segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O MEU PRIMO RAUL PARTIU


Um menino com ar vivo, olhos grandes, amendoados, brilhantes, cabelo preto, caracóis (?), a vida toda pela frente, um entusiasmo que não passa despercebido.

É o meu primo Raul, uns poucos anos (quatro, cinco?) mais novo do que eu, naquele dia longínquo em que o convidámos para almoçar lá em casa, almoço do meu aniversário, eu no início da adolescência, ele para lá caminhando. Veio connosco, meu Pai e eu, do Liceu, era 17 de Dezembro de um ano muito ido, embora para a conservação da memória, esta de que venho falar, pareça o ano ontem.

Em nossa casa, os dias de aniversário eram celebrados com muito carinho, um ou dois presentes – nada de grandes aparatos e muito menos carestias – e almoço melhorado, sempre a culminar no bolo russo ou bolo enrolado – torta de chocolate –, que a Mãe, com suas delicadas mãos, terminava num acabamento de açúcar, desenhado com finos traços decorativos. A mesa, vestida de toalha festiva, era enfeitada, as mesmas mãos, com bombons animados de variadas cores, feitos de chocolate recheado com um creme ligeiro. Não recordo se havia o hábito de se cantarem os Parabéns e soprarem velas, creio que não, mas aqueles eram ditos do fundo do coração, logo pela manhã, – nesse dia, sendo eu a destinatária, assim: Viva a Bélita! Tudo se restringia ao nosso núcleo familiar, pais, avó que connosco vivia, meu irmão e eu. 

Contudo, naquele dia, por razões que me fugiram da memória, convidámos aquele priminho. E ainda bem! Levou-nos alegria e vivacidade e, também, um presente para mim. Tratou-se de um cachecol de xadrez, em tons suaves que incluíam um diáfano verde água, feito de tecido macio e envolvente, que achei maravilhoso, tanto naquela altura como muito mais tarde, quando, já levado por anos de distância, lhe perdi o rasto, mas nem assim deixei de o procurar no enorme malão da cave, onde iam parar as peças caídas em desuso. Creio que o cachecol representou, para mim, a novidade de um presente extra – tão mais valorizado quanto, por esses tempos, eram raros e de pouca monta os presentes que me cabia receber –, mas, sobretudo, a alegria de a mesa de aniversário se ter aberto a um novo comensal, desmentindo a ideia de que o mundo éramos apenas nós os cinco.

Na verdade, adorei a novidade do almoço com novo participante e, estou certa, o Raul adorou o almoço. Disse até – e creio terem sido estas as suas palavras – que havia de ir mais vezes almoçar a casa do tio doutor (meu pai, professor do Liceu, irmão mais velho da sua mãe).

O tempo correu, como sempre corre, e, anos mais tarde, vim a cruzar-me com ele, também em casa de meus pais – na cidade da qual ambos já tínhamos saído –, acompanhado da mulher e de duas ou três crianças pequeninas, seus filhos. Era ainda muito novo, creio que na casa dos vinte, e eu comentei, – Então, Raul, já tantos meninos!, agora ficas-te por aqui, não? Respondeu-me, com convicção, que viriam os que Deus quisesse. E assim foi, as crianças foram-se sucedendo, formou uma linda e vasta família.

Entretanto – dotado de formação superior na área de engenharia –, afirmou-se e ascendeu profissionalmente a limiares justificados por uma clara inteligência e uma enorme força de vontade e competência.

A dada altura, precisei de uma ajuda sua e não hesitou em prestar-ma.

O tempo continuou a correr, como sempre corre, já se sabe, e nas décadas seguintes – aliás, à semelhança de sempre –, poucas vezes nos vimos, essas poucas em bons e maus momentos da vida familiar.

Há uns tempos, tive conhecimento de que o Raul, que sempre vira pujante de força e afirmação, padecia de uma doença grave.

