quinta-feira, 23 de agosto de 2018

AS FLORES ASSASSINAS


quando era pequeno, chegou a torcer o pescoço a passarinhos bebés, assaltados no ninho. também enfiou álcool pela boca de sapos desprevenidos, chegando-lhes depois a chama de fósforos ou isqueiros, enfim, o que estivesse mais ao alcance das suas mínimas e inocentes mãos (não é proverbial a inocência das crianças?). às laboriosas formigas costumava arrancar as patas, uma a uma, enquanto largavam o fardo que carregavam, com diligência, a caminho de subterrâneos ignotos.

diante da mãe, revelava-se um menino terno, seráfico mesmo. nem assim ela lhe devolvia os beijos e abraços que ele fazia menção de lhe dar. o pai trabalhava de mais, chegava a casa exaurido, recebia em troca o olhar hostil da mulher, quando muito lamúrias, carinho, zero.

chegou a altura de entrar na escola. os colegas perceberam-no estranho, diziam, esquisito. encostava-se em recantos perdidos, com a mochila às costas, num zelo a sugerir tesouros escondidos. seriam os restos dos passarinhos, dos sapos e das formigas? ninguém sabia.

apesar de ser bom aluno, a professora notava-lhe uma estranheza, tanto mais estranha quanto não conseguia catalogá-la. obviamente, desconhecia-lhe as atrocidades praticadas contra animais indefesos. o menino não era dado a alardes, muito menos das suas aventuras filosóficas. sim, havia um fundo metafísico nas mortíferas experiências com os pobres animais. 

a professora acabou por convocar os pais, queria falar-lhes da indelével estranheza do filho. compareceu o pai. - sabe, a minha mulher recusa-se a sair à rua, enclausurou-se numa grade de revolta desde que o nosso filho morreu. - lamento, não sabia que tinham perdido um filho, o vosso filho, quer dizer, o meu aluno, disse que não tinha irmãos. - pois, ele comporta-se como se nunca tivesse tido um irmão. ainda para mais eram gémeos. como deve calcular, foi um grande desgosto para todos nós. aconteceu há dois anos e, daí para cá, a nossa família nunca mais foi a mesma. eu ainda consigo refugiar-me no trabalho, mas a minha mulher parece não ter remédio. tornou-se esquiva, agressiva, sei lá! por mim, já nem me importo, compreendo a sua dor e dou-lhe o desconto, preocupo-me é com o menino. embora não mostre, vê-se que sofre muito com o desprezo e antagonismo que a mãe lhe dedica.

a conselho da professora, o pai levou a criança a um reputado psicólogo, onde continuou por vários anos. 

entretanto, sobreveio um cancro à mãe, que, após prolongada agonia, veio a morrer passados quatro anos, tinha ele catorze. o menino não se afastou do seu corpo morto, enquanto este não foi conduzido à câmara de incineração. ninguém lhe viu uma lágrima nem ouviu o grito que, nesse momento, bramiu para dentro do peito em sofrimento.

o pai restaurou a vida com uma jovem, apenas vinte e dois anos, com a qual teve mais dois filhos, um rapaz e uma rapariga.

o menino tornou-se adulto. obtida a licenciatura e o mestrado, iniciou o ciclo laboral numa empresa multinacional, onde cumpria as suas funções com competência e zelo, embora no mais diplomático dos silêncios e do isolamento social. à curiosidade dos colegas respondia com um sorriso enigmático que tanto podia sugerir isto como aquilo ou precisamente o seu contrário. 

o contacto com a família era escasso, nem isso lhe fazia falta. afinal, tanto quanto sabia, estavam todos vivos e de boa saúde.

obviamente, deixara, há muito, de praticar maldades contra animais indefesos, mas não desistira das motivações que, na remota infância, o tinham conduzido a tão abomináveis comportamentos. das idas sessões com o psicólogo, tinha, progressivamente - embora apenas num plano intelectual -, chegado à compreensão da malignidade desses actos - ao menos para os visados...

um dia, já os seus trinta iam aceleradamente a caminho dos quarenta anos, deu consigo a sair do trabalho e a dirigir-se ao cemitério situado no caminho para casa. entrou, percorreu várias alamedas. o passo, a princípio rápido, foi-se acalmando, como se do local emanasse um qualquer apelo à contenção. sentou-se numa pedra que se erguia por lá e observou, nem ele sabia bem o quê. acabou por ver aproximar-se um funeral, com tudo aquilo que um funeral reclama, o padre, a família enlutada e chorosa, os amigos e, obviamente, o caixão e montanhas de flores já a esmorecer como se sob o peso do desgosto, mas não, era antes por efeito do calor. lembrou-se do irmão, da mãe, dos passarinhos, dos sapos e das formigas, tudo junto, numa confusão tão clara que, num flash de lucidez, teve a percepção nítida daquilo. do que o levara ali, como outrora o conduzira por outros caminhos, bem menos inocentes e mais violentos.

