segunda-feira, 15 de abril de 2024

BAIÔA SEM DATA PARA MORRER


«O meu pai odiava o lugar, os meus avós tinham morrido na capital, onde moravam há décadas, e o telhado da casa da aldeia caíra mais ou menos na mesma altura, segundo a minha mãe fruto de alinhamento cósmico, ou por vontade de deus, porque isto anda tudo ligado, porque nós não somos nada.» 

Livros, o que seria de mim sem livros! Pois é, fazem parte, aliás essencial, da minha alimentação e, de vez em quando, não resisto a falar sobre algum, forma de partilha ou convite. É o caso deste, mencionado em título e ao qual pertence a transcrição acabada de fazer, em jeito de epígrafe, da autoria de Rui Couceiro.


Habitava em mim a vaga reminiscência do (intrigante) título, creio que por via  de entrevista captada em algum programa de rádio ou em qualquer plataforma da Internet, não sei bem, mas algo ouvi que germinou em curiosidade latente. O tempo foi passando e ele a esvair-se, todavia sem deixar de latejar no incansável recanto da minha mente onde se aloja a avidez por novas leituras, pela descoberta de novos escritores.


Até que um dia, deparei-me com a página do Autor numa rede social (Facebook) e, hélas!, de forma por sinal bem engenhosa e divertida, ele fazia referência à sua dita obra. Ficou logo ali decidida a minha próxima aquisição literária, o que rapidamente se concretizou e, daí à leitura, foi apenas o (breve) compasso de espera para acabar de ler o livro então em curso.


Explicado como lá cheguei, agora, sim, vou falar do livro, BAIÔA, assim abreviado, por simplificação mas não só – também como homenagem ao personagem portador desse nome, tão rico de humanidade quanto parco de palavras.


Tomadas as primeiras páginas, deparei-me com um narrador, personagem-narrador, que me deu a conhecer uma aldeia perdida na fundura alentejana, de seu (sugestivo) nome Gorda-e-Feia – pobre dela, não lhe bastava a gordura, ainda tinha de acumular a feiura, que ele há sortes mesmo más!, foi o que pensei de imediato.


Uma aldeia abandonada a meia dúzia de sobreviventes de vidas idas, velhos, portanto, cada um com suas idiossincrasias, cujo ponto de encontro/reunião social é a taberna de um deles, que, todavia, não exerce apenas de taberneiro, acumulando com outra actividade, à qual todos acabam sempre por precisar de recorrer, mas que não vou revelar, pois isso não se faz, não se desvenda o mistério para frustar o prazer da descoberta, ou seja e como agora se diz, nada de fazer spoiler.


Pois bem, é precisamente à porta dessa taberna que o nosso narrador (e, para mim, personagem principal, sem pretender retirar importância aos restantes), vai ter, quando, num ímpeto de determinação em abandonar uma vida de que apenas nos revela o essencial – mas sobre a qual largamente me permiti divagar, não deixando de parte a suspeita de um desgosto amoroso... –, decide mudar-se para a dita aldeia, ele, homem jovem, no início dos trinta, único jovem, no meio da tal meia dúzia de velhos e velhas.


Na verdade, tratou-se de um ímpeto, de agarrar uma oportunidade de mudança, de resto, tão radical quanto inusitada, surgida duma circunstância imprevisível, mas que constitui o cerne da questão, quero dizer, da história, o ponto de partida para o que vai desenrolar-se perante o nosso olhar, surpreso, atónito, comovido, divertido e mais uns quantos estados de alma que a narrativa dos estranhos fenómenos que por ali sucedem nos vai despertando.