Hoje, o meu irmão telefonou-me a dar a tristíssima notícia da sua morte, a morte do menino espevitado e alegre que tinha levado um bonito e inesquecível cachecol e, sobretudo, um fôlego complementar de vida e alegria ao meu longínquo aniversário já não sei de há quantos anos. Vieram-me as lágrimas aos olhos, engoli-as, decidi converte-las em palavras.

Há pessoas que, nem que seja por um curto episódio de vida, têm lugar marcado no nosso coração, não importando se com elas convivemos muito ou pouco. Assim o Raul, para mim. 

Despeço-me dele desta maneira, desejando que descanse em paz, na santa paz do Senhor, como creio ser aquilo que almejava e em que acreditava.






quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

POBREZA MENSTRUAL...

...OU SERÁ POBREZA MENTAL?

Há tempos, num zapping pela TV, deparei-me com uma jovem, ao que percebi deputada (ignoro por quem e porquê), a perorar sobre "pobreza menstrual". 
Obviamente – acho eu! – fiquei perplexa e, ao mesmo tempo, curiosa, sobre o significado de tal expressão. De tal forma que nem me ocorreu qualquer significado possível, por exemplo, baixo caudal menstrual (como uma amiga a quem contei, por certo mais criativa do que eu, sugeriu).
Felizmente, a entrevistadora, ciente da burrice ou falta de imaginação de espectadores (ou deverei escrever espectador@s?) como eu, pediu gentilmente à entrevistada que explicasse do que falava. E foi aí que se fez luz: "pobreza menstrual" é a situação em que se encontram as mulheres – suponho que os homens ainda não sofrem essa carga mensal – carentes de meios económicos para suportar as despesas com os artigos de higiene, vulgo, pensos/tampões higiénicos e afins, necessários durante a menstruação.
Logo uma outra convidada do programa, abanando afirmativa e compungidamente, a cabeça, referiu que até havia quem recorresse a pão para fazer as vezes de penso higiénico…
Desliguei, de imediato, a televisão, não me fosse aparecer outro assunto do género, logo a mim, que só procurava uma série policial ou um filme de jeito.
A situação em causa é, obviamente, do mais lamentável, triste e revoltante que se pode imaginar. Só que, em minha opinião, tem apenas um nome: pobreza! Não é dela que aqui trato, até porque, infelizmente, por mim só, não disponho de competência ou capacidade para a resolver.
Trato, antes e apenas, da questão ou abordagem terminológica.
É que me irrita solenemente esta tendência, entroncada no execrável, porque hipócrita e hitleriano, politicamente correcto, de atribuir certos nomes às realidades, como se assim ganhassem uma importância que doutro modo não alcançariam, no pressuposto de que só os utilizadores dessa nomenclatura estão habilitados ou titulados a invocar as realidades subjacentes, sendo, por outro lado, banida a terminologia habitual, como menor e desadequada. Existe, ainda,  uma certa provocação no uso de dadas palavras como expressão de uma afirmação de princípio — de que devem ser empregues para se atingir o cerne das respectivas problemáticas. Enfim, uma espécie de pensamentos mágicos!
Ora bem, segundo me parece, uma pessoa que não dispõe de dinheiro para prover os bens necessários à higiene durante a fase menstrual é, pura e simplesmente, uma pessoa pobre. POBRE. E pobres não deviam pura e simplesmente existir, aliás e para evitar mal-entendidos, a pobreza, na sua abjecção social e moral, não devia existir ou, sequer, ser admissível!
Então para quê autonomizar essa faceta da pobreza? Será que providenciando pensos higiénicos a essa mulheres pobres elas deixam de ser pobres? Não me parece.
Resta ainda outra questão: uma vez autonomizada tal expressão da pobreza, porque não autonomizar as restantes, por exemplo: pobreza fecal (falta de dinheiro para papel higiénico) ou pobreza ranhosa (falta de dinheiro para lenços)… Ridículo, não é?
Por falar em ridículo, querem saber outra? Agora não é de bom tom contrapor mulher a homem, devendo aquela ser designada como "pessoa com vagina" e este – calculo – como "pessoa com…". Bem, fico-me por aqui, que já basta de parvoíce.