manteve-se à distância até todos terem dispersado, todos excepto o morto ou a morta, que lá ficou submerso em terra seca, esturricada pela intensidade daquele calor infernal. 

já era tarde, certamente aproximava-se a hora de encerramento do cemitério, tinha de sair, mas não resistiu. avançou os metros que o separavam da sepultura, olhou para os lados a fim de se certificar de que já não havia ninguém por perto, e, num gesto furtivo, retirou uma flor. era uma rosa e do caule sobressaíam espinhos agressivos. regressou a casa, ele e a rosa.

na manhã seguinte, a meio do percurso para o trabalho, nas proximidades do portão do cemitério, avistou uma rapariga. não era bonita nem graciosa, mas isso não tinha a mínima importância. dirigiu-se a ela, estendeu-lhe a rosa, cujo caule espinhoso envolvera em papel de seda, sorriu e, perante a desconfiança dela, disse, apressadamente, - a menina desculpe, mas peço-lhe que aceite esta flor, acabámos de inaugurar uma loja de flores aqui no bairro e estamos a celebrar desta forma. atónita, a rapariga estendeu a mão e aceitou, tartamudeando um agradecimento acanhado, tal a surpresa de alguém, ainda que por manobra publicitária, lhe oferecer alguma coisa, para mais uma rosa.

os colegas começaram a reparar que, ao aproximar-se a hora de saída, ele dava mostras de inquietação crescente, não parando de observar o relógio. um ou outro, mais atrevido, meteu-se com ele  (se havia conquista à vista e outras provocações inocentes), mas obteve como resposta o habitual sorriso enigmático, que tanto podia significar um sim como um não ou, inclusivamente, um vai à merda ou a outro sítio qualquer.

passou a frequentar o cemitério diariamente. sentava-se a pensar naquilo, esperava a chegada dum funeral e, quando o defunto ou defunta eram deixados a sós, aprisionados na camada espessa de terra ou nas portas frias dos gavetões ou dos mausoléus, aproximava-se cautelosamente e roubava uma flor, apenas uma, apenas uma de cujo caule brotassem espinhos afiados como dentes de vampiro. depois era o resto, o regresso a casa e, no dia seguinte, a oferta da flor, com o caule espinhoso cuidadosamente embrulhado em papel de seda, a uma qualquer mulher desconhecida, sob um falso pretexto, inventado no momento. imaginação era coisa que não lhe faltava. pena a imaginação não bastar para esclarecer o enigma que o perseguia desde a mais tenra infância, lamentava-se.

até que um dia. não se falava noutra coisa, o caso das raparigas assassinadas, chamado das flores assassinas. até à data, trinta e sete. o desnorte da polícia, intrigada por aquelas mortes de causa idêntica, envenenamento provocado pela picada dos espinho envenenados duma flor, levara-a a procurar ajuda através da televisão. apenas aquele elemento comum, a causa material imediata, revelava-se insuficiente, mas, quem sabia se, divulgada a identidade das vítimas, poderia chegar-se a mais algum dado susceptível de lançar luz sobre a autoria do que - já não havia dúvidas - só poderia ser obra dum serial killer.

ele acompanhou o anúncio televisivo da polícia com a mesma calma com que, no passado, estrangulara passarinhos, explodira sapos e arrancara patas a formigas. também com a mesma calma com que convencera o irmão a subir para o gradeamento da varanda, o empurrara violentamente e ficara a ver esparramar-se com estrondo no cimento do pátio, lá em baixo, à distância de quatro andares. com a mesma calma com que fingira o desespero de correr para os pais e gritar, - o mano caiu, o mano subiu para a varanda e caiu lá em baixo e eu não o consegui agarrar. com a mesma calma com que observara o último suspiro da mãe e a fixara deitada do caixão, já perdida no lado de lá. com a mesma calma com que, desde sempre, se aproximara da morte para lhe perceber a natureza e o sentido. ou não fosse esse o enigma que sempre o solicitou!     












segunda-feira, 13 de agosto de 2018

DIZ QUE FOI ELA QUE O ENGRAVIDOU!


HOMEM QUE JÁ FOI MULHER DÁ À LUZ BEBÉ DE MULHER QUE JÁ FOI HOMEM

Eis a notícia com que me deparei num qualquer site partilhado na publicação dum amigo no Facebook! Para que não restem dúvidas, o anúncio do inusitado feito vem ilustrado com as fotos que reproduzo abaixo. 

Se por acaso não perceberam à primeira, não desesperem. Sucedeu  o mesmo comigo! É demasiada informação para digerir no imediato, mas as fotografias e alguns dados adiantados ajudam (ou talvez não...).