A circunstância foi que um dos moradores da aldeia, o velho Baiôa (nem imaginava que tal fosse nome de gente, aliás, continuo sem saber, mas isso não interessa nada), ciente de um segredo partilhado por um tal Dr. Bártolo – o médico da aldeia e investigador de assuntos entre o científico e o, por assim dizer, esotérico –, vai empreender, com enorme determinação e empenho e a expensas suas, um plano de renovação das casas da aldeia, derreadas de degradação à medida do abandono (emigração e morte) dos seus moradores, plano esse, com o qual visa garantir o chamamento ao lugar de novos habitantes, sobretudo habitantes novos, que garantam a permanência no mapa da vida da agora exausta, despovoada e semi-morta, enfim, em vias de extinção, Gorda-e-Feia (e eu logo de imaginá-la transformada em Esbelta-e-Bela, mas isto sou eu, não é do livro nem estava nos planos de Baiôa, pois o nome da aldeia sempre seria o seu traço de identidade e, como tal, nem lhe passaria pela cabeça mudá-lo, tenho a certeza).


A primeira casa reconstruída por Baiôa calhou ser a da família do nosso narrador, há muito estabelecida em Lisboa, e, comunicada a notícia, foi recebida com gratidão e entusiasmo pela mãe e acolhida por ele com a tal determinação (desespero?) de necessária mudança, quanto mais não fosse, para sair da zona de desconforto que constituía a sua vida de professor-aqui-e-ali e, sobretudo, de agarrado às redes sociais em elevado grau de dependência, vivendo através de fotografias, posts e pertinentes reacções – e mais não nos conta, mas somos livres de imaginar.


Estranhamente, a diferença etária e cultural entre o jovem recém-chegado e os poucos habitantes da aldeia, superado o choque inicial (da mudez com que que é recebido à porta da taberna), não constitui obstáculo a que se estabeleça uma aproximação e  amigável relacionamento entre eles. Na verdade, à semelhança dos outros, ele passa a frequentar o ponto de encontro, a taberna, vai conhecendo a vida de cada um e, sobretudo, torna-se o ajudante cúmplice e esforçado de Baiôa na reconstrução das casas destroçadas. A relação entre ambos vai-se estreitando, ao ponto de Baiôa, aliás homem de poucas palavras – excepto com as árvores –, o ter posto a par do segredo do Dr. Bártolo, o tal segredo que está na origem daquela sua necessidade e urgência de resgatar Gorda-e-Feia para a vida, já não digo para a elegância e a beleza, apesar de que a reconstrução das casas não deixará de dar um contributo nesse sentido – digo eu, aqui a falar sozinha.


Enquanto nos põe a par desta sua experiência, o narrador revela-nos, a pouco e pouco, as vidas dos parcos habitantes da aldeia e, não menos importante, aliás, central em todo o contexto, acaba por nos desvendar o segredo, o tal segredo que comanda toda a actuação de Baiôa e, em última análise, a sua própria ida para a aldeia, pois se a casa da família não lhe tivesse sido devolvida completamente reconstruída e pronta a habitar, ainda hoje ele andaria a carregar as malas de terra em terra, no exercício da docência, e a viver através de fotografias, palavras e emojis publicados nas redes sociais, sempre num afã crescente e febril necessidade de preenchimento de profunda insatisfação e árido vazio – imagino eu, a menos que tivesse sido consumido por um Burnout, que também sucede em tais casos, e seria deveras lamentável, pois nos privaria da fantástica história que trouxe até nós.


Ora, aquela nova vida assentou-lhe tão bem, que é delicioso ouvir a sua narrativa do que se passou e passa em Gorda-e-Feia, sobretudo pela calma, ponderação, generosidade, elegância, esmero e, não menos importante, o sentido do tempo e o sentido de humor com que o faz. A ligação entre o real e o imaginário, o genuíno e o simbólico, o passado e o presente, a conviverem em harmonia deliciosa. E, se assim o ouvimos com deleite, é também com deleite que o lemos, pois que, afinal, de leitura se trata, e o livro está muito bem escrito.


