sábado, 6 de maio de 2023

A MÃE


A Mãe sempre gostou muito de flores. Pouco tempo antes de – sem que algo o fizesse supor, de um estúpido dia para outro estúpido dia – nos ter sido arrebatada pela tenebrosa ceifeira, maldita seja!, começou a amar girassóis. Antes de eu ter tido tempo de agir – como fizera, por exemplo, com o vaso de sardinheiras e com o da laranjeira miniatura, carregada de laranjinhas, que a deixaram tão emocionada e feliz –, já ela havia plantado girassóis no jardim. Pelo menos um cresceu, em exuberância e pressa, em direcção ao céu.

No dia em que o meu Irmão e eu a acompanhámos àquele derradeiro leito frio que costuma designar-se por última morada – embora, em bom rigor, o seja apenas da matéria que de nós resta, sem que alguém haja descoberto onde passamos a residir depois do percurso terrestre, se é que algo de nós subsiste para tal –, o Pai, que por idade e debilidade, não nos pôde acompanhar, recomendou quer levássemos o girassol. Assim fizemos, como, por certo, teríamos feito, mesmo sem a recomendação.

Conto isto, não para invocar tristezas, mas para dizer que ando há tempos para desenhar girassóis, em memória da Mãe. Nem sequer se trata de questão de saudade, essa que, quando atinge, se faz sentir de forma tão pungente, que não há palavras. O que resta agora, volvidos quase vinte e cinco anos, é um vazio profundo, um vazio de mãe, duma certa mãe (há mães e mães). Insisto, não pretendo invocar tristezas, não é, de todo, o caso, só que me apetece falar da Mãe, talvez por ainda não ter cumprido com os girassóis. Ou talvez não.

A Mãe!

A Mãe, para além de mãe, era a Família. Quando a evoco, sinto que não vem só, vem, em primeiro lugar, com o Paizinho – assim chamávamos a meu Pai –, com a Avó, sua mãe, que sempre viveu connosco, com seu Pai, que amava e, frequentemente, invocava, apesar de o não ter conhecido, pois morreu aos seus três meses de idade, com a Mamã e o Papá, seus avós  maternos, em cuja casa cresceu, após o falecimento do pai, com muitos outros membros da família, incluída a do lado de meu Pai, sobretudo, a Avozinha e o Avozinho (que também passou a viver connosco, mal enviuvou).

Portanto, a Mãe, mais do que mãe, era família, era a árvore sólida de que eu sou um simples ramo frágil, talvez uma folha, seguramente, caduca.
 
Mas a Mãe também era Lar, home, sweet home! Sim, de suas cálidas e engenhosas mãos nasciam tantas coisas boas, saborosas, bonitas, aconchegantes, originais, sei lá! não posso passar o resto do texto a inventar adjectivos só para dizer que a Mãe era o lar, aquele sítio onde te sentes protegido, aconchegado, especial entre especiais.

Não era o facto de cozinhar maravilhosamente, de nos fazer roupas lindíssimas e originais – como os meus bibes bordados, em criança, as camisolas de lã, as bandoletes (certa ocasião, cheguei a casa e fui surpreendida com uma data delas, cada uma de sua cor, a condizer com as camisolas), os casacos de lã, com capuz, bordados de invenção sua e forrados a cetim –, de desencantar soluções práticas para todos os impossíveis que se apresentavam, de, à hora do almoço, nos ir esperar ao portão, a meu Pai, meu Irmão e a mim, vindos do Liceu (onde o Pai leccionava), sempre com um sorriso aberto e alegre. 

Não, não era tudo isso e muito mais, era a entrega, diria mesmo a devoção, o amor, que punha em tudo o que empreendia, em todos os seus gestos e realizações.

Sim, porque a Mãe, para além de Família e Lar – ou talvez por isso –, era Dádiva, era Devoção, era Amor.

