sábado, 25 de abril de 2020

55º DIA DAQUILO: RED BULL E ALGO MAIS


Breves reflexões sobre modo de vida e outras coisas do confinamento:

1. Confesso-me absolutamente espantada com a minha capacidade de trabalho doméstico. Agora sem empregada e a passar imenso tempo em casa, tenho dedicado bastas horas às limpezas e ainda vou desencantando uns momentos para arrumações/reorganização de... coisas. Em particular:

a) Espanta-me a inusitada energia, que ignoro de onde vem. Desconfio que a Epal anda a misturar Red Bull na água canalizada... 

b) Deprime-me a quantidade de que flutua no ar e daí se lança sobre móveis e soalhos com uma velocidade superior à da disseminação do Covid-19; aliás, hesito em atribuir o 1º lugar de pior praga a um ou a outro (mas talvez seja porque ainda não apanhei este – esperando que assim continue – e, em contrapartida, não paro de apanhar aquele).

c) À força de tanto manusear objectos das lides domésticas – exceptuados os de cozinha que, após breve e trabalhosa incursão, me apressei a ignorar –, começo a ver-me como uma espécie de Eduarda-Mãos-de-Esfregona. Um dia destes, comecei a olhar para as mãos e, em vez de dedos, vislumbrei fitas de esfregona. Cor de rosa!!! Corri para o espelho, a fim de confirmar se era verdade e, já agora, verificar se também me tinha nascido um corno na testa, porque, chegado a sofrer alguma mutação inesperada, talvez preferisse virar unicórnio. Parei a meio caminho, a pensar: será que este estado de espírito pode considerar-se perigoso e sintomático de qualquer coisa má, sei lá...?

d) Para quem diz que o confinamento é mau para o convívio, tenho muita pena de contrariar: pela minha parte, tenho convivido muito mais. Só que é com ácaros! Também conta, não?

2. Talvez o vírus não venha a sofrer significativa mutação – que sei eu, não cientista, quando estes nada parecem saber?! –, mas o mesmo se não aplica à Língua Portuguesa. 

Na verdade, tenho reparado que a ministra da saúde, ao dirigir-se aos jornalistas, começa assim: "Dizer que", em vez de, por exemplo, "Importa dizer que", "Posso dizer-vos que", etc. A moda já se pegou a outros, sendo frequente ouvirem-se frases iniciadas desse modo. Dizer que não me soa bem! Crer que talvez indicie necessidade de rentabilizar o factor tempo. Estar sobre pressão, perdão, estar sob pressão: também tenho ouvido muito aquele sobre, mas esta já conhecia.

3. É só novidades! Não bastava o bicho mau, vindo do morcego, do laboratório de Wuhan ou lá de onde raio veio, agora também apareceu o TNT (no contexto dos materiais usados no fabrico de máscaras)! A princípio pensei tratar-se de um explosivo destinado a neutralizar os perdigotos, mas depois explicaram-me que se trata de tecido não tecido (daí a sigla). Pergunto-me: se não é tecido porque lhe chamam tecido? Só para terem o gosto de especificar que não é tecido? Se é tecido, porque dizem que não é tecido? Ok já percebi o que é, mas não deixa de me parecer palerma chamar-se algo a alguma coisa só para acrescentar que essa coisa não é esse algo. E inventar um nome que não contenha tecido?

4. Agora "a" frase do milhão de dólares (falsos): "Vamos todos ficar bem"! Vamos todos ficar bem quê? Compreendo, não se pode generalizar, porque nem todos vão ficar bem a mesma coisa: bem infectados, bem internados, bem nos cuidados intensivos, bem mortos, bem recuperados, bem-felizmente-ao-lado, bem em lay-off, bem nem em lay-off, bem desempregados, bem empregados, bem casados, bem divorciados, bem mais fracos, bem mais fortes, bem malucos, bem ajuizados, bem assim-assim, bem-etc. Em suma, trata-se de uma frase fraquinha que sofre de incompletude e revela susceptibilidade de enganar lorpas. Já agora, gostava de saber como vai ficar o autor da dita, se é que já não ficou.

Por hoje fico-me por aqui. Embora não possa prometer nada – desde logo porque não sei em que categoria de bem ficarei –, tenciono voltar para vos falar de máscaras e, não menos importante (e na 1ª pessoa), de como o teste do Covid-19 é bem... depois digo.









domingo, 19 de abril de 2020

48º DIA DAQUILO: ASSUMAM-SE!