Aqui chegada, parece-me dispensável concluir o óbvio, ou seja: adorei ler BAIÔA, um livro deveras bem escrito, bem desenhado e construído, que, num jeito mágico e irónico e com um timing perfeito, nos fala de temáticas caras, nomeadamente, em termos humanos (velhice, abandono, solidariedade...), sociológicos (desertificação, mudança de paradigmas de vida...) e, inclusivamente, políticos (promessas e aproveitamentos eleitorais...).


Recomendo, pois, vivamente, a leitura deste romance e, já agora, anuncio, entusiasmada, que o próximo romance do Autor virá ter connosco dentro de pouco tempo.


Seguir o Autor nas redes sociais é, igualmente, algo que aconselho, pela valia das notícias editoriais que vai partilhando – é Editor da @contrapontoeditores – , e, em geral, das suas publicações, caracterizadas pelo bom gosto e bom senso. De resto – e abro um parêntesis para o referir – é por encontros como este que permaneço nas redes sociais, apesar da miséria muita que por lá também pulula.












segunda-feira, 4 de março de 2024

MARIA NINGUÉM (2): TRAÍDA POR TROPEÇÕES


conforme desabafei no relato anterior, após a segunda queda, ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. acontece que chamaram o INEM, não que me tivesse apercebido, só acordei na barriga da ambulância, por sinal, bem estranha, uma cara (ou seriam duas?) debruçada sobre mim a medir-me ou apalpar-me não sei o quê, fios pendurados de tubos espaciais e máquinas uivantes. senti-me conduzida ao ventre da minha mãe, como se alguma vez tivesse conservado memória de por lá ter balançado os meses do costume, talvez menos, creio haver sido expulsa em modo prematura. desse local, evoluí para recordações outras, não pelo seu mérito, apenas por razão e fundamento do meu caminho pela vida:

lá em casa, éramos menos que muitos, apenas três. caso a minha mãe não tivesse morrido logo depois de me abandonar ao mundo (e talvez por isso – nunca ninguém se dignou informar-me), havíamos de somar muito para cima desse número, que eu bem via como se povoavam de múltiplos seres as casas da vizinhança, bairro malcheiroso e barulhento onde passei os primeiros anos desta minha existência. a avó, mãe de meu pai, este e eu, três gafanhotos a tropeçar na escuridão daquele tugúrio que, de vantagem em relação aos dos vizinhos, só possuía a de ser maior, não por dispor de mais espaço, antes devido à redução de ocupantes. mesmo assim, tropeçávamos uns nos outros. certas vezes, era a mão do meu pai que tropeçava na minha cara, quem diz cara, diz rabo ou diz cabeça, braço ou onde calhasse. outras vezes, era a garrafa, já tão menos de metade que até fazia sede, a tropeçar no gargalo dele, do pai. a avó só tropeçava de olhos, batiam na minha figura ou na do outro e estremeciam, não sei se de pena, desgosto, indignação, desdém ou de que porra. era muito curta de idade para saber interpretar sinais, de resto não possuía estudos de psicologia, nem de psicologia, nem de quase nada, que aquilo da escola primária exigia motivação e a minha era só uma, divagar.

sempre me perdi e continuo a perder-me por divagar, divagar por realidades várias, e não pensem que não incluem livros, que, se não são livros lidos, são livros pensados e costurados por mim, com princípio, meio e fim, embora nem sempre contenham uma história ao gosto de toda a gente – a bem dizer, nem toda nem nenhuma, pois ninguém os lê. mas eu aprendi a ler, fiz até muita questão nisso, nisso e na geografia, ai!, como eu gostava de percorrer o globo terrestre com os meus pequenos dedos encardidos, unhas negras de desafiar a terra e as cascas das árvores e tudo o que me despertasse a curiosidade de saber o que se passava lá por baixo, lá por dentro. ainda bem que não dispunha de tesouras ou facas ao alcance da mão, nisso (e não só) a minha avó mostrou-se deveras cuidadosa, talvez visse para além da realidade aparente, talvez fosse essa a função do tropeçar dos seus olhos vagabundos. ah!, o que quero dizer, é que, caso tivesse esse tipo de instrumentos à mão, talvez experimentasse num gato ou num cão da vizinhança, não por maldade de ferir ou de matar, apenas por sede de conhecimento. eu tinha de saber por experiência, motivo por que a escola não se me deu muito bem.

