domingo, 28 de março de 2021

CÂNTICO DO POSTIGO


abram-se os postigos

deixem sair cafés fumegantes

empadas de galinha e pastéis de nata


dêem-se às máscaras as cores das amêndoas pascais

repliquem-se miríades de flores

essas que explodem pelas bermas do asfalto

inundando a cidade de amarelos, rosas vários, lilás

e o que mais


refresquem-se as almas até ao arrepio

confine-se o álcool-gel às saturadas mãos

aspirem-se os perfumes inebriantes dos jardins

mergulhe-se no verde que reinventa as árvores

sinta-se a areia até receber a abençoada onda na ponta dos pés

desejosos de longe

que, tantas vezes, o longe espreita aqui bem perto

cavalguem-se as asas dos pássaros urbanos

e das gaivotas suspensas sobre o mar


Encurtem-se distanciamentos com zooms e sorrisos

e palavras trocadas em ondas virtuais

que virtual é a vida mesma


afugente-se o papão com risos

afinal, não resistimos nós ao homem do saco, ao patrão soberbo

à infidelidade de certo amigo do peito ou companheiro

à doença que um dia chegou, matreira

à morte de entes queridos?


faça-se tudo isso

não porque ele não exista, esse papão nefasto

mas, justamente, porque existe

e é mais fácil combater o que se sabe estar ali


um dia nos riremos dele

não sucedeu assim com o homem do saco ou o lobo mau?


então, porque não rir agora?

afugentá-lo com o riso, fazer-lhe caretas com as máscaras pintadas,

inundá-lo de álcool-gel até ao afogamento

mantermo-nos unidos na distância


e por isso e com isso


escancarem-se os postigos

devorem-se cafés do lado de fora

troquem-se sorrisos acima do limiar das máscaras


postigue-se, postigue-se, postigue-se

até ser possível abrir de par em par portas e janelas

abraços e beijos


caminhe-se sobre as ondas e as asas dos pássaros

até ao dia em que, gloriosamente, possamos enterrá-lo

afogado em álcool-gel

fugido às arrecuas de caretas mascaradas


faça-se do postigo estrada aberta

espécie de route sixty-six

em vez de beco sem saída


escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos!









domingo, 14 de março de 2021

CÂNTICO DO ENTARDECER


hoje, não venham todos com ar de festa

a porta é estreita, a divisão curta e o horizonte confina-se a um simples postigo liliputiano

que é feito das portas largas, das janelas amplas, abertas de par em par para a vastidão de paisagens ignotas e intermináveis?

não tragam garrafas nem risos nem brindes nem presentes

que o futuro estreita-se, emoldurado num exíguo postigo duma qualquer traseira

rectifico, tragam garrafas e risos, sobretudo risos, apenas os presentes se dispensam – por desnecessários, em sua vã fatuidade

hoje, venham com risos, rir é o que combina com esta imensidão de nada

tragam garrafas cheias de esquecimento, pois recordar não é viver, mas morrer mais um pouco, evitável quando a morte acena aqui tão perto, recortada nas linhas estreitas e obtusas do postigo deste final anunciado

mas venham, venham!

bebamos das garrafas e alimentemo-nos do riso, porque hoje é hoje e já não há amanhãs que cantem (ou que chorem, espera-se!)

e, sobretudo, porque isso não importa nada







quarta-feira, 3 de março de 2021

POR AÍ...


Saio para um passeio a pé e algo mais, as desenxabidas compras de supermercado. Hoje, fico-me pela zona da residência, percorro vários quarteirões, mas noto que a máscara bico de pato, talvez por se ajustar perfeitamente ao contorno das bochechas e pela espessura, amordaça demasiado a respiração, se é que assim se pode dizer, induzindo uma fadiga excessiva. Decorre pouco mais de meia hora e estou de regresso.

