segunda-feira, 15 de abril de 2024

BAIÔA SEM DATA PARA MORRER


«O meu pai odiava o lugar, os meus avós tinham morrido na capital, onde moravam há décadas, e o telhado da casa da aldeia caíra mais ou menos na mesma altura, segundo a minha mãe fruto de alinhamento cósmico, ou por vontade de deus, porque isto anda tudo ligado, porque nós não somos nada.» 

Livros, o que seria de mim sem livros! Pois é, fazem parte, aliás essencial, da minha alimentação e, de vez em quando, não resisto a falar sobre algum, forma de partilha ou convite. É o caso deste, mencionado em título e ao qual pertence a transcrição acabada de fazer, em jeito de epígrafe, da autoria de Rui Couceiro.


Habitava em mim a vaga reminiscência do (intrigante) título, creio que por via  de entrevista captada em algum programa de rádio ou em qualquer plataforma da Internet, não sei bem, mas algo ouvi que germinou em curiosidade latente. O tempo foi passando e ele a esvair-se, todavia sem deixar de latejar no incansável recanto da minha mente onde se aloja a avidez por novas leituras, pela descoberta de novos escritores.


Até que um dia, deparei-me com a página do Autor numa rede social (Facebook) e, hélas!, de forma por sinal bem engenhosa e divertida, ele fazia referência à sua dita obra. Ficou logo ali decidida a minha próxima aquisição literária, o que rapidamente se concretizou e, daí à leitura, foi apenas o (breve) compasso de espera para acabar de ler o livro então em curso.


Explicado como lá cheguei, agora, sim, vou falar do livro, BAIÔA, assim abreviado, por simplificação mas não só – também como homenagem ao personagem portador desse nome, tão rico de humanidade quanto parco de palavras.


Tomadas as primeiras páginas, deparei-me com um narrador, personagem-narrador, que me deu a conhecer uma aldeia perdida na fundura alentejana, de seu (sugestivo) nome Gorda-e-Feia – pobre dela, não lhe bastava a gordura, ainda tinha de acumular a feiura, que ele há sortes mesmo más!, foi o que pensei de imediato.


Uma aldeia abandonada a meia dúzia de sobreviventes de vidas idas, velhos, portanto, cada um com suas idiossincrasias, cujo ponto de encontro/reunião social é a taberna de um deles, que, todavia, não exerce apenas de taberneiro, acumulando com outra actividade, à qual todos acabam sempre por precisar de recorrer, mas que não vou revelar, pois isso não se faz, não se desvenda o mistério para frustar o prazer da descoberta, ou seja e como agora se diz, nada de fazer spoiler.


Pois bem, é precisamente à porta dessa taberna que o nosso narrador (e, para mim, personagem principal, sem pretender retirar importância aos restantes), vai ter, quando, num ímpeto de determinação em abandonar uma vida de que apenas nos revela o essencial – mas sobre a qual largamente me permiti divagar, não deixando de parte a suspeita de um desgosto amoroso... –, decide mudar-se para a dita aldeia, ele, homem jovem, no início dos trinta, único jovem, no meio da tal meia dúzia de velhos e velhas.


Na verdade, tratou-se de um ímpeto, de agarrar uma oportunidade de mudança, de resto, tão radical quanto inusitada, surgida duma circunstância imprevisível, mas que constitui o cerne da questão, quero dizer, da história, o ponto de partida para o que vai desenrolar-se perante o nosso olhar, surpreso, atónito, comovido, divertido e mais uns quantos estados de alma que a narrativa dos estranhos fenómenos que por ali sucedem nos vai despertando.


A circunstância foi que um dos moradores da aldeia, o velho Baiôa (nem imaginava que tal fosse nome de gente, aliás, continuo sem saber, mas isso não interessa nada), ciente de um segredo partilhado por um tal Dr. Bártolo – o médico da aldeia e investigador de assuntos entre o científico e o, por assim dizer, esotérico –, vai empreender, com enorme determinação e empenho e a expensas suas, um plano de renovação das casas da aldeia, derreadas de degradação à medida do abandono (emigração e morte) dos seus moradores, plano esse, com o qual visa garantir o chamamento ao lugar de novos habitantes, sobretudo habitantes novos, que garantam a permanência no mapa da vida da agora exausta, despovoada e semi-morta, enfim, em vias de extinção, Gorda-e-Feia (e eu logo de imaginá-la transformada em Esbelta-e-Bela, mas isto sou eu, não é do livro nem estava nos planos de Baiôa, pois o nome da aldeia sempre seria o seu traço de identidade e, como tal, nem lhe passaria pela cabeça mudá-lo, tenho a certeza).


