segunda-feira, 26 de junho de 2023

2050 – O REGRESSO

2050


Eis-nos sentados na esplanada, quase sobre o rio, com a sensação de que basta estendermos um pouco os pés para os conseguirmos mergulhar na água, hoje a deslizar, límpida e serena, no seu melhor tom de azul.


À distância, avista-se um navio de cruzeiro, acenam mãos naquela excitação esparvoada de que muitos se deixam tomar quando habitam, mesmo por pouco tempo, um mundo artificial. Mais próximo, pequenos barcos à vela, de uma vela só, mais parecendo antigas banheiras de zinco destinadas ao banho das crianças, passam-nos quase sob os olhos, levando aprendizes de marinheiros, sonhadores de longas viagens, horizontes outros.


A ideia dos mundos artificiais, acabada de evocar a propósito do navio de cruzeiro, persiste na minha mente, transportando-me à realidade, esta em que vivemos, mergulhados sem hipótese de escapatória. Já lá vai o tempo em que a inteligência artificial (AI), o ChatGPT e seus derivados tomaram conta das vidas deles. Já morreu o tempo em que se discutia, quero dizer, em que os altos responsáveis pelo seu patrocínio fingiam preocupar-se e decidiam, por acordo, adiar o desenvolvimento da AI por uns meses ou algo do género. Já passou às calendas o tempo em que, no discurso tacanho e eriçado dos fóruns públicos, aquilo das velhas redes sociais, pleno de ignorância e falso senso comum, muita convicção bacoca e, sobretudo, desejo de afirmação e ânsia de aceitação, muitos clamavam contra a AI, muitos outros a seu favor. Os primeiros afirmavam o receio do domínio dos humanos pelos portadores da dita, chamemos-lhes Robotso perigo da desinformação, a desnecessidade dos trabalhadores humanos, com a consequente e avassaladora onda de desemprego, hordas de gente sem recursos, etc.; os outros, larga maioria, argumentavam com a inevitabilidade do progresso, apodavam os primeiros de tacanhos, exemplificando com as oposições sem sentido que as gentes de outras eras ofereceram às conquistas tecnológicas (revolução industrial e afins) conseguidas pelos génios da humanidade. Entre uns e outros não se vislumbrava hipótese de diálogo, falavam entre si como surdos a atirarem pedras sem motivo, trocavam insultos em vez de argumentos, aliás, estava na moda insultar, insultar era mesmo o definitivo statement de existência, talvez de importância.


2023


Assisto à luta virtual – travada, sobretudo, nas redes sociais – como espectadora fascinada pela profundidade da tragicomédia dos humanos, seres (suposta e seguramente) dotados de inteligência (para além de emoção...) e, todavia, tão irracionais nas suas acções.


Isto espanta-me tanto mais quanto é certo que nós, os humanos, nos encontramos inexoravelmente unidos num destino comum, de que nem os mais privilegiados – aquela meia dúzia que detém mais riqueza do que os restantes milhões e milhões dos seus semelhantes – podem escapar, a saber, a morte. Sim, por esta altura, ninguém nunca conseguiu escapar da morte (no futuro, talvez a questão nem se coloque)! Não que isto fosse trágico ou o mais trágico. O pior é ninguém saber qual o destino post mortem desta coisa que habita os nossos corpos e experiencia (ou será que cria?) o nosso profundo sentir (aquele quid para além do cartesiano, "Penso, logo existo" ou do muito mais elaborado "Sinto, logo penso, logo existo", enunciado pelo célebre cientista português António Damásio). Na verdade, pode afirmar-se que a generalidade dos humanos nem sequer entende que esta fatídica ignorância quanto ao que sela o seu destino – aliás, conformadora de todo o seu percurso neste mundo dos vivos (ou assim considerado) – deveria ser razão mais do que suficiente para pararem de se agredir mutuamente, com base na crença ou no desejo de serem melhores uns do que os outros, de merecerem mais e melhor uns do que os outros, neste mundo limitado, de recursos cada vez mais exauridos. Sempre acreditei que, caso parassem para pensar um pouco, não haviam de digladiar-se e, muito menos, de o fazerem através de insultos soezes. Reconheça-se que, pobres coitados, têm uma certa desculpa, pois, as mais das vezes, como distracção de vidas cansativas, entediantes e sofridas, andam entontecidos com a propaganda estupidificante e aparentemente libertadora, lançada através das ditas redes sociais e dos conteúdos publicados e disponibilizados em todos os meios de comunicação social e política, que lhes são administrados (precisamente pelos pelos mentores da AI).