Em síntese: era uma vez uma mulher que se sentia homem e um homem que se sentia mulher. Ambos se empenharam em corrigir os corpinhos que os pais lhes deram, para evoluírem ao encontro das suas verdadeiras naturezas (ela vai para homem, ele para mulher). Faltou, todavia, o golpe de asa final, não transformaram os sexos, ele continuou com o da ela que fora e ela com o do ele anterior.

Pelo caminho, encontraram-se e - a avaliar pela primeira fotografia, sendo certo que há imagens que valem por mil palavras... e verdades - perderam-se de amores recíprocos, entregaram-se nos braços um do outro.

Nos braços e no resto, de tal forma que da fusão dos seus corpos apaixonados veio à vida um novo ser, um bebé! E, pasme-se, sem manobras de inseminação artificial ou barrigas de aluguer. Segundo a notícia (ou o que percebi da dita), a criancinha foi naturalmente gerada no ventre materno, aliás, paterno, por efeito de inseminação natural paterna, aliás, materna.

Pronto, é aqui que a minha perplexidade verdadeiramente começa a fazer-se notar. Mesmo dando de barato que um homem possa estar grávido e que quem o tenha engravidado seja uma mulher, espanta-me que, dadas as suas naturezas de género assumidas, andem a brincar aos médicos ao contrário, ele no papel sexual de mulher, ela no de homem! Não vou entrar no desenvolvimento das dúvidas que esta questão coloca, nomeadamente a propósito da natureza dessas relações sexuais, até porque os rótulos não interessam nada. Mesmo assim e por pura especulação, deixo a pergunta: tratar-se-á duma relação heterossexual, homossexual ou mista? Não que os rótulos interessem, repito, antes que alguém do Bloco de Esquerda se lembre de me vir apedrejar. 

Ainda segundo a notícia, os ditosos pais (ou mães, sei lá!) ainda não tinham escolhido nome para o rebento. Isso já compreendo plenamente! Afinal, sabendo do que a casa gasta, por assim dizer, devem estar indecisos entre, sei lá, Maria ou Manuel. Não, o sexo do bebé - que, aliás, não me lembro de vir mencionado - é irrelevante. Interessa é como ela/ele se virá a sentir no futuro, se menino ou menina. Cá por mim, resolvia o dilema da seguinte forma, dava-lhe o nome de Manuel Maria ou vice-versa e a criança, quando já tivesse voz activa, logo decidiria qual dos dois suprimir. Depois era só ir ao Registo Civil e tratar do resto, que o importante é como uma pessoa se sente.

Mas - e não querendo ser agoirenta - alimento secretamente a hipótese de a criança ser hermafrodita. E vou mais longe, imaginando-lhe um futuro brilhante, quando, chegada a fase certa do relógio biológico, decidir auto engravidar. Já estou a ver os pais (ou mães) cheios de inveja do sucesso mediático do filho/filha.

Como é óbvio, isto são só maluquices que me passam pela cabeça, com a desculpa de que devo contribuir para a silly season, instituição que, quase chegados a meados de Agosto, ainda se não fez sentir (talvez porque já não se note...).

Sério, sério, é pensar que uma pessoa que se sinta identificada com um animal, por exemplo um cão, e desate por aí a latir e a lamber tudo quanto é perna, seja levada para o manicómio, em vez de ser encaminhada para o canil ou adoptada por alguma alma caridosa. Isto, sim, é verdadeira discriminação. Não deveria o Bloco de Esquerda abraçar esta causa fracturante e propor a implementação dum bilhete de identidade canino?!

Imagine-se, agora, que o bebé da notícia vem a pensar que é um gato e come um hipotético futuro irmão que se identifica com um rato? Qual será a reacção dos pais? Compreensão? Repúdio?

Já chega? 

Ok, fico-me por aqui!





Nota: Agora a sério, este texto pretende-se humorístico, não devendo ser considerado como veículo de preconceitos de que, aliás, não sofro (ao menos deste tipo). O meu lema é: viver e deixar viver, ou seja, desde que não invadas a minha esfera de liberdade, faz o que muito bem te apetecer, o mesmo se aplicando a mim, em relação a ti. Portanto, parabéns aos pais e felicidades para a criança!   






sábado, 4 de agosto de 2018

NENHUM AMIGO À SUA ESPERA!


A senhora não deveria ter menos de 75 anos, calculo eu (mas não sou muito atinada em tal tipo de cálculos). A dada altura, alguém lhe perguntou a idade. Iludiu a resposta delicadamente, num (óbvio) fingimento de surdez ou distracção. Lembrei-me da minha avó materna, que sempre se recusou a mencionar em quantos anos ia e que nós, os seis netos, nunca chamámos de avó.

