segunda-feira, 4 de março de 2024

MARIA NINGUÉM (2): TRAÍDA POR TROPEÇÕES


conforme desabafei no relato anterior, após a segunda queda, ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. acontece que chamaram o INEM, não que me tivesse apercebido, só acordei na barriga da ambulância, por sinal, bem estranha, uma cara (ou seriam duas?) debruçada sobre mim a medir-me ou apalpar-me não sei o quê, fios pendurados de tubos espaciais e máquinas uivantes. senti-me conduzida ao ventre da minha mãe, como se alguma vez tivesse conservado memória de por lá ter balançado os meses do costume, talvez menos, creio haver sido expulsa em modo prematura. desse local, evoluí para recordações outras, não pelo seu mérito, apenas por razão e fundamento do meu caminho pela vida:

lá em casa, éramos menos que muitos, apenas três. caso a minha mãe não tivesse morrido logo depois de me abandonar ao mundo (e talvez por isso – nunca ninguém se dignou informar-me), havíamos de somar muito para cima desse número, que eu bem via como se povoavam de múltiplos seres as casas da vizinhança, bairro malcheiroso e barulhento onde passei os primeiros anos desta minha existência. a avó, mãe de meu pai, este e eu, três gafanhotos a tropeçar na escuridão daquele tugúrio que, de vantagem em relação aos dos vizinhos, só possuía a de ser maior, não por dispor de mais espaço, antes devido à redução de ocupantes. mesmo assim, tropeçávamos uns nos outros. certas vezes, era a mão do meu pai que tropeçava na minha cara, quem diz cara, diz rabo ou diz cabeça, braço ou onde calhasse. outras vezes, era a garrafa, já tão menos de metade que até fazia sede, a tropeçar no gargalo dele, do pai. a avó só tropeçava de olhos, batiam na minha figura ou na do outro e estremeciam, não sei se de pena, desgosto, indignação, desdém ou de que porra. era muito curta de idade para saber interpretar sinais, de resto não possuía estudos de psicologia, nem de psicologia, nem de quase nada, que aquilo da escola primária exigia motivação e a minha era só uma, divagar.

sempre me perdi e continuo a perder-me por divagar, divagar por realidades várias, e não pensem que não incluem livros, que, se não são livros lidos, são livros pensados e costurados por mim, com princípio, meio e fim, embora nem sempre contenham uma história ao gosto de toda a gente – a bem dizer, nem toda nem nenhuma, pois ninguém os lê. mas eu aprendi a ler, fiz até muita questão nisso, nisso e na geografia, ai!, como eu gostava de percorrer o globo terrestre com os meus pequenos dedos encardidos, unhas negras de desafiar a terra e as cascas das árvores e tudo o que me despertasse a curiosidade de saber o que se passava lá por baixo, lá por dentro. ainda bem que não dispunha de tesouras ou facas ao alcance da mão, nisso (e não só) a minha avó mostrou-se deveras cuidadosa, talvez visse para além da realidade aparente, talvez fosse essa a função do tropeçar dos seus olhos vagabundos. ah!, o que quero dizer, é que, caso tivesse esse tipo de instrumentos à mão, talvez experimentasse num gato ou num cão da vizinhança, não por maldade de ferir ou de matar, apenas por sede de conhecimento. eu tinha de saber por experiência, motivo por que a escola não se me deu muito bem.

também, ainda que desse, não teria mudado nada, pois o meu pai, nem dez anos ainda eu alcançara, pensou, deliberou e executou, pegou em mim e vendeu-me em contrabando, melhor, alugou-me, por uma quantia mensal mais o ganho de se ver livre de mim. nessa altura, quando parti, o tropeço dos olhos da avó caiu para dentro dos meus e fiquei com a impressão de que uma parte deles me rolou para dentro, onde permaneceu até à eternidade, que é onde ela já habita há uns anos, desde o enfarte fulminante, posto que a minha memória se encarrega de zelar por isso. 

quanto ao outro, o meu pai, foi uma cirrose – desengane-se quem estava à espera de algo mais original – que o levou para os infernos onde se cruzam garrafas e chapadas, mulheres perdidas em partos prematuros e filhas menores alugadas por dez réis de mel coado, como dizia a avó, que esteja bem, lá onde a observo – fazendo de conta que  habita algum lugar para lá do meu interior, onde a guardo como o lobo mau guardou a avó da capuchinho vermelho, mas, obviamente, com diversa motivação e contexto. ele, o meu pai, okay, estou para aqui a falar nele, mas isso não significa eternidade, esta acontece quando (enquanto) a memória guarda, zela e cuida. quanto a ele, a memória é mero pretexto para mais um destes livros, no caso, mero folheto, construído do nada. ah, pois, o facto de lerem isto não equivale a verdade, quem vos disse que não se trata, apenas, do cruzamento de palavras a passar-me – a passar-vos – pelos neurónios?

de resto, a minha infância, não posso dizer que tenha sido infeliz ou feliz, não por falta de recordações, mas porque as infâncias não são tempo nem lugar de análise aprofundada e valorativa dos acontecidos: estes vivem-se e é tudo – tudo, tudo, não digo, pois o que acontece, acontecido está, integra-se, entranha-se e não há maneira de desacontecer. mais ou menos como o amor, só mais ou menos, porque este, bem vistas as coisas, pode acabar por desacontecer, basta pensar que a dor, uma grande dor, pode bem matar um amor, mesmo um amor enorme (ou não?).

já agora, só para esclarecer e evitar confusões – estou mesmo a ver que já me imagináveis jovem prostituta –, aqueles onde o meu pai me pôs de alugada eram uma família de velhos, velhos abandonados como convém, que os novos andam muito entretidos a esquecer que um dia – com sorte ou azar, consoante – também serão velhos. eram uma família de um homem e uma mulher, casados. apesar de muito ricos, tratavam-me bem e não queriam que passasse fome, metia-lhes impressão a minha caixa de ossos e o rosto esquálido. mas depois morreram e eu, bem, tive de ficar por minha conta, mas, a bem dizer, até aí, também tinha estado mais ou menos por minha conta, apenas que menos alimentada e com os olhos da minha avó, enquanto existiram, a tropeçar, atentamente, nos meus.

só muito mais tarde fui parar àquela outra casa onde, certo dia, me esparramei pelas escadas abaixo. casa, é modo de dizer, aquilo era um casarão, mais parecia um castelo... do Drácula. 




P.S. : este texto é continuação do (post) imediatamente anterior e, com sorte, irá prosseguir.