A primeira casa reconstruída por Baiôa calhou ser a da família do nosso narrador, há muito estabelecida em Lisboa, e, comunicada a notícia, foi recebida com gratidão e entusiasmo pela mãe e acolhida por ele com a tal determinação (desespero?) de necessária mudança, quanto mais não fosse, para sair da zona de desconforto que constituía a sua vida de professor-aqui-e-ali e, sobretudo, de agarrado às redes sociais em elevado grau de dependência, vivendo através de fotografias, posts e pertinentes reacções – e mais não nos conta, mas somos livres de imaginar.


Estranhamente, a diferença etária e cultural entre o jovem recém-chegado e os poucos habitantes da aldeia, superado o choque inicial (da mudez com que que é recebido à porta da taberna), não constitui obstáculo a que se estabeleça uma aproximação e  amigável relacionamento entre eles. Na verdade, à semelhança dos outros, ele passa a frequentar o ponto de encontro, a taberna, vai conhecendo a vida de cada um e, sobretudo, torna-se o ajudante cúmplice e esforçado de Baiôa na reconstrução das casas destroçadas. A relação entre ambos vai-se estreitando, ao ponto de Baiôa, aliás homem de poucas palavras – excepto com as árvores –, o ter posto a par do segredo do Dr. Bártolo, o tal segredo que está na origem daquela sua necessidade e urgência de resgatar Gorda-e-Feia para a vida, já não digo para a elegância e a beleza, apesar de que a reconstrução das casas não deixará de dar um contributo nesse sentido – digo eu, aqui a falar sozinha.


Enquanto nos põe a par desta sua experiência, o narrador revela-nos, a pouco e pouco, as vidas dos parcos habitantes da aldeia e, não menos importante, aliás, central em todo o contexto, acaba por nos desvendar o segredo, o tal segredo que comanda toda a actuação de Baiôa e, em última análise, a sua própria ida para a aldeia, pois se a casa da família não lhe tivesse sido devolvida completamente reconstruída e pronta a habitar, ainda hoje ele andaria a carregar as malas de terra em terra, no exercício da docência, e a viver através de fotografias, palavras e emojis publicados nas redes sociais, sempre num afã crescente e febril necessidade de preenchimento de profunda insatisfação e árido vazio – imagino eu, a menos que tivesse sido consumido por um Burnout, que também sucede em tais casos, e seria deveras lamentável, pois nos privaria da fantástica história que trouxe até nós.


Ora, aquela nova vida assentou-lhe tão bem, que é delicioso ouvir a sua narrativa do que se passou e passa em Gorda-e-Feia, sobretudo pela calma, ponderação, generosidade, elegância, esmero e, não menos importante, o sentido do tempo e o sentido de humor com que o faz. A ligação entre o real e o imaginário, o genuíno e o simbólico, o passado e o presente, a conviverem em harmonia deliciosa. E, se assim o ouvimos com deleite, é também com deleite que o lemos, pois que, afinal, de leitura se trata, e o livro está muito bem escrito.


Aqui chegada, parece-me dispensável concluir o óbvio, ou seja: adorei ler BAIÔA, um livro deveras bem escrito, bem desenhado e construído, que, num jeito mágico e irónico e com um timing perfeito, nos fala de temáticas caras, nomeadamente, em termos humanos (velhice, abandono, solidariedade...), sociológicos (desertificação, mudança de paradigmas de vida...) e, inclusivamente, políticos (promessas e aproveitamentos eleitorais...).


Recomendo, pois, vivamente, a leitura deste romance e, já agora, anuncio, entusiasmada, que o próximo romance do Autor virá ter connosco dentro de pouco tempo.


Seguir o Autor nas redes sociais é, igualmente, algo que aconselho, pela valia das notícias editoriais que vai partilhando – é Editor da @contrapontoeditores – , e, em geral, das suas publicações, caracterizadas pelo bom gosto e bom senso. De resto – e abro um parêntesis para o referir – é por encontros como este que permaneço nas redes sociais, apesar da miséria muita que por lá também pulula.