também, ainda que desse, não teria mudado nada, pois o meu pai, nem dez anos ainda eu alcançara, pensou, deliberou e executou, pegou em mim e vendeu-me em contrabando, melhor, alugou-me, por uma quantia mensal mais o ganho de se ver livre de mim. nessa altura, quando parti, o tropeço dos olhos da avó caiu para dentro dos meus e fiquei com a impressão de que uma parte deles me rolou para dentro, onde permaneceu até à eternidade, que é onde ela já habita há uns anos, desde o enfarte fulminante, posto que a minha memória se encarrega de zelar por isso. 

quanto ao outro, o meu pai, foi uma cirrose – desengane-se quem estava à espera de algo mais original – que o levou para os infernos onde se cruzam garrafas e chapadas, mulheres perdidas em partos prematuros e filhas menores alugadas por dez réis de mel coado, como dizia a avó, que esteja bem, lá onde a observo – fazendo de conta que  habita algum lugar para lá do meu interior, onde a guardo como o lobo mau guardou a avó da capuchinho vermelho, mas, obviamente, com diversa motivação e contexto. ele, o meu pai, okay, estou para aqui a falar nele, mas isso não significa eternidade, esta acontece quando (enquanto) a memória guarda, zela e cuida. quanto a ele, a memória é mero pretexto para mais um destes livros, no caso, mero folheto, construído do nada. ah, pois, o facto de lerem isto não equivale a verdade, quem vos disse que não se trata, apenas, do cruzamento de palavras a passar-me – a passar-vos – pelos neurónios?

de resto, a minha infância, não posso dizer que tenha sido infeliz ou feliz, não por falta de recordações, mas porque as infâncias não são tempo nem lugar de análise aprofundada e valorativa dos acontecidos: estes vivem-se e é tudo – tudo, tudo, não digo, pois o que acontece, acontecido está, integra-se, entranha-se e não há maneira de desacontecer. mais ou menos como o amor, só mais ou menos, porque este, bem vistas as coisas, pode acabar por desacontecer, basta pensar que a dor, uma grande dor, pode bem matar um amor, mesmo um amor enorme (ou não?).

já agora, só para esclarecer e evitar confusões – estou mesmo a ver que já me imagináveis jovem prostituta –, aqueles onde o meu pai me pôs de alugada eram uma família de velhos, velhos abandonados como convém, que os novos andam muito entretidos a esquecer que um dia – com sorte ou azar, consoante – também serão velhos. eram uma família de um homem e uma mulher, casados. apesar de muito ricos, tratavam-me bem e não queriam que passasse fome, metia-lhes impressão a minha caixa de ossos e o rosto esquálido. mas depois morreram e eu, bem, tive de ficar por minha conta, mas, a bem dizer, até aí, também tinha estado mais ou menos por minha conta, apenas que menos alimentada e com os olhos da minha avó, enquanto existiram, a tropeçar, atentamente, nos meus.

só muito mais tarde fui parar àquela outra casa onde, certo dia, me esparramei pelas escadas abaixo. casa, é modo de dizer, aquilo era um casarão, mais parecia um castelo... do Drácula. 