E dizerem ao que vêm?

É verdade que, de momento, tudo gira à volta do Covid-19, o novo vírus a respeito do qual o pouco que se sabe parece reduzir-se ao elevadíssimo grau de contágio e perigosidade. 

Acontece que esta realidade nova e desconhecida convive com realidades velhas e conhecidas de todos os dias, mesmo que estas, para se manterem à tona, tenham de cavalgar o malfadado bicho, como quem precisa de boleia para libertar seus vapores bafientos, únicos de que, simultaneamente, se alimenta e respira.

Refiro-me a todos os reacionários, saudosos da mesquinha ditadura derrubada pelo 25 de Abril e que, nessa qualidade, sempre estiveram intrinsecamente contra a respectiva celebração, mesmo faltando-lhes coragem para o assumir; os mesmos que, por semelhante ideário (quando o têm; alguns não parecem capazes de parir uma ideia que seja...), assumem idêntica postura no tocante ao 1° de Maio, por se tratar do Dia do Trabalhador, entidade que, também intrinsecamente, desprezam.

Esta fina flor anda em magno falatório e reboliço a insurgir-se contra as anunciadas celebrações dessas datas, sobretudo a primeira (sem cuja efeméride, aliás, inexistiria a segunda). Isto, alegadamente, em nome do perigo que, dado o Covid-19, o ajuntamento de pessoas representa.

Todavia e (não) curiosamente, tal fina flor tende a coincidir com a que, em nome dum ideário ultraliberal (na melhor das hipóteses!), se vem, igualmente, manifestando contra a política adoptada no nosso País para combate ao Covid-19, sobretudo contra a implementação do estado de emergência, propugnando, em contrapartida, a irrestrita circulação das pessoas (e, em consequência, do vírus, digo eu!), em nome da economia.

Eu e, certamente, muitos outros, que nada temos em comum com o ideário dos acabados de mencionar e que, pelo contrário, entendemos e defendemos a importância política e cívica da celebração das datas em causa — desde logo, no meu caso e no de tantos mais, porque vivemos a ditadura e não gostámos nem queremos que se repita –, também estamos contra a forma proposta, no corrente ano, para essa celebração. Isto, por entendermos que, face à política restritiva adoptada – em meu entender, bem – para combate ao Covid-19, não só carece de sentido como representa lamentável e perigoso mau exemplo, promover a excessiva reunião de pessoas. Tanto mais que desnecessária, porquanto, atentas as circunstâncias, a manutenção das comemorações seria compatível e deveria ficar-se por algo de meramente simbólico e, ao mesmo tempo, educativo (note-se, de resto,  que os actos simbólicos costumam ser bem mais fortes do que os ostentatórios).

Assim sendo, o que nos distingue? 

O que nos distingue é simples questão de princípio (e consequente legitimidade), a saber: o fundamento da nossa posição radica mesmo na ameaça/Covid-19 e na partilha duma hierarquia de valores que prioriza a pessoa humana sobre os interesses económicos; já o fundamento da posição dos primeiramente mencionados é o ódio que (de forma mais ou menos aberta ou expressa) sempre professaram  ao 25 de Abril/1°de Maio e a partilha duma hierarquia inversa àqueloutra. De resto, nós estamos contra a forma proposta, eles contra o próprio acto

E não estão no seu direito, perguntar-se-á? 

Pois sim, também para isso se fez o 25 de Abril!!!

Mas, por favor, tenham coragem, digam ao que vêm, deixem de cavalgar o bicho mau para deitarem as garras de fora! Deixem-se de desculpas e populismos, assumam-se!

Ou será pedir muito?










domingo, 12 de abril de 2020

42º DIA DAQUILO: UMA CASA AZUL


No início da situação de pandemia (Covid-19) que se abateu sobre nós, tive natural curiosidade, aliás, interesse, em seguir os noticiários e outras fontes de informação, para tentar compreender, tanto quanto possível, a natureza do fenómeno e a melhor forma de me defender. 

Na condição de leiga, rapidamente concluí estar de posse da (pouca) informação (credível) necessária e suficiente para tais objectivos, sobretudo o da auto-defesa. Passei a cingir-me às fontes oficiais, temperadas com uma certa dose de bom-senso (v.g., sempre me pareceu preferível o uso de máscara...).