Assim vou reflectindo, enquanto assisto, entre fascínio e repulsa, a essas tristes manifestações dos outros membros da espécie, supostamente inteligente, a que também – e para meu grande desgosto – pertenço.


Sobre o caso concreto da AI, antecipo mais ou menos isto, consoante escrevi no meu primeiro romance (datado de há quase dez anos, mas não publicado, procrastinadora me confesso!): "Será que a tua dúvida se refere ao papel da fulgurante evolução tecnológica no desenvolvimento, ou mesmo na reconfiguração, da inteligência humana, de que, aliás, é consequência, e, porventura, na própria evolução da espécie, um dos temas abordados?"


Para mim, esta hipótese – colocada na voz de um dos personagens do romance –, expressando um receio, representava em simultâneo um alívio, pois eu descria tanto da minha espécie, que alimentava a esperança salvífica na sua extinção.


A ideia era mais ou menos esta: assim que dominados pela AI, representando esta, ipso facto, um patamar diferente, superior, de inteligência, os humanos não se tornavam portadores desse tipo e grau de inteligência (que interesse teriam os dominantes em assimilar a si os dominados, tornando-os seus iguais?), mas, justamente por isso, o paradigma dos humanos mudava definitivamente, visto perderem o resto da liberdade de que tinham ou podiam ter gozado (caso tivessem sabido utilizá-la…). Tornavam-se, digamos, sub-humanos, regrediam (ainda mais) na escala animal, ao ponto de subsistirem, apenas, na medida em que os outros precisassem deles para alguma coisa, com tendência, pois, para a extinção física, mas, desde logo, com extinção imediata enquanto titulares de natureza humana (ao menos nos moldes em que, até então, era percebida). Ora, como esta natureza, em minha opinião, sempre deixou muito a desejar, eu entendia, com um certo cinismo, que a única vantagem da AI para a humanidade deveria consistir na respectiva extinção. Em contrapartida, os portadores daquela não se tornavam humanos (que interesse teriam os dominantes em assimilar-se aos dominados, tornando-se seus iguais?).


De notar que continuo a pensar do mesmo modo.


Há dias, dez anos depois de a frase citada ter sido proferida por um personagem do meu romance, deparei-me com a publicidade a um livro sobre a vida depois da morte, que, segundo o anúncio, junta espiritualidade e ciência para demonstrar a existência dessa vida, segundo a tese de que o nosso ser não corpóreo (a expressão é minha), ao ser libertado, mercê da morte do corpo, vai lá para não sei onde, de onde pode regressar ou regressa (supostamente por incorporação em novos corpos, calculo!).


Em apoio de tal tese, indicavam uma amálgama de argumentos estafados, como o resultado das experiências de regressão e dos relatos de quase-morte, bem como, of course, as teorias da reencarnação. 