P.S. : este texto é continuação do (post) imediatamente anterior e, com sorte, irá prosseguir.




segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

MARIA NINGUÉM TRAÍDA PELAS ESCADAS


pronto, havia de ser logo hoje, ainda nem madrugada acabada de desadormecer. sem saber bem como, ignorante que sou dos aconteceres fortuitos (e mesmo dos outros, a bem da verdade o digo), esbardalhei-me pelas escadas abaixo, sem tempo nem cabeça para contar os degraus, só que eram muitos, não uma simples meia dúzia ou, vá lá, dez, mas uma escadaria em grande estilo, como as das mansões dos ricaços nos filmes de Hollywood.

estava a dizer, esbardalhei-me por ali abaixo, como carro sem travões em descida íngreme, as várias saliências do meu corpo (e não são poucas, magra que estou, qual espantalho) a embaterem a eito e com estrondo nas esquinas dos degraus, a cabeça, um ombro, o outro ombro, as ancas, as mãos enroladas numa impossibilidade de defesa, os pés torcidos, um sapato descascado a perder-se pelo caminho abrupto, e, num ápice que durou décadas de eternidade, eis-me cá em baixo, completamente esbardalhada, já disse, mas não me canso de repetir, que isto das histórias de desgraça não são nada se não se repetirem até à exaustão.

acabada de aterrar, encontrei os meus olhos fechados, os olhos que tenho negros, da cor de um poço sem fundo, do tamanho daquele onde acabara por me deixar engolir. a boca estava meio distorcida, creio que a tentar recuperar do espanto, mas talvez fosse a tentar evitar gritar, sim, porque, naquele momento, ali e então, eu desconhecia o meu estado geral, nem sequer se conseguiria reunir os meus pedaços e levantar-me para ir avaliar os estragos.

ai, os estragos!, minha aflição mor, a madeira impecável de cera, polimento e brilho, os degraus arreganhados para mim, a olharem-me de alto, e eu ainda sem saber se os ferira em algum lado, lhes arrancara uma lasca ou, embora menos grave, lhes sujara o esmero da limpeza, por exemplo manchando-os com o sangue que me escorria pelo nariz dorido, entretanto a ganhar forma de batata e – parecia-me, só pelo sentir – a entortar para um lado (pensei: com sorte é para o lado direito, talvez corrija o desvio para a esquerda, vindo de nascença ou, quem sabe, duma chapada perdida no tempo! surpreendi-me com este pensamento positivo, nada adequado a tão aflitiva situação, mas sou mesmo assim, quando menos se espera, quero dizer, quando menos o espero, lá estou eu a variar, a perder-me em pensamentos paralelos que tanto podem fazer sentido, como era este o caso, como revelar-se absolutamente abstrusos).

e não era apenas isso, também do canto da boca me deslizava um fio de sangue peganhento, a cheirar a metal, vindo não sei de que recôndito ponto interior. procederia do estômago, dos pulmões? esta suposição assustou-me um bom bocado, assim do tamanho de um grande cacho de bananas da madeira, pequeninas, mas muitas, muito juntas (imaginei).

levei a mão à boca e senti um buraco não previamente detectado, não me refiro ao formado pela boca aberta, mas um mais pequeno, a cova de um dente, pelo menos um dente, concluí sem dúvidas, mesmo na ausência de espelho que o confirmasse. e as minhas preocupações recrudesceram, que seria feito do dito pedaço de marfim, é disso que são os dentes, certo?, ter-se-ia enfiado no primor da escadaria, rasgando-lhe o esplendoroso madeirame?

continuava sem saber se poderia voltar a reunir os meus pedaços soltos apenas ligados pela dor, uma dor todavia comum, espalhada por todo o lado, nuns sítios mais intensa do que noutros, é certo, mas ressoando em uníssono, em modo de campainha estrídula e, em alguns pontos, de chama acesa.

digo, estava eu ainda sem saber se… e, portanto, ignorando se voltaria a poder levantar-me e dei comigo, naquele decúbito de estendida-feita-quase-morta, a olhar para a escadaria, da base ao topo que mal conseguia alcançar, tal era a sua magnitude e imponência. os meus olhos ainda não estavam bem abertos, creio que algo inchara pelo lado de fora, das pálpebras e das olheiras, e os fez ficarem tão, mas tão pequenos, que não alcançavam o que eu pretendia me relatassem: os eventuais (quase certos, só por milagre não) estragos nas preciosas escadas.