Concentrei-me no objectivo que me pareceu prioritário: adaptar-me à inusitada situação, colocando de lado o medo e o desconforto, sem esquecer a atenção devida às cautelas necessárias.   

Este processo (mental) implica não pensar demasiado no assunto, principalmente, nos vários "ses", "efeitos colaterais" e "amanhãs que choram" que o mesmo necessariamente comporta e manter-me produtivamente ocupada.

Em geral, tem corrido bastante bem, obviamente, com recurso a ferramentas de racionalização. Todavia, um dia destes, dei comigo a sofrer uma forte chamada à realidade: um carro da polícia passou pela minha rua, espalhando, por altifalante, uma mensagem de aconselhamento à permanência em casa. 

Curiosamente, este facto – e não, por exemplo, a indicação do número de infectados/mortos/recuperados – foi o suficiente para me levar ao fulcro do absurdo (por novidade e carência de defesa) da situação. Senti um calafrio ainda antes não experimentado. Um acontecimento tão banal e as emoções a deitarem as garras de fora (são f******, as emoções)!

Rapidamente me recompus, mas aquilo ficou a ruminar e senti que tinha de o deitar cá para fora. Tentei a forma narrativa, mas não fiquei satisfeita. Então, uma destas noites, no período de transição para o sono – pródigo em tantas ideias criativas, umas salvas outras não – dei comigo a pensar numa casa azul que se confundia com o azul do céu. Aparentemente, nada tinha a ver com o assunto, mas acabou por se revelar doutra maneira...

... como poderá confirmar-se com a história de

uma casa azul


no cimo da montanha mais alta havia uma casa azul
azul era a casa, azul era o céu
confundiam-se no azul comum

à distância não se podia distinguir
apenas imaginar
(embora a imaginação conseguisse por no cimo da montanha
uma casa ou um pássaro
uma pessoa, um peixe, um elefante
uma salsicha, um carro, uns patins
qualquer coisa que não se visse
desde que azul
até um céu dentro do céu
ou um inferno
desde que azul)
na realidade, não dava para distinguir
justamente pelo azul
o azul da casa, o azul do céu

um dia a casa veio por ali abaixo aos trambolhões
à distância, ninguém percebeu tratar-se de uma casa
só que era azul
mais perto já não dava para perceber
pois a casa tinha-se desmembrado na descida
apenas farrapos soltos de azul
as pessoas pensaram tratar-se de pedaços de céu
cansados das alturas

olharam para cima e o céu estava cinzento
não podem ser pedaços de céu despenhados lá do alto
pensaram
"podem – disse alguém –
sucede que o resto do céu ficou cinzento de tristeza
devido ao abandono a que foi votado pelas franjas de azul cadentes"

e podia, podia bem ser assim
mas podia ser uma casa azul, como afinal tinha sido uma casa azul
embora eles não soubessem
nem sequer no recanto da sua imaginação
estavam habituadas a ver coisas conhecidas
bem definidas
coisas e formas e cores com que podiam contar

depois deu-se aquilo
uma casa azul que sempre estivera no cimo da montanha mais alta
azul da cor do céu, com o qual se confundia
de tal forma que, à distância, não se podia distinguir
apenas imaginar
mas que ninguém ousara imaginar
despenhou-se por ali abaixo 
e ninguém percebeu o que era
confundida com pedaços de céu, só pela cor azul

ninguém estava preparado para acolher o desconhecido
lidar com o desconhecido

os pedaços da casa azul caídos por aí abaixo
revelaram-se agressivos
não por maldade, mas por razão lógica
afinal, eram restos de material de construção, lascas de madeira
franjas de cimento, esquinas de azulejos 
e tantos mais objectos cortantes e contundentes

aproximaram-se das pessoas, ignorantes daquele azul
furaram-lhes a pele e as carnes
partiram-lhes ossos
deixando-as loucas de pavor
porque estavam feridas, algumas mortas
desconheciam o agente daquela agressão
não estavam preparadas para contra-atacar

após uns dias de confusão, as pessoas organizaram-se
lançaram hipóteses e arquitetaram defesas
faltavam-lhes, todavia, as respostas para aquele azul
tão súbita e violentamente desabado sobre elas
andavam ocupadas naquilo, umas a morrer, outras a sobreviver
tentativa e esforço, desespero e esperança
força, muita força

algumas esqueciam por momentos
ou fingiam esquecer, para melhor aguentar  

até que, certo dia, um carro da polícia, armado de megafone
varreu as ruas devagar, gritando a mensagem
clara e perenptória
"ACORDEM!
MANTENHAM-SE LONGE DOS FRAGMENTOS AZUIS
DESPENHADOS DO CIMO DA MONTANHA MAIS ALTA"

e as pessoas esquecidas não puderam deixar de despertar do esquecimento

mas ainda ninguém sabia que se tratava de uma casa azul
que, de um momento para o outro, decidira rebolar por aí abaixo
espalhando destruição e morte e medo...

