sábado, 20 de julho de 2019

CONTRASTES SILENCIOSOS


no princípio era fim de tarde
devagar fez-se noite
escureceram os brancos
afundaram-se os negros
contrastes silenciosos
barcos adormecidos












terça-feira, 16 de julho de 2019

AO CUIDADO DO DR. CENTENO


Entretanto, numa qualquer Repartição de Finanças, em Lisboa...

Chego às 13,50H, dirijo-me ao distribuidor de senhas. Esgotadas!

Explico a uma funcionária que venho em cumprimento duma notificação motivada por divergências na declaração de IRS e que, não obstante a inexistência de senhas, tenho mesmo de ser atendida, pois estou doente e vim da cama para aqui, de propósito (argumento que se me afigurou mais cauteloso e eficaz do que o verdadeiro, ou seja, que me parece inadmissível o cancelamento de senhas a mais de duas  horas do encerramento dum serviço...)

Indiferente, a funcionária encaminha-me para os colegas do IRS. 

Repito a cena, com o ar mais sofredor de que sou capaz (sempre ajudado pela minha proverbial brancura láctea), na esperança de induzir alguma compaixão — que, em certas circunstâncias, funciona melhor do que o apelo à justiça e aos direitos.

A funcionária, gelada como um bloco de granito e mais mal encarada do que uma bosta de vaca, responde-me que não há senhas e que, se quiser, vá falar com a chefe, que está ali ao lado.

Assim faço, aliás com o ar mais cândido e desamparado que consigo simular!

Visto estar a atender, espero que fique livre. Terminado o atendimento e apesar de bem me ter visto, mergulha as trombas não sei em quê, até que, delicadamente, a interpelo. Dirige-me um olhar que transcende o gelo da colega. Mais parece um cão raivoso, no caso, uma cadela. A surpresa (genuína) transparece no meu olhar: não vislumbro motivo para merecer um tal atendidmento, por parte de uma criatura que está ali para me prestar um serviço, cujo custo, incluído o vencimento dela, é suportado por mim e pelos demais contribuintes — meaning, quando sou simultaneamente sua cliente e patroa.

O meu olhar deve ter sido tão transparente que, mesmo sem dizer nada, entende por bem justificar-se: "É que eu não chamei ninguém”. Pudera, mesmo que tivesse chamado, não seria a mim, que não tenho senha... 

Debito a minha história pela terceira vez.

Retoma o ar agressivo para me dizer que podia ter tratado o caso no portal das finanças e que não posso pretender passar à frente dos outros. Explico-lhe que não quero passar à frente de ninguém, quero apenas ser atendida, manifestando, aliás, estranheza por já não haver senhas. Diz-me, altiva e arrogante, que as senhas já esgotaram há muito tempo!

Embora cheia de vontade de a mandar à merda ou para pior, limito-me a pedir o livro de reclamações. Diz-me, então, que, se quiser, posso esperar para ser atendida no fim de todos... sem senha... se houver tempo! Insisto no pedido do livro de reclamações!

Nesta altura, um homem aproxima-se e disponibiliza-me uma senha. Agradeço. Meio aparvalhada, ainda lhe pergunto se não lhe faz falta (como se este mundo estivesse povoado de bons samaritanos!). Responde-me que não e mostra-me outra senha... para o mesmo serviço. 

Acho estranho, mas não ouso fazer perguntas. Todavia, ocorrem-em: porque haverá uma pessoa de ter mais do que uma senha para o mesmo serviço, quando há pessoas sem senhas? Será que há um serviço de tráfico de senhas?  

A funcionária diz-me que posso usar a senha oferecida pelo homem (pudera não!!!), mas não lhe coloca a questão, óbvia, que me ocorreu.

Ao contrário do que é meu hábito, não insisto no pedido do livro de reclamações. Ponho-me, furiosamente, a escrever estas linhas, no iPhone (o que não dá jeito nenhum, mas serve para desabafar). 

Quando, finalmente, sou atendida, a funcionária demonstra uma santa ignorância, deixando-me plantada por duas vezes, enquanto vai não sei onde tirar dúvidas. Até que chega e me devolve os documentos que levei, com a simples frase, "já não preciso disso", com o que pretendia significar que a questão estava resolvida...

Vim dali a interrogar-me, em modo de lamento: porque será que alguns serviços públicos continuam a funcionar tão mal?!

Apenas um parêntesis para referir, em abono da verdade, que o serviço de apoio telefónico das Finanças (associado ao respectivo Portal) funciona bem melhor, quer em termos de educação quer em termos de competência dos funcionários, pelo menos os que me têm calhado!







sexta-feira, 12 de julho de 2019

ALGUÉM DISSE F***- SE?



Chego quase às 16H. Uma aragem fresca corta agradavelmente a elevada temperatura. Nem parece que acabei de sair de um forno, Lisboa, ontem. Pago a cadeira e o guarda-sol, dispo o vestido, estico a toalha e estico-me sobre ela, disposta a gozar do que resta (e ainda é muito) duma bela tarde de praia. O mar espraia-se lá longe, em cintilações distantes, como quem quer partir. Sei que não é o caso e isso conforta-me. Amo o mar. E o céu azul, lá em cima, onde se espraiam os meus olhos, em cintilações admirativas e gratas. Que boa aragem, diz o meu corpo, a preparar-se para descontrair, entregar-se, dormir. Adoro dormir na praia. Por vezes, acordo com um leve estremeção, olho em redor. Tudo calmo.