então, insinuou-se-me este pensamento: se, quando comecei a descer a porra das escadas, as tivesse olhado com tanta atenção como agora, só que de cima para baixo e não de baixo para cima, de certeza que não me tinha deixado desabar por aí abaixo àquela velocidade furiosa que já se sabe. mas, como diz não sei quem, o que está feito, feito está. onde andaria eu com a cabeça ou, melhor dizendo, com os pés, quando me lancei naquele mergulho vertiginoso (credo, até dá para imaginar um empurrão prodigalizado por alguma força do mal, ele que as há, há, é como as bruxas)?

ouvi passos e assustei-me, quero dizer, assustada estava eu, o caso não era para menos, ainda não  alcançara fazer o balanço dos estragos na porra da escadaria, com o devido respeito pela sua magnificência e pelo carinho e atenção com que sempre a tratara (sim, era eu a encarregada de zelar por sua excelência aquela puta, quero dizer, pela maravilhosa escadaria e, apesar de sempre me terem feito confusão as atenções que me eram exigidas para com a dita, como se não passasse de um local vocacionado para levar com os pés, o facto é que lhe dedicava um certo carinho).

adiante, ouvi passos, desviei os olhos do meu objecto de indagação e, a grande custo, elevei-os na vertical, onde pressentira umas sombras. e foi aí que dei com os olhos dele, muito arregalados e a espumarem de raiva. encolhi os meus pedaços soltos – ainda não estava certa de os conseguir reunir – e ouvi, vindas da caverna malcheirosa e cuspideira da sua boca desguarnecida de lábios (aquilo mais pareciam duas linhas desenhadas a esferográfica rollerpoint de tamanho 0,05 ou menos), ouvi, repito, as seguintes palavras, que senti como pedras arremessadas sobre o meu maltratado corpo: o que fazes aí, sua lerda, toca a mexer, ou achas que não há mais quem queira trabalhar?

nesse momento, a minha vida de merda reluziu-me num flash que mais parecia fogo de artifício, por qualquer razão, ou melhor, desrazão, deu-me uma enorme vontade de rir, ao que se juntou uma força vinda do fundo não sei de que poço, talvez aquele para onde eu acabara de ser sugada, levantei-me dum salto, mesmo sem perceber se algum pedaço do meu corpo ficou para trás (que importava isso!), obliterei o inventário dos danos da escadaria, fixei o homem-sem-lábios-e-já-agora-sem-coração e vociferei: vai para a grandessíssima puta que te pariu.

ele não estava à espera, espantou-se o maldito buraco da sua deslabiada boca muito aberta, esboçou o seu corpo fardado um avanço na minha direcção, enquanto eu (ou o que restava de mim) já avançava com quanta força tinha, o mesmo é dizer, a força da determinação, que da outra, a física, nem restos me assistiam, em direcção à saída.

sem olhar para traz – não por medo, mas por desprezo, o mais absoluto dos desprezos –, empurrei a porta e, na pressa de sair dali, esqueci-me que três degraus me separavam da rua. só tive tempo de desabafar, num desvalido sopro: que se fodam as escadas.

instantaneamente depois (passe a contradição, a existir), ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. por agora.









segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

EXTRACTO DE UM ROMANCE AINDA SEM TÍTULO

Com a partida da filha, Ema ficou sozinha e deu consigo a sentir o peso duma solidão que nunca pensara reconhecer e, muito menos, a que nunca admitira vir a submeter-se. As costas, outrora direitas, começaram a exibir uma ligeira, quase imperceptível, inclinação para a frente, o que, ao caminhar, lhe orientava os olhos para o chão, como se aí procurasse qualquer coisa perdida ou intrigante – talvez o que fiz com o passado, talvez o que me reserva o futuro, pensava frequentemente, logo ela que sempre estivera habituada a cavalgar o tempo e os acontecimentos e a olhar em frente, seguir adiante de peito aberto, sem se permitir reflexões metafísicas, dúvidas e, muito menos, lamúrias! Nessas alturas, lembrava-se do falecido marido, dos seus ombros curvados, e, num jeito irritado e voluntarioso, endireitava as costas e fixava a linha do horizonte, como quem pretende capturar o mundo e dominá-lo. Porém, as mais das vezes, a frente do mundo devolvia-lhe, feito espelho de cristal, uma face marcada pela inexorabilidade da passagem do tempo, um tempo mal vivido, uma face riscada de pequenas e grandes rugas, um corpo de que a tonicidade se despedira, um corpo que se fechara aos prazeres, uma pessoa que se entregara quase exclusivamente ao trabalho em nome da responsabilidade. Lutava, então, com as lágrimas que não se permitia deixar escapar, mas não lograva abster-se de dizer para dentro de si: Então é isto, foi nisto que me tornei, mesmo sem me dar conta! Que faço agora, que poderei fazer com isto? Imperceptivelmente, as costas voltavam a ceder, os olhos voltavam a cair ao chão e, ao aperceber-se, dava fim às reflexões com uma explosão irada: Que se foda! – vociferava para dentro de si, ela que não tinha por hábito dizer palavrões.

Chegada a casa, tomava um duche rápido, preparava um pequeno snack que colocava num tabuleiro e enroscava-se no seu canto do sofá, em frente à televisão, sintonizada num canal de séries policiais ou de filmes. Interrompia a visualização para falar a um dos filhos ou a ambos, mas ou tinham os telemóveis ocupados ou estavam eles próprios ocupados com diversos afazeres, de modo que as conversas, a existirem, eram breves e de parco conteúdo. Se fosse com o pai, haviam de ter longas conversas e prodigalizar carinhos, tão íntimos eram entre eles; comigo nunca foi assim, nunca pude estar tão presente e, de resto, nunca fui dada a manifestações exteriores de afecto; não significa que não gostasse deles, mas talvez o não tenham compreendido. O facto é que nunca me perdoaram a morte do pai, como se tivesse sido eu a matá-lo! Vá-se lá entender esta vida?! – assim dialogava consigo própria, em jeito de sobremesa do seu frugal snack e do inêxito das chamadas telefónicas ou da sua mera tentativa. E sentia um peso, aquele peso, como se a casa ameaçasse despenhar-se-lhe em cima e ela não pudesse fugir, à semelhança do que acontece nos sonhos em que ficamos paralisados quando, bem lá no fundo, sabemos que, para escapar, nos bastaria mexer as pernas, só que não conseguimos. Aqui chegada, pensava: Mas é claro que sou capaz, também não sou assim tão velha e, bem vistas as coisas, nunca dependi de ninguém. Estou em baixo de forma, é certo, coisa que nunca admiti poder vir a suceder-me, mas posso por-me de pé, é questão de querer, de ter força para querer! Um princípio de sorriso começava a desenhar-se-lhe no rosto cansado, desenrolava o corpo daquela espécie de ninho em que o colocara, punha-se de pé, ia até à janela, afastava a cortina e olhava para o jardim. Perdia-se uns momentos, que podiam ser de maior ou menor duração, a pensar em como revitalizar-se: pintar o cabelo, massajar o rosto com bons produtos, fazer ginástica ou natação, frequentar locais onde pudesse encontrar pessoas interessantes. As ideias surgiam-lhe em catadupa, acumulavam-se numa abundância tal que, ao fim de um tempo, já não pesavam cada uma de per si mas como um todo e aquele todo deixava de ser um leque de hipóteses aliciantes para se transmudar numa amálgama de trabalhos forçados e, quando dava por ela, os seus olhos já não pairavam nas cores vibrantes do jardim, mas no cinzento do peitoril da janela, porque as suas costas haviam voltado a descair, a ceder. Ocasionalmente, uma lágrima rolava, a segunda era mais difícil, que, ao menos para aquilo, ainda tinha um pouco de força de vontade, a necessária para impedir as lágrimas de se soltarem. E já não era apenas o peso da casa vazia a abater-se sobre si, mas o peso dos seus pensamentos, se é que não era este a criar-lhe a ilusão do peso da casa.