A Mãe sabia criar Momentos Mágicos. Quando éramos crianças (meu Irmão e eu), havia uma altura do ano que aguardávamos com imenso júbilo e ansiedade: a Festa do Santo António, patrono da cidade, uma cidade remota, para lá do Marão, onde a vida corria muito devagar e sem novidades. Ao longo do ano, a Mãe constituía-nos um mealheiro, para, durante essas festas, em que a cidade se animava de divertimentos vários – o circo, o carrossel e outros aparatos do género, e, máximo dos máximos, as barracas, onde se vendiam artigos tão desejados, ou seja, no que nos dizia respeito, ao meu Irmão e a mim, brinquedos de toda a espécie e feitio.

Ora, mal as barracas assentavam arraiais, lá íamos de mãos dadas com a Mãe, aplicar, como entendêssemos, aquele pecúlio, especial e amorosamente poupado para a ocasião. Apesar das décadas decorridas, tenho ainda presentes algumas daquelas entusiasmantes aquisições: um guarda-chuva de criança, um trem de cozinha, constituído por imensos tachos e tachinhos (por essa altura, ainda ignorava que a cozinha viria a ser objecto da minha taxativa rejeição!), uma bola de plástico, de encher, feita de gomos coloridos, tipo a bola nívea.

Noutras alturas, quando a Mãe não podia satisfazer os nossos desejos, porque o dinheiro não chegava – note-se que, já então, os professores do liceu, caso de meu Pai, não ganhavam muito (todavia, eram extremamente respeitados…) –, a Mãe ficava triste. Não que isto acontecesse com frequência, pois nós sabíamos o que podíamos ou não pedir. Recordo, apenas, um episódio: estávamos  numa loja de roupas, vi umas lindas meias ou soquetes e pedi-lhe que mas comprasse; inicialmente, a Mãe anuiu, mas acabou por confessar a sua impotência. Obviamente, não insisti, mas fiquei triste, não por não poder ficar com as meias, mas por testemunhar o desconforto e tristeza da Mãe por não mas poder oferecer.

A Mãe era a personificação da Bondade, bem intencionada, tolerante, amante de dar e de proteger.

Nunca reparei se a Mãe era bonita! Hoje, que penso nisso e revejo fotos, tenho a certeza de que sim, mas foi questão que esteve sempre fora do meu radar, simplesmente porque não interessava nada, nem sequer me passava pela cabeça. Era um pouco gordinha, situação que, mais tarde, mudou, devido a uma úlcera estomacal, mas nunca reparei nisso como um defeito (parece que, hoje em dia, o é!), era como era e isso não interessava nada, aliás, nem ocorria avaliar tal aspecto.

A minha relação de intimidade/cumplicidade com a Mãe criou-se, sobretudo, a partir do fim da minha adolescência. Até então, eu estava mais fixada no Pai.

Tratava-se de uma relação de significativa abertura e diálogo, com algumas reservas, da minha parte (por necessidade de salvaguarda do equilíbrio, habituei-me a resguardar uma parte de mim). Por outro lado, permanecia um aspecto da minha educação que eu reputava de nocivo e cuja principal responsabilidade atribuía à Mãe: o excesso de protecção, que me levou, inclusivamente, ao afastamento geográfico e, em grande parte, àquela reserva. Ora, em dados momentos – talvez zangada comigo mesma, por bem saber que, apesar de todo o meu esforço, sofria, ainda, os constrangimentos decorrentes dessa circunstância –, eu acabava por, em acesa conversa, lhe imputar a respectiva culpa. Ela nunca se zangou, antes me dava razão (quem sabe se por, na sua imensa sabedoria de amor, compreender que a minha verdadeira zanga era comigo e não com ela!). Depois, eu sentia-me — e continuo a sentir-me – culpada da agressividade com que, por vezes, lhe fazia essa acusação, a qual, sendo materialmente justa, nem por isso era razoável. Em contrapartida, devotava-lhe um amor extremo, que manifestava de diversas formas, mais por actos do que por palavras, sempre sem alarido. Ela sentia-o e tinha a bondade de o reconhecer aberta e explicitamente.

Hoje, dia sete de Maio de 2023, nesta dimensão onde ainda me encontro, a minha Mãe completaria cento e dois anos. Hoje é dia da Mãe! Que festa seria, se!

Ainda não desenhei os girassóis, mas ficam estas palavras (que bom seria se os mortos pudessem ler)!


(a Mãe, o Mano e eu)