terça-feira, 9 de novembro de 2021

A PROIBIÇÃO DO OUTONO

pessoas cinzentas deslizam pela rua, aqueles dois, homem e mulher, de mãos dadas, força do hábito, comodidade ou outra porra qualquer, duvido que seja amor, ela de cara tensa, talvez pensando que o domingo em breve será segunda-feira, ele abstraído num mundo só dele, bem podiam desligar-se das mãos que nem dariam conta, os corpos prosseguiriam cada um por seu lado, talvez em direcções opostas; ou então não, foi apenas o amor a resistir à passagem do tempo, o mesmo é dizer, da vida, há quem afirme existirem casos que tais e, a ser assim, a cara tensa dela há de descontrair-se e a cara vaga dele há de baixar à terra, quando se olharem frente a frente, por exemplo, ao chegarem a casa, e até lá entregam as despesas da conversa e da comunicação às suas mãos unidas por hábito de amor, aqui não há lugar a mais hipóteses.
e o sol, agora já tão baixo, brilha num céu plenamente azul, aquece o horizonte e as proximidades, ambos, sol e céu, conluiados numa tirania arrogante, impedindo o outono de se manifestar. nem farrapo de cinza nem fita de água deslizando das alturas, nem ambiente de castanha assada e quase véspera de natal. porém, não faltam iluminações absurdas, absurdas por este sol, tirano dourado, por este céu, tirano azul, conspirando ambos contra quem de direito aqui devia estar a repor o lugar da nostalgia e do aconchego, esses lugares cinzentos que velam o longe e restituem a calidez da infância.
avanço, logo à frente paro, e assim e assim sempre, porque é a cidade iluminada de céu e sol, os semáforos domingueiros estão malucos e os condutores adormecidos, demoram eternidades a arrancar, como me irritam estes pasmados!, cidadãos pasmados, talvez amolecidos por este sol e este céu fora de tempo. sim, sei-me excepção nisto de padecer por carência de outono, dessa espécie de cinzento.
passo por sítios que me são velhos, como o instituto do medicina legal, que já me vi obrigada a frequentar, não na qualidade de morta (e daí, quem sabe?), mas na de observadora de autópsias – exigência da cadeira de medicina legal. memórias evitáveis, que, todavia, insistem em permanecer.
memórias outras, bem melhores: o fim de setembro/princípio de outubro, quando o tempo era como devia ser, as estações do ano iguais em direitos, não sujeitas à tirania umas das outras, função de absurdas e irreparáveis alterações climáticas. nem de propósito, lá estão eles em glasgow, mais uma cimeira da treta, fazem de conta, agendam metas para decénios futuros, quando já não estarão cá e talvez já ninguém esteja. bem vistas as coisas, poderá residir aí a solução, deixar morrer o planeta de humanos, para depois a natureza renascer em paz.
regressei a casa.
as pessoas cinzentas também regressaram ou hão de regressar a casa, é o recolher da escuridão, os tiranos retiraram-se, um abaixo do horizonte, o outro atrás do manto lunar, faz escuro, descontando as estrelas e os candeeiros. o casal de mãos dadas deslargou-se para entrar em casa e agora vamos ficar a saber se era amor, aquilo das mãos dadas e das caras a direito, ela tensa, na sua, ele absorto, na dele. irão enlear-se num beijo, as mãos dele segurando o pescoço dela, as dela rodeando as costas dele? ainda que sem palavras? sem palavras, mas com desejo ou apenas ternura? ou as palavras são as derradeiras provas de amor? haverá amor sem palavras? por exemplo, a palavra amor, significa o quê? poderá traduzir a tensão de uma cara e a dispersão da outra, entrelaçadas pelos dedos de duas mãos que só se desprendem para entrar em casa?
e o outono, que significa agora o outono, quando há dois tiranos luminosos à solta empenhados em o proibir?
dúvidas, apenas dúvidas, já não existem certezas, nunca houve tanta  carência de certezas. por isso me faz falta o outono, ser reconduzida ao aconchego da idade infantil, aquela em que tudo era tão certo e tão seguro como as nuvens e a chuva de fins de setembro/princípios de outubro, altura em que o fumo das castanhas assadas se evolava desenhando um cheiro morno e acariciador e as mãos dos pais distribuíam protecção, enquanto das suas bocas saíam palavras definitivas e indesmentíveis.