Certo dia, ao fim de muitos dias, ao longo de muitos meses, daquela rotina, aninhada no seu canto de sofá, teve a lucidez de reconhecer, talvez com a ajuda dos conhecimentos e experiência da sua profissão, aquilo que insistira em negar durante tanto tempo: aqui cheguei, eu, tão senhora de mim, estou com uma monumental depressão, impõe-se que me trate! Permaneceu encolhida, sem se esforçar por endireitar as costas, decidida a empenhar todas as suas forças – que havia de desencantar dentro de si, por mais que lhe custasse – para se tratar. Que se lixem as costas e as rugas e a flacidez e a puta que as pariu, tenho é de tratar do que se partiu cá dentro e já não é sem tempo, reflectiu.

Então, com a exaustão de que o seu corpo estava tomado – porque não podia deixar de assim estar –, fez o esforço de se levantar e ir buscar o telemóvel, que esquecera dentro da carteira. Pelo caminho, sentou-se numa cadeira, endireitando as costas contra o espaldar, procurou nos contactos e marcou um número, o número dele. Sem grandes preâmbulos ou justificações, pediu-lhe que lhe indicasse um bom psiquiatra. É certo que podia ter esperado pelo dia seguinte, em que o procuraria no hospital, no departamento de Hematologia, mas, desde a história amorosa que ambos tinham cessado aquando da morte do Luís e dos atinentes mexericos, que, não obstante a sua discrição, se tinham gerado, faziam todos os possíveis por se evitar, tendo ela, inclusivamente, a seu pedido, mudado para outro serviço. Aliás, há decisões que correm o risco de não vir a ser postas em prática caso sejam adiadas e ela não queria adiar aquela decisão, a de se tratar e de, para isso, escolher com critério um profissional a quem, por certo, iria ter de confiar a sua vida interior, os mais íntimos recantos da sua vida interior, detalhes recônditos do seu pensamento e emoções. Não pretendia acabar como uma falhada e, para ela, apesar de bem saber que a depressão é uma doença grave, não conseguia afastar a ideia de que acabar deprimida representava um falhanço – tal é o peso da sociedade e dos seus preconceitos, mesmo sobre pessoas de índole racional e bem informadas. Então, deu consigo a pensar em como tinha sido bem pouco compreensiva com o marido e que talvez os filhos tivessem alguma razão em lhe imputarem a responsabilidade pela morte dele. Mas – contrapôs –, como pode uma pessoa ser responsabilizada por algo que não controla e muito menos pretende ou sequer deseja?! E depois, em jeito de aligeirar: Não te trates, não, Ema, e vais ver como elas mordem

A princípio, ele revelou-se surpreendido, quase desconcertado, com o telefonema, mas rapidamente mostrou interesse em saber notícias dela, forneceu-lhe o contacto de um psiquiatra que reputava de muito competente – «Ao menos, não acumula casos de suicídio de pacientes na carreira», disse, em jeito de humor negro, fazendo-a sorrir e responder, «Pois, é isso que se pretende e não uma ajuda ao suicídio ou reforço para abraçar a eutanásia».

Após uns minutos de conversa, ele propôs-lhe que se encontrassem para jantar. Apanhada de surpresa e frágil como se sentia, não encontrou um jeito imediato de aceitar, mas ele não estava disposto a desistir, pelo que, entendendo a sua atrapalhação, acabou por propor: «Ema, pensa no assunto e diz-me qualquer coisa, mas fico à espera de um sim. Afinal, parece-