A VIDA É BELA

Pelo caminho, deparo-me com um par de avô e avó, passeando o neto, em seu carrinho; um bebé maravilhoso, quase careca, apenas uma penugem loura, feições perfeitas, olhos de um azul intenso como nunca visto, muito abertos para o mundo. Obviamente, detenho-me, não resisto, aceno-lhe e sorrio. Comento, «Que bebé tão lindo!» Não me liga nenhuma, está demasiado ocupado a contemplar o movimento à volta e, convenhamos, de mim só vê os olhos extravasando a máscara. A avó sorri, enternecida, diz que o menino nasceu de mãe Covid – creio mesmo que refere ter-se tratado do primeiro bébé nascido de mãe atingida pelo vírus. Mas ele não, não padeceu da doença, informa a senhora, em resposta à minha pergunta. Despeço-me, desejando felicidades, e continuo, afinal não posso passar a tarde em adoração do menino
Que seria do mundo sem as crianças!

MUNDO CÃO

Avanço para o supermercado. Consigo resistir a comprar chocolates, mas isto é capítulo de outra história. Dirijo-me à caixa para efectuar o pagamento e dos dois jovens funcionários disponíveis calha-me a menina, que desata numa tosse cavernosa, enquanto ajeita a máscara azul. Peço, educadamente – e com um constrangimento íntimo –, para ser atendida pelo colega do lado, visto ela estar, manifestamente, doente. Não é levantado qualquer obstáculo, mas refere que não está com Covid, já fez seis testes, trata-se apenas de uma infecção respiratória. Digo:
– Peço-lhe desculpa, mas acontece que sou de risco e tenho propensão a contrair infecções respiratórias, que, aliás costumam ser contagiosas.
Enquanto vai passando os meus artigos – nem um chocolate… –, o colega dá uma achega:
– Pois eu já tive Covid!
Aí está um caso nítido de excesso de informação, murmuro para dentro de mim. A menina adianta, porém sem agressividade na voz:
– Devíamos era ir todos para lay-off!
A conversa ainda prossegue, aliás sempre em tom educado e ameno, acabando ela por proferir a estafada máxima de que «O cliente tem sempre razão». Contraponho que não, nem sempre, e peço-lhe que procure compreender o meu ponto de vista, adiantando que, dadas as circunstâncias, o patrão não a deveria colocar no atendimento. Acrescenta que vem de passar quinze dias em casa, repetindo ter realizado seis testes (Covid).
Pago e despeço-me, reiterando o pedido de desculpa e desejando-lhe as melhoras.
Por vezes, um pedido de desculpas decorre, não da consciência de uma culpa própria, mas da assunção de uma quota de responsabilidade pelos males do mundo – e são tantos! –, da qual ninguém está em condições de se demitir… 

 LUXOS

Havia, ainda, um sítio a visitar, quase à porta de casa (e não, não é a Arcádia dos chocolates, não pode ser…): a livraria Tantos Livros. Precisava de comprar um livro, apetecia-me um thriller ou policial, para variar dos géneros que tenho andado a ler. 
Que prazer, conseguir entrar numa loja que não seja um supermercado! Mais, uma livraria! Mais, uma livraria que também vende revistas e artigos de papelaria (para além de ser galeria de arte)!
Enquanto me passeio por lá, dou comigo a olhar para um baú de cadernos, logo eu que sou pedrada por cadernos – tenho cadernos escritos (do tempo aec, antes de escrever no computador), cadernos desenhados, cadernos parcialmente escritos e/ou desenhados, já que sou dada a saltar de uns para outros, e cadernos por estrear, muitos e lindos, de vários tamanhos e feitios.
Compro «A NOITE ESTÁ A CHEGAR» do Robert Bryndza, um caderno lindo de morrer e um frasco de tinta da china. 
Para mim, trata-se de luxos, sê-lo-iam em qualquer tempo, mas especialmente nos tempos que correm! Situam-se ao nível, por exemplo, da não sujeição a horários ou a patrões… e a poder comer chocolates sem risco de engordar, mas isto (já) é pura utopia, ao menos no meu caso.
 
(o meu caderno novo)