quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

UMA DECISÃO E UM COCKTAIL

 

Estava decidido, o último dia do seu passado seria aquele e faltavam nove horas e meia para terminar.


Tinha-lhe sobrado tempo para firmar a decisão. Vezes sem conta, ao longo da vida, ela assaltara o horizonte dos seus dias de diversas maneiras, dias que apenas tinham um ponto em comum, não lhe agradarem, ou melhor, serem-lhe nefastos, pesados, duros de suportar. Quer dizer, acumulara um passado de sonhos mortos, esperanças amordaçadas, o que é bem pior do que destruídas, feridas profundas que, indo bem além da superfície da pele, a deixavam crivada de marcas indesejáveis, ao menos para ele, não que as deixasse visíveis e, muito menos, procurasse ostentá-las, atirá-las à cara de terceiros. Talvez por isso, por não lhe notarem a superfície das marcas deixadas pelo dia-a-dia, não lhe interpretavam bem o ocasional mutismo, o quase sistemático afastamento, aquele permanecer acantonado, como quem parece fugir dos outros, embora bem possa dar-se o caso de esperar que lhe estendam a mão. Mas não mostrava a sua, a sua mão, e escondia os olhos, não se diz que estes são o espelho da alma? Então, como podia exibir, através deles, o que o passado lhe inscrevera, a ferro e fogo, quase nunca com mão branda e compostura doce? Não é que não olhasse os outros de frente, aliás, não compreendia, metiam-lhe mesmo confusão, as pessoas que falam com a boca, enquanto desviam o olhar. Não era o seu caso, entregava o olhar a quem calhava parar e dirigir-lhe a palavra, ou a quem, menos vezes – não por orgulho ou preconceito, antes por simples reserva, embora assim pudesse não ser entendido –, tomava a iniciativa de dirigir a palavra. Acontecia que, mesmo através da dádiva dos seus olhos, mais depressa o viam como ave rara, orgulhoso, independente. Referiam-lhe a independência como quem proclama uma virtude e, ao mesmo tempo, sublinha um defeito. Mas ele lá sabia, dera em ser ou tornar-se independente, muito simplesmente, por mera necessidade, por estar cansado de esperar apoio, um simples estender de mão, um convite ligeiro, sem compromisso, um reparar nas marcas da sua pele e nos seus olhos, os olhos com que olhava de frente, sem, contudo, deixar transparecer o que o passado lhe fizera, ou o que ele deixara o passado fazer-lhe. Isto, sim, era um pensamento que o irritava, desesperava, frustrava, sei lá!, era a pior marca do passado, essa de admitir que a culpa era sua, quer dizer, total e exclusivamente sua. Outras vezes, mais brando no rigor com que tinha por hábito mutilar-se, acalentava a esperança de que se tratasse apenas duma questão de azar, acaso, ou intenção maléfica, sabe-se lá de que bruxa ou fada-má. Imaginava-a, a bruxa ou a fada-má, a rondar o parto de que nascera o seu passado, movendo vestes negras à sua volta, à volta do seu corpo tenro, despido e mole, ainda atado pelo cordão umbilical. Na verdade, como tinha sido possível – e sim, agora pensava já em tempo passado definitivo –, que a sua vida tivesse sido aquela, tão seca, tão zero, tão nada. Olhava para trás e não sobrava quase nada a que pudesse agarrar-se, caso tentasse encontrar um sentido para aquilo, aquilo a que chamavam vida. As suas iniciativas de paz, boa vontade e amor tinham todas batido em ferro duro, resultando estilhaçadas em cacos rejeitados, indesejados, malvistos, muito mal amados.


Portanto, era agora, era hoje, era daqui a menos de nove horas, que encerraria o seu passado, este seria o último dia do seu passado.


Não partilhou a decisão, quem quereria saber? De resto, que sentido faria partilhar uma tal decisão? Ainda iam dizer que não percebiam o que queria dizer, fazer-se de parvos, na melhor das hipóteses, não perceberiam mesmo o que queria dizer, na pior das hipóteses, iriam retirar importância, alardear que o que ele queria era atenção, mesmo tratando-se dos mesmos que o apelidavam de independente. De facto, não só não fazia nenhum sentido como não lhe passou nem vagamente pela cabeça comunicar a decisão.


As horas iam-se escoando, aproximando o prazo limite, aquela última vigésima quarta hora, o dia do seu passado nunca-mais. Uma ideia parva fê-lo sorrir, a de que muitos haveriam de pensar e até dizer que ele tinha acabado com o futuro. Sempre ignorantes, pouco atentos, sem perceberem que o futuro não é senão acumulação de passado, ninguém, nas suas circunstâncias, decide prescindir do futuro, como pode prescindir-se do que não existe? O sorriso dissipou-se depressa, pois o relógio adiantava-se aos pensamentos, estranhamente ou talvez não, os pensamentos dele eram serenos, decorriam menos rápidos do que a passagem dos ponteiros que espartilham o tempo, essa outra invenção, pensou, ainda, mas sem querer alongar-se.


Recostou-se mais comodamente no cadeirão, estendeu a mão para o lado e pegou no copo, cheio da mistura que tinha preparado escrupulosamente como um cocktail. Antes de o ter levado à boca, o telefone tocou, coisa que já não sucedia há vários dias, como, aliás, era habitual. Noutra altura teria atendido, mas não naquela. Deu uma gargalhada de quem acha graça ao cinismo da vida, tão solícita quando desnecessário, e, deixando o telefone persistir nos gritos, bebeu, lentamente mas com determinação, o seu cocktail mata-passados. Depois, ainda lentamente, fechou os olhos, com um sorriso de alívio. Ou um esgar, como talvez alguém viesse a dizer, ao contemplá-lo na pose derradeira.


Eram vinte para a meia noite. Portanto, tinha cumprido a sua decisão, a sua última decisão, nem outra coisa seria de esperar. O passado acabava de perder o seu poder sobre ele.