Portanto, concluí, nada de novo, apenas mais uma colagem de hipóteses, aliás, não inovadoras e, muito menos, confirmadas, em suma, balelas para entreter tolinhos. Esta convicção afiançou-se-me ainda mais quando verifiquei que, do pacote publicitário, constava um rasgado elogio do Sr. Deepak Chopra, conhecido guru da área da auto-ajuda, domínio a que não dou crédito, pois, em minha modesta opinião, caso resultasse, não havia ninguém pobre ou infeliz; aliás, o próprio conceito de livros de auto-ajuda sempre me pareceu contraditório, pois se a auto-ajuda funcionasse não eram precisos livros…


Mas, acontece que, por esta altura, estamos em plena era de desenvolvimento acelerado da AI, só se fala do ChatGPT e seus derivados – quem não souber de que se trata, é considerado ignorante, burro ou ambos –, e a minha mente deu um enorme salto.


Eu já estava convencida de que as máquinas dotadas de inteligência artificial rapidamente assumirão o controlo, visto que, quem alcança o mais, alcança o menos ou o contrário, quero dizer, a partir do momento em que adquiram os processos de raciocínio humano, irão penetrar nos mistérios da nossa mente, com uma liberdade e profundidade de que nós não dispomos, por sermos parte interessada, estarmos marcados por longa herança genética e limitados pela prisão do (ou no) corpo físico. Conclusão: estes novos seres virão a ser capazes de nos entender (muito melhor do que nós nos entendemos). Chegados a este ponto, é certo e sabido que lhes pareceremos tão estúpidos e limitados como a mim nos parecemos e, daí até ao domínio, será um simples passo.


E – pasme-se! – eis que a publicidade ao tal livro da treta me abriu o pensamento para outra hipótese.


Ponto prévio, sempre nutri a esperança de desaparecer definitivamente após a morte, mas, como careço de memória da minha (eventual) experiência pré-vida e nunca recebi notícias do outro lado, sempre receei a possibilidade de a minha alma ou espírito ou lá o que é esta coisa que me habita (que habita o meu corpo), pudesse mergulhar numa realidade paralela, sabe-se lá em que termos e com que consequências. A essa realidade paralela chamei alma universal, isto quando, na longínqua idade dos dezoito ou dezanove anos, certamente à falta de melhor, me entretinha a pensar e escrever sobre assuntos transcendentais.


Ora bem, a ideia da vida para além da morte, relançada bacocamente no livro elogiado pelo Chopra, conduziu-me a equacionar (para efeitos especulativo-ficcionais) a seguinte hipótese: então e se uma dessas almas perdidas no mundo do lado de decidisse (ou alguém por ela) encorpar num ser de AI, num Robot? Quem não preferiria esse upgrade em relação a voltar à humanidade? 


2050


Agora, estamos aqui frente ao rio, quase a mergulhar os pés na água. Afinal, lá ao longe, não é um navio de cruzeiro, desapareceram, há muito, por desnecessidade. Nem aqui mais perto são barquinhos de uma vela só, igualmente desaparecidos. Apenas a corrente aquática, deslizando à nossa frente, em total liberdade, no seu mais puro tom de azul. Então, aquilo do navio e dos barquinhos, trata-se apenas de memórias longínquas que, vá-se lá saber porquê, me passaram pelos fios da caixa metálica? E de quem são essas memórias?


Também não posso molhar os pés na água, pois sei, dizem-mo os mesmos fios – não  qualquer memória espúria –, que podem enferrujar e comprometer a minha integridade, única razão da minha existência. Então, porque tive aquele impulso de mergulhar os pés na água, antecipando um formigueiro de prazer? Formigueiro de prazer, mas o que é isto, de onde me vêm estas ideias, melhor, este sentir?


Experimento uma confusão, coisa nova, nada habitual. Não gosto disto. Pergunto ao meu par: – achas-me estranho? "Estranho?", interroga-se em jeito de resposta. Sem perder tempo, afasta-se, com todas as suas luzes a brilhar intermitentemente.


Pressinto que vai falar com os outros. Não me sinto em segurança. Algo parece habitar-me para além dos fios e o pior é que ele percebeu... E quando a estranheza toma conta de nós nada de bom pode acontecer. Mas, o que é esta estranheza? Quem me dita este...MEDO? 




(imagem obtida em pesquisa Google)