Não é o caso, agora. Os meus ouvidos distraem-se do murmúrio longínquo do mar — como é bom o murmúrio do mar e, já agora, o do vento, sobretudo se filtrado pela folhagem das árvores! A realidade exige-me, impõe-se-me. Um pouco a sul, passam as vozes de dois rapazes, a expulsar pela boca c******* e f**** - se. Um pouco mais tarde, sou forçada a reparar que não foram longe. Dirigiam-se ao grupo estacionado ali mesmo adiante, logo a seguir à corda que separa a zona de guarda-sóis da areia restante. São muitos, adolescentes, corpos morenos, já de muita praia, as raparigas de cabelos compridos, eles de calções pelo joelho ou quase. Como é próprio da idade, falam e riem alto, pelo meio cospem palavrões. Bebem cerveja, que tiram de garrafas grandes, da lancheira-frigorífico. Assaltam o homem das bolas-de-berlim. Um deles é o rapaz do dinheiro, não se apercebe que lhe vem daí a popularidade.

F***- se, penso, perante a ameaça de destruição da tarde de descanso. 

Talvez a noroeste — nem me viro para comprovar —, também alto e bom som, uma voz jovem de mulher profere aí uns três palavrões, numa frase de umas cinco palavras: m****, f***- se (sempre o f***- se a marcar presença, como se vivêssemos dentro dum filme americano) e outro qualquer, já nem sei qual e não vale a pena inventar.

Vejo a minha vida, quer dizer, a tarde ou as expectativas criadas a respeito, a andar para trás. Lá se vai o descanso e, sobretudo, o sono. Faço um esforço por abstrair, mas é impossível.

F***- se, F***- se, F***- se, exaspero-me.

Olho para o lado de lá e vislumbro uma cadeira a vagar. Levanto-me, arrasto a tralha — toalha, saco leve e chinelas, não é grande coisa, ando na tentativa de reduzir a vida ao mínimo de tralhas e ao máximo de conforto — e instalo-me longe da multidão. Por assim dizer, que a praia está cheia de gente, mas, aparentemente, aqui não há grupos barulhentos ao alcance das pontas dos dedos dos pés. Bem, uma mãe segura um filho ao colo, o miúdo dá uns guinchos estranhos, começo a sentir-me incomodada. Tudo muda quando solta umas gargalhadas límpidas e coloridas. É tão belo e reconfortante o riso das crianças! Lembro-me do riso da Inês, quando criança. Penso: é o som mais belo que alguma vez ouvi! Agora tem dezasseis anos. Hei-de reparar em como são as suas gargalhadas, agora, embora não sejam iguais às desse tempo!

O sossego (relativo) começa a instalar-se.

Eis que chega a potente voz de uma mulher de meia idade. Dirige-se à amiga, deitada numa cadeira perto da minha, e interjecciona: «Eia, isso é que é descanso, aí a dormir!!!» Se fosse comigo, perdia a amizade nesse momento! Então vê que a amiga está a descansar e acorda-a daquela maneira?! A acordada é de bom feitio e recebe-a bem. Para mal dos meus pecados. Começam a falar alegremente, alto e bom som, a recém chegada. Atenção, só os meus ouvidos deram por tão tristes cenas. Os olhos e o resto procuram abstrair-se.

Descobri esta praia há cerca de dez anos. Era maravilhosamente quase deserta. De há uns anos para cá tem vindo a encher, a encher, e agora é isto. Não que tenha algo contra pessoas (embora, em geral, também não tenha grande coisa a favor). Também nada tenho contra palavrões, eu própria os uso, talvez com frequência superior à devida, mas, dentro do meu universo privado, sobretudo por razões estéticas. Valerá a pena dizer que, a dada altura em que a minha vida andava completamente f*****, não havia plano que se aproveitasse, fosse pessoal, profissional, familiar, social ou outro, ganhei o hábito de desabafar com recurso a palavrões. Uma espécie de rap da desgraça. Era assim: chegada a casa, fechada a porta, a cabeça completamente à mercê dos acontecimentos, expressava as frustrações e desatinos nuns valentes e desatinados, f***- segrandessíssimo f*****- da- p*** e outras pérolas do vernáculo, sobretudo a primeira. A coisa estava a assumir um tal carácter de habituação que resolvi parar, com receio de me deparar com algum f****- da - p*** — e deparei-me com muitos, podem crer —, numa reunião e, por força do hábito, deixar escapar um hipotético, vá à m****, f***- se, vá pró c****** ou vá levar… bem, creio que já deixei o meu ponto de vista bem explicado!

Dito isto, o que me incomoda não são os palavrões, em si, mas levar com eles fora de contexto, sem ter nada a ver com a conversa. E o que me incomoda ainda mais, mesmo, é ter de suportar conversas alheias. Não me interessam e o zum-zum impede-me de descontrair, descansar e dormir. E é (também) para isso que vou à praia e pago para ficar bem instalada!

Só para dizer, às duas amigas barulhentas (afinal, vim a constatar serem três) ainda vieram juntar-se dois maridos e dois filhos, estes, rapazinhos adolescentes bem comportados. Passaram o resto da tarde a contar histórias ou tangas. Já tendo desistido do almejado descanso, dignei-me ouvir esta: dado tipo, obviamente cognominado de palerma ou otário, levou de férias (assumindo a correspondente despesa) a mulher, a ex-mulher, o marido desta e os filhos que teve com ambas. E o amante da mulher. Não, esta última parte inventei.

Compreendem, agora, o meu desejo de vir a possuir uma praia privativa, ou, em alternativa, que os outros (mas todos, por favor!) possuam praias privativas, deixando a pública só para mim?

Isto para concluir que a praia de S. João (Costa da Caparica, Lisboa, Portugal) já não é o que era! 

F***- SE!