e, no entanto, era apenas uma casa azul
uma inesperada casa azul
só porque as pessoas não souberam distingui-la do céu azul
nem revelaram atenção ou capacidade para a imaginar

só mais tarde, para muitos tarde de mais
veio a saber-se que era tão só uma casa azul
azul da cor do céu






sexta-feira, 10 de abril de 2020

40º DIA DAQUILO: SETE DESCOBERTAS E UMA AVENTURA!


Hoje, pela primeira vez no período de confinamento a que o Covid-19 nos remeteu, estou chateada! Tenho uma ideia do motivo e talvez o revele, lá para o fim deste post

Entretanto, e como ninguém – nem mesmo eu – pode ser culpado desse estado, entrego-me ao relato das empolgantes descobertas que a vivência desta situação me tem proporcionado. Sigo, para o efeito, o itinerário das compras, a partir do momento em que entram cá em casa (sobre o processo de aquisição já falei antes).

1 – Os sacos ficam todos no hall de entrada.

1.1. – Em se tratando de produtos que não carecem de conservação no frio e/ou não se destinam a consumo imediato (caso da encomenda da Nespresso), passam para cima de um banco, onde aguardam em quarentena de, pelo menos, cinco dias (se eu posso aguentar, também eles). Só depois seguem para os respectivos locais de arrumação e, mesmo assim, após borrifo de CIF Spray Power&Hygiene antibacteriano (dizem que arrasa com 99,9% dos bichos). 

1.2. – Com os outros, o procedimento é bastante mais complexo e extenuante. Enquanto aguardam nos sacos, preparo uma mistura de lixívia e água (recomendaram-me a proporção de 1/9, mas, como não facilito, vai a 1/6). Começa, então, o processo de desinfecção: um a um – embalagens de pão, iogurtes, queijos, bolachas, chocolates, conservas, carne, gel de banho, detergentes, etc. –, vão sendo passados por um pano embebido da dita mistela e colocados sobre uma bancada da cozinha, previamente lavada com o dito CIF. As frutas e legumes merecem tratamento à parte: mergulhadas em nova combinação da dita mistura, desta feita um pouco menos agressiva, retiradas, passadas por água várias vezes e enxugadas uma a uma. Entretanto, hão de ter decorrido aí umas duas horas, exaspero-me a pensar por que razão ainda não foram inventados comprimidos para substituir a comida e sigo para as próximas etapas:

a) Arrumar os produtos;
b) Mandar os sacos de plástico para o lixo (respectivo, que eu faço reciclagem);
c) Lançar mão da esfregona para limpar o chavascal que ficou na cozinha e no hall de entrada, por força da circulação do pano de desinfecção, produto-a-produto;
d) Carpir o estado em que, depois disto tudo, vai ficar o soalho do dito hall, devido às pingas da mistela que, malgrado o cuidado, acabaram por cair;
e) Antecipar a trabalheira que seguirá para cozinhar os alimentos de tal carentes (tipo, bifes de frango e legumes) e adiar a mesma para as calendas do termo dos respectivos prazos de validade;
f) Soltar um monumental Uff!
g) Ir relaxar para a banheira.

1ª descoberta: Os produtos que usamos no dia-a-dia deixaram de ser nossos amigos. Pior, ganharam vida própria e ameaçam-nos só de serem tocados!

2ª Descoberta: A minha flexibilidade não está nada mal (isto de tirar produtos um a um dos sacos pousados no chão...)!

Sigo para a cozinha.