Era uma pessoa elegante, quer na maneira de vestir, quer nos gestos, calmos, suaves e delicados. Via-se que devia ter sido muito bonita, aliás, ainda o era - se é que a velhice, nos seus sinais arrasadores, é compatível com a ideia de beleza...

Em conversa - calhámos, ocasionalmente, no mesmo banco do autocarro ou na mesma mesa de refeições -, mostrou-se bastante comunicativa. Contou-me, por exemplo, ter sido professora de História, fazer parte de várias associações relacionadas e ser monárquica, referindo, a propósito, encontros sociais com o pretendente ao trono, D. Duarte Pio de Bragança, e sua família.

Daí passou ao relato, com gosto manifesto, de uma ocorrência da infância: fora passar o fim de semana a casa de uma amiga e a mãe advertiu-a, com particular insistência, para se portar bem, pois estaria presente um convidado muito importante, sem, todavia, lhe revelar a respectiva identidade. Já na companhia da amiga, estranhou que o dono da casa tratasse o tal convidado por sua alteza. Intrigada (por desconhecer o significado da expressão), dirigiu-se a este e disse, - Alteza não é nome de gente! Ele achou divertido e teceu qualquer comentário sobre a graça das crianças. Tratava-se, afinal, do pai do actual pretendente ao trono, que vivia no exílio e estava proibido de vir a Portugal. Daí a mãe não a ter informada sobre a sua identidade!

Ao longo da viagem, ouvi-a repetir esta história - e não só - a outros viajantes, sempre com a mesma convicção, empenho, deleite e, talvez, uma pontinha de (ingénua) vaidade. Apenas essa sistemática repetição denunciava a sua condição de velhice (apesar de, segundo me parece, a repetição não constituir marca exclusiva dos velhos). De resto, mantinha uma notável memória das coisas da sua profissão, como tive oportunidade de comprovar, enquanto ouvinte duma interessante conversa que manteve com um outro viajante, deveras interessado em História, embora médico de profissão.

A dada altura, referiu os muitos (e bons) amigos que tinha e a riqueza da sua agenda social, com um calendário recheado de almoços e outras reuniões.

Mesmo assim - ou talvez por tudo isso... - pareceu-me uma pessoa só no mundo (embora, num certo sentido, todos estejamos sós no mundo). 

Como familiares mais próximos, mencionou, vagamente, ter um primo muito idoso, padre em exercício numa paróquia do norte, e uma prima, já falecida. Só mais tarde e ainda em tom vago, confessou ter uma irmã mais velha, da qual, por razões não indicadas, estava totalmente afastada.

No último dia da viagem, veio sentar-se à mesa em que eu tomava o pequeno almoço. Aí, vencida pela curiosidade, perguntei-lhe se tinha sido casada. Respondeu-me que sim e que, por sua vontade, se divorciara havia cerca de vinte anos, por estar farta. Abstive-me de perguntar porquê. Com uma espécie de orgulho ou regozijo, como quem se gaba duma ousadia desusada, acrescentou,- Logo a seguir ao divórcio ter sido decretado, estando eu com o meu advogado e o meu marido com a sua advogada, ele dirigiu-se a mim e disse, Maria do Céu, você foi a mulher da minha vida, e eu respondi-lhe, Pois você não foi o homem da minha vida

Não resisti a indagar, - E filhos, tem? Aí, toda ela se transformou, a compostura habitual abalada por uma espécie de arrepio ou tremura, um assomar de lágrimas secas aos olhos cansados e o esboço dum soluço mudo. - Tive um filho, morreu há treze anos, aos 42, com leucemia - respondeu. - E netos, tem? - insisti, indiscreta, incapacitada de domar a curiosidade por aquela vida. Um mal estar doutra natureza, vestido de muita distância construída, embrulhou a resposta, - Tenho, mas não os vejo, a mãe afastou-os de mim. Brutal, pensei, como se aquela solidão desolada se tivesse despenhado sobre os meus ombros.

Enquanto ela prosseguiu, talvez nas suas histórias repetidas, eu reflectia para comigo que mais valia ter estado calada (aliás, já sabia, há muito tempo, que há perguntas a evitar, não só por boa educação, mas sobretudo pelo inesperado das respostas. Sabia-o desde a infância, de quando perguntara a uma colega qual a profissão do pai e obtivera como resposta, - O meu pai já morreu!).

Fomos até à varanda do hotel ver a paisagem de Bodo. 

No regresso, à saída do aeroporto, a senhora dirigiu-se, com os seus modos calmos, para a longuíssima e turbulenta fila de táxis. Nenhum amigo estava à sua espera.

Por essa altura, tornou-se-me claro que não podia deixar de escrever sobre ela. Assim, quando alguém ler esta história, a senhora será recordada, embora por um qualquer desconhecido e não por um ente querido.

(Paisagem de Bodo)