...OU SERÁ POBREZA MENTAL?

Há tempos, num zapping pela TV, deparei-me com uma jovem, ao que percebi deputada (ignoro por quem e porquê), a perorar sobre "pobreza menstrual". 
Obviamente – acho eu! – fiquei perplexa e, ao mesmo tempo, curiosa, sobre o significado de tal expressão. De tal forma que nem me ocorreu qualquer significado possível, por exemplo, baixo caudal menstrual (como uma amiga a quem contei, por certo mais criativa do que eu, sugeriu).
Felizmente, a entrevistadora, ciente da burrice ou falta de imaginação de espectadores (ou deverei escrever espectador@s?) como eu, pediu gentilmente à entrevistada que explicasse do que falava. E foi aí que se fez luz: "pobreza menstrual" é a situação em que se encontram as mulheres – suponho que os homens ainda não sofrem essa carga mensal – carentes de meios económicos para suportar as despesas com os artigos de higiene, vulgo, pensos/tampões higiénicos e afins, necessários durante a menstruação.
Logo uma outra convidada do programa, abanando afirmativa e compungidamente, a cabeça, referiu que até havia quem recorresse a pão para fazer as vezes de penso higiénico…
Desliguei, de imediato, a televisão, não me fosse aparecer outro assunto do género, logo a mim, que só procurava uma série policial ou um filme de jeito.
A situação em causa é, obviamente, do mais lamentável, triste e revoltante que se pode imaginar. Só que, em minha opinião, tem apenas um nome: pobreza! Não é dela que aqui trato, até porque, infelizmente, por mim só, não disponho de competência ou capacidade para a resolver.
Trato, antes e apenas, da questão ou abordagem terminológica.
É que me irrita solenemente esta tendência, entroncada no execrável, porque hipócrita e hitleriano, politicamente correcto, de atribuir certos nomes às realidades, como se assim ganhassem uma importância que doutro modo não alcançariam, no pressuposto de que só os utilizadores dessa nomenclatura estão habilitados ou titulados a invocar as realidades subjacentes, sendo, por outro lado, banida a terminologia habitual, como menor e desadequada. Existe, ainda,  uma certa provocação no uso de dadas palavras como expressão de uma afirmação de princípio — de que devem ser empregues para se atingir o cerne das respectivas problemáticas. Enfim, uma espécie de pensamentos mágicos!
Ora bem, segundo me parece, uma pessoa que não dispõe de dinheiro para prover os bens necessários à higiene durante a fase menstrual é, pura e simplesmente, uma pessoa pobre. POBRE. E pobres não deviam pura e simplesmente existir, aliás e para evitar mal-entendidos, a pobreza, na sua abjecção social e moral, não devia existir ou, sequer, ser admissível!
Então para quê autonomizar essa faceta da pobreza? Será que providenciando pensos higiénicos a essa mulheres pobres elas deixam de ser pobres? Não me parece.
Resta ainda outra questão: uma vez autonomizada tal expressão da pobreza, porque não autonomizar as restantes, por exemplo: pobreza fecal (falta de dinheiro para papel higiénico) ou pobreza ranhosa (falta de dinheiro para lenços)… Ridículo, não é?
Por falar em ridículo, querem saber outra? Agora não é de bom tom contrapor mulher a homem, devendo aquela ser designada como "pessoa com vagina" e este – calculo – como "pessoa com…". Bem, fico-me por aqui, que já basta de parvoíce.