2 – É sabida a minha inépcia em matéria de cozinhados. Trata-se de uma recusa quase existencial, decorrente, não tanto da dificuldade da tarefa, mas da desproporção entre a trabalheira e o tempo que envolve, e a rapidez com que se lhe esvai o resultado. Assim:

a) Bifes de peru, todos de uma vez: grelhar em frigideira anti-aderente, apenas com um pouco de sal; deixar esfriar; meter em sacos de congelação; abandonar no congelador o maior tempo admissível – recorrendo, entretanto e com observância dos limites do escorbuto, a conservas;
b) Legumes, todos de uma vez: lavagem, descascação (sendo caso disso), corte e disposição harmoniosa em dois tabuleiros, com um pouco de azeite e sal; ligar o forno, por tentativa e erro, acabando por ter de recorrer a terceiros, por vídeo-conferência, a fim de  conseguir decifrar o significado da sinalética dos botões; enfiar os tabuleiros e esperar que o assado resulte; descobrir, ao fim de algum tempo, que o forno não está quente e que uma luz que tudo leva a crer deveria estar acesa, não está; lembrar-se de anterior e longínqua situação semelhante (embora só destinada a aquecer comida comprada feita, para servir a convidados) e ir ver os fusíveis. Bingo! Ligar os fusíveis (ou lá como é que se diz); esperar que vá tudo pelos ares, mas constatar que não; ir fazer outras coisas, vigiando, de vez enquanto, não vá aquilo esturricar, após tão penosa trabalheira; deixar esfriar; meter em tupperwares; abandonar no congelador o maior tempo admissível – recorrendo, entretanto e com observância dos limites do escorbuto, a conservas, tipo Bonduelle, ervilhas e cenouras;
c) Constatar, não sem frustração e revolta, que os legumes mingaram muito;
d) Lavar a louça toda envolvida no processo e o forno;
e) Lançar mão da esfregona para limpar o chavascal que ficou na cozinha, pois, por mais cuidado que se tenha, cai sempre qualquer coisa;
f) Carpir o tempo que se gastou no processo e que poderia ter sido aproveitado a fazer coisas interessantes ou mesmo nada;
g) Relativizar: desta já me livrei;
h) Ir relaxar para a banheira.

3ª descoberta: As minhas 2 facas de cozinha quase só servem para cortar queijo e descascar fruta (seu uso habitual); não sei se compre novas ou mande afiar (se é que se pode).

4ª Descoberta: Perdi a fobia ao forno: afinal, não é assim tão complicado de ligar, mas, caso isto continue, impõe-se mandar ver a questão dos fusíveis.

5ª Descoberta: O exaustor está avariado, provavelmente por falta de uso; também tenho de mandar arranjar.

6ª Descoberta: Os legumes ficaram muito bons!

7ª Descoberta: Os legumes desapareceram num instante! Vivam as caixinhas Bonduelle!

No meio deste universo de descobertas estonteantes, uma


AVENTURA

Consegui estrelar um ovo, sem redundar em ovo mexido (coisa que me acontece quase sempre ao tentar fazer omelete)!

Ah! Só para dizer a razão de estar chateada: de tanta actividade doméstica, sofro, desde ontem, de dores no ombro direito. Logo agora, que não posso parar!!! Bem, e amanhã tenho de regressar aos cozinhados...





segunda-feira, 6 de abril de 2020

LOGO HOJE, QUE PUS RÍMEL, DEU-ME PARA CHORAR!


Desceu as escadas, quarenta e uma, viu o correio – apenas por força do hábito, não que esperasse encontrar correspondência – e saiu, certificando-se de que a porta ficava convenientemente fechada. Nos tempos que corriam todo o cuidado era pouco!

A atmosfera nada tinha a ver com a de há dias, tão poucos dias, quase a véspera, mas parecendo soterrados numa caverna prestes a esvair-se no esquecimento. E, todavia...

Todavia, ainda dois dias antes, a cidade explodia numa efervescência borbulhante. Olvidando até a crise mais recente – não que se situasse num tempo muito longínquo –, parecia inebriada numa bebedeira de negação eufórica e, simultaneamente, de optimismo bacoco e desvairado. As pessoas transbordavam dos espaços de restauração e divertimento, dispostas a gozar a ilusão presente, como se não houvesse amanhã. E, todavia...

Todavia, de um momento para o outro, ou melhor, de um dia para o outro, surgiram notícias inquietantes, a respeito de um mal desconhecido e inesperado. Vinham de longe, mas não era difícil imaginar que esse mal havia de chegar perto, pois, bem vistas as coisas, por essa altura, o que mais proliferava era tráfego (e tráfico) constante entre todas as cidades. Portanto, mais cedo ou mais tarde, há-de chegar cá, pensaram os mais realistas; os outros preferiram admitir que não, nada garantia que se abatesse por aqui. Obviamente, estavam enganados. E, todavia...

