domingo, 3 de janeiro de 2021

OS ESPELHOS NÃO MENTEM

 
Aí pelos trinta e tal anos, dei em comprar a revista espanhola ¡HOLA!, que, como é sabido, plasma o mundo de fantasia dos famosos, realeza incluída. 
Viria a aditar a POINT DE VUE – mais dedicada à aristocracia europeia e com a vantagem de incluir algumas referências de ordem cultural –, a PARIS MATCH – sobretudo de actualidade, política e não só – e, também, uma ou outra revista de moda (ou feminina), como a MARIE CLAIRE, a ELLE ou a MADAME FIGARO, todas elas francesas. Mais tarde, aditaria a TELVA, espanhola, como a primeira mencionada, e que, versando, principalmente, a moda, inclui um leque de rubricas interessantes, v.g., em matéria de actualidade literária, artística e cinematográfica ou decoração e viagens.

Leitora apaixonada de bons livros e pensadora impenitente sobre o lado sério da vida, não deixava, eu própria, de considerar estranha aquela cedência à espuma parva dos dias, à frivolidade patega de mergulhar no brilho das imagens de papier couché e, pasme-se, nas linhas escritas que as ilustravam.
Verdade seja dita e ressalvado o paradoxo, tal estranheza sempre conviveu com a plena compreensão do fenómeno: tratava-se duma concessão (envergonhada) à superficialidade, num tempo em que vivia assoberbada por intensa e pesada actividade profissional. Eu sei, isto pode soar a desculpa para um desperdício de tempo estúpido, mas a questão é saber: não constituirá a futilidade, no extremo, a resposta que a complexidade da vida requer ou merece?

Seja como for, eu estava – como continuo a estar – a par das tendências de moda e decoração, que, como é sabido, mudam de estação para estação, mas não param de se repetir –, da identidade das modelos da actualidade e, o mais parvo, da vida revelada – a verdadeira só eles sabem e está bem assim – da Isabel Prysler e de outras figuras menores da sociedade, maxime, espanhola e francesa (mesmo que só por acompanhamento das imagens e respectivas legendas).
Deixando de parte o (residual) benefício informativo colhido deste manancial de publicações, ou de apenas algumas delas, a verdade é que, em geral, os respectivos conteúdos se resumem a nada, um nada de falsas glórias ou de reais desgraças repetido à exaustão.
 
Chego, assim, ao ponto que me conduziu ao seguinte tema: o da felicidade como objectivo de vida.
A dada altura, comecei a observar que, no repetido guião das entrevistas publicadas na generalidade desses meios, uma das perguntas sagradas é: – O que mais deseja na vida ou qual o seu verdadeiro objectivo na vida?
Acontece que o guião das respostas, parecendo mimetizar o das perguntas, lhes assume o carácter de repetição, quer dizer, quase sempre a resposta à questão do objectivo de vida coincide: – O que mais desejo na vida (ou o meu objectivo de vida) é ser feliz!
Confesso que este tipo de resposta ou esta resposta-tipo – reproduzida ao infinito por tanta gente gira e célebre... – sempre me deixou intrigada e perplexa.
É que, certamente por inépcia minha, nunca atinei a entender o que é isso de ter por objectivo de vida ser feliz! Ser feliz, ser feliz na vida, durante a vida? Tipo, agora estou aqui a pensar que quero ser feliz, a seguir vem a vida e, bingo!, consigo alcançar a felicidade, sento-me na felicidade para não a deixar escapar e assim sou, assim fico, até que a morte me ceife, feliz, sempre feliz, forever.
Confesso que tenho tido uma vida um bocado (bastante), como dizer?, acidentada, de luta, feita de batalhas sucessivas, algumas tão violentas que mal deixam fôlego para saborear as ocasionais vitórias e recuperar forças para a próxima refrega. Por outro lado, desde cedo me convenci que não sou caso único, todos temos (tivemos ou teremos) a nossa dose de desgraça. De resto, ainda que não pela nossa quota, sempre permanecerá difícil o alheamento das desgraças alheias, basta pensar nos sem-abrigo que connosco convivem no dia a dia das avenidas nacionais.

Tenho o privilégio de aprender a cada momento, sempre mais, de conservar a mente desperta, atenta e, sobretudo, curiosa. No percurso, uma das coisas que aprendi foi a identificar os momentos de felicidade e, a partir daí, a saber estar-lhes atenta, agarrá-los e desfrutar deles, conservando-os pelo tempo por que é possível conservá-los. Bem sabendo que se trata de momentos, não de um estado definitivo, que, de resto, a existir, perderia por completo o sentido. Até porque tais momentos não passam de pontos de chegada e/ou de partida, ao invés de constituirem bancos estofados de damasco cor de rosa onde possamos sentar-nos para sempre.

Penso sobre isso, agora, creio que por efeito da passagem do tempo, esse traidor, que nos apanha sem nos apercebermos. É certo que os sinais não faltam, os espelhos não mentem (de resto, são os únicos a não mentir). Todavia, não são esses sinais que nos convencem. Trata-se de outros fenómenos. Por exemplo, certo dia, dás por ti a fazer anos, um número redondo, um daqueles que já não permite voltar atrás, sim, é isso, a certeza de que agora é sempre em frente, numa vertigem de rapidez, até ao fecho do ciclo, porque agora é isso que nos espera, o fecho do ciclo. E isto não te assusta, não é isto que te assusta, agora até já atingiste aquele ponto de serenidade que te permite identificar e desfrutar dos momentos de felicidade; é outra a interrogação que se te coloca, a ti, que apesar do número redondo e do fim à vista, continuas com a cabeça cheia de ideias e, como sempre foste (e continuas a ser) uma mente dispersa e multidireccionada, atrapalhas-te na ideia de falta de tempo, não porque te faça confusão que o tempo acabe, mas porque te faz confusão não poderes concretizar tudo o que te ferve na cabeça. E há, ainda, uma pequena nuance, mais perturbadora, a de saber se ainda valerá a pena cumprir certos projectos (se para tão pouco tempo...).

E creio que fica explicado (não que fosse necessário!) o motivo por que, a dado passo do meu percurso, perdi tempo (e, esporadicamente, continuo a perder) com a !HOLA! e outras publicações que tal...