quarta-feira, 13 de julho de 2022

A CLEPSIDRA: TEMPO DE DESCONTAR O TEMPO


Chega um momento em que, de forma mais ou menos súbita (e cortante), tomas consciência de que já não é tempo de contar o tempo, mas antes de o descontar. Sei que parece um lugar comum, e certamente o será para quem ainda não foi atingido por esta banal realidade; todavia, para quem o foi, a questão reveste-se de contornos subtis, embora gritantes, e induz reflexão e comparações que, até então, não ocorreriam (simplesmente, não poderiam ter ocorrido).

Por exemplo, compreendes a essência da canção Avec le temps e o porquê do fascínio que, desde jovem, exerceu sobre ti (e associas a recordação dos filmes do Ingmar Bergman, à cabeça, Morangos Silvestres, também vistos e pressentidos com tanta acuidade, ainda antes do tempo…). Mais curioso, pensas que o tempo ido é como os teus mortos, os entes queridos que já partiram, quero dizer, morreram.

Não pretendo ser confusa, passo a explicar ou, pelo menos, a ensaiar uma tentativa de explicação: aquela frase que ainda ontem pronunciavas a propósito de tantos episódios da tua era passada, a frase, parece que foi ontem, deixa de fazer sentido. Nada parece que foi ontem, nem a infância, nem a adolescência, nem o tempo dos primeiros amores ou dos últimos (sim, porque agora sabes que foram os últimos, embora também saibas que nada é definitivo, tudo se transforma e, curiosa e paradoxalmente, tudo permanece em aberto…); nem o que aconteceu, sei lá!, nos anos ou meses mais recentes parece que foi ontem ou sequer anteontem. Apenas foi e a memória do que foi esbate-se de cada vez que te bate à porta (ou lhe bates à porta) e deixas de distinguir a nitidez da imagem, a clareza dos sons e inclusive, talvez, o âmago dos sentimentos, último bastião de resistência. Mesmo que pretendas desfiar a linha da tua vida, organizar arquivos, fazer balanços, nem que seja apenas por um desejo (ou obsessão?) de limpeza – não para concluíres saldo, não vale a pena apurar o saldo do passado, precisamente porque o passado já se cumpriu e não se pode mudar –, facilmente perdes o fio da meada, derivas por caminhos paralelos ou não tanto que, aliás, a vida nada tem de linear, só na tua cabeça à procura de ordem, tentativa de organizar o caos, de preparar o momento para que a clepsidra desconta, mais ou menos apressadamente (consoante o cansaço da tua espera). É aí que entra a canção citada, porque, na verdade, Avec le temps, va, tout s’en va

E associas os teus mortos, os teus mortos que não podes dizer que morreram parece que foi ontem. Não foi ontem, foi quando foi e, tal como com o tempo, a princípio, quando ainda jaziam à vista, estendeste a tua mão para o alto, os dedos prolongados em frente e tiveste a sensação de que esses dedos (quase) tocavam os etéreos dedos deles, embora sabendo que pela última vez. Até idealizaste a cena do tecto da Capela Sistina, aquela em que o dedo de Deus se estende em direcção ao de Adão; só que, neste caso, pela mão de Michelangelo, para a eternidade, enquanto no teu caso – do (ansiado) toque entre a ponta dos teus dedos e a dos teus mortos –, tal contacto, pura idealização (ilusão sabida ilusão), se desvanece e, no momento seguinte, já não é possível, porque os teus dedos ficaram no mesmo lugar, esticados de meter dó, enquanto os deles, dos teus mortos, deslizavam para o desconhecido ou para lugar nenhum, à velocidade dos fenómenos espaciais.

E, à medida que o tempo passa, e muito contra tua vontade e com muita raiva tua, deixas de lhes recordar as feições, as feições dos teus mortos, não mais ouves o canto das suas vozes, das suas gargalhadas e dos seus choros, e os episódios que viveste com eles, bons ou maus – não há vidas perfeitas! – diminuem no rigor dos contornos. Talvez apenas permaneça a memória dos sentimentos ou, tão só, uma névoa dessa memória. O mesmo sucede com o teu tempo ido, mas nem isso te impede de, embora com estranheza e sentimento de culpa (ou algo semelhante), começares a senti-los longe, muito longe de ti, assim como longe está a criança e tudo o mais que foste, em tempos que não mais parece que foram ontem.

Em suma, as memórias remotas do tempo e das pessoas que te morreram e já não parece que foi/foram ontem permanecem, mas acomodadas na categoria das memórias da memória, uma outra forma ou um outro nível de identidade e de pertença, não sei bem a quê. Também não interessa saber. As coisas são como são e ter consciência delas, por duro que possa parecer, é melhor do que não ter, ao menos para quem não aprecia enganos, sobretudo para quem não aprecia auto-enganos.

Tudo isto para dizer que decidi deixar de ter o cabelo castanho claro (um pouco mais claro do que o seu natural), finalmente outorguei liberdade aos meus cabelos brancos. Ainda vai em poucos centímetros, não dá para ver se são muitos ou poucos, com distribuição homogénea ou não, logo se vê. Obviamente sei que vou parecer mais velha, mas que interessa o parecer quando comparado com o ser! E o ser, o que é, é que me tenho deixado fascinar pela clepsidra, plim, plim, plim, a água a pingar inexoravelmente e eu a pensar nos projectos que se acumulam e para os quais não vislumbro horizonte de realização útil. Who cares?, plim, plim, plim, Avec le temps, Morangos Silvestres, os dedos a deixar de se tocar, tretas, mas tretas que não podia deixar passar em vão, afinal sempre fui dada a reflexões e a (des)organizar as ideias, proporciona-me um certo conforto, isto de destralhar a mente (ou será o espírito?)… 

Estou a desfrutar do processo de libertação dos cabelos brancos. De resto, se não gostar do efeito, posso sempre voltar a pintar…


(imagem obtida em pesquisa Google)