Todavia, quando aquilo chegou – porque, uma vez libertado do seu covil primitivo, não podia deixar de chegar, tal a sua sede de expansão e conquista e a inabilidade dos humanos em o deterem –, quer os realistas quer os outros ficaram expostos na mesma proporção, porque aquele mal não distinguia as vítimas, ao menos em função dessa tipologia.

As autoridades das diversas cidades foram apanhadas de surpresa e, presas nas malhas da estupefacção perante a novidade e o potencial destruidor da ameaça e a falta de meios para a deter, baralharam-se em comunicados e medidas, avançaram e recuaram, corrigiram linhas de acção, mas, as mais ajuizadas, cedo ou tarde, acabaram por recomendar aos cidadãos que se protegessem daquilo, fornecendo certas pautas para o efeito. 

Assim, naquele dia, quando saiu à rua, fê-lo apenas porque tinha de ser – o armazenamento de bens essenciais, maxime, livros, estava prestes a esgotar-se e ela precisava de encontrar alguns antes que aquilo os tivesse devorado todos –, e muniu-se das máximas cautelas recomendadas: vestiu o fato macaco de material à prova de dentada, por força da inserção de espigões super afiados, calçou botas até ao joelho e luvas até ao cotovelo, munidas das mesmas protecções, e protegeu a cabeça com um capacete rígido, dotado de viseira. Considerou-se pronta para desafiar o destino!

Ao primeiro passo fora da porta, viu-as logo aproximar-se, qual exército de ogres revestidos por carapaças castanhas escuras, quase negras, com olhos malignos e exorbitantes, prenuciando uma fome assassina. Sabia que também elas, estas bestas nojentas e rastejantes, fugiam daquilo, mas nem por isso se sentiu solidária. Pisou-as com as botas rijas e, à medida que ouvia o estralejar da destruição – craccraccrac –, aumentava nela uma sensação de vitória: Talvez "aquilo" também não seja à prova de bota, ainda ninguém o conhece muito bem, pensou, para, de imediato, se censurar pelo excesso de optimismo.

A destruição semeada afugentou o resto do exército de baratas gigantes, pelo que pôde continuar, entre o alívio, o nojo e o medo de que aquilo lhe aparecesse de repente e resistisse à sua defesa. 

Sempre alerta, prosseguiu, ora se afastando, ora lutando com outras hordas de guerreiros dispostos a tudo, fossem cães raivosos que lhe cobiçavam as canelas, aves de penas negras que mergulhavam a pique no seu capacete e muitos outros. Valia-lhe a resistência do fato e, sobretudo, a armadura  de espigões.

Já exausta do percurso acidentado e violento, chegou, finalmente, ao que restava da última livraria, cujos empregados se tinham visto obrigados a desertar, se é que não haviam sucumbido àquilo

Apesar da tristeza infundida pelo estado de penúria e destruição do espaço – outrora (um outrora de há meros dias) tão belo e inspirador! –, entusiasmou-se com a hipótese de, por entre os destroços das prateleiras,  poder resgatar um livro, um que fosse,  que lhe servisse de sustento para o tempo que aquela funesta situação ainda demoraria a desaparecer.

Sempre alerta, aproximou-se e, de repente, viu-o, aquilo, entretido a roer o último pedaço do último livro sobrado no chão da livraria.

Tratava-se de um rato, aparentemente um vulgar rato, excepto na enormidade do tamanho, de cor cinzento rato, dotado de olhos sinistros, com os bigodes semeados de farripas da última página do livro. A capa jazia no soalho, desprezada, talvez por lhe ser muito dura de roer. Oferecia as seguintes palavras: A Peste, Albert Camus.

Ainda hesitou em recolher a capa, mas o bom senso aconselhou-a a aproveitar a concentração do rato para se afastar dali o mais rapidamente possível. 

Franqueou a porta da rua e subiu no elevador, onde ainda teve de fazer frente a um grupo de baratas moribundas, mas  ainda activas – craccrac, crac, ecoaram as paredes.

Mal entrou em casa, desabou num choro convulso. Passou a mão pelo rosto, e, ao ver o negrume das lágrimas, desabafou, por entre soluços, como quem pede colo: Logo hoje, que pus rímel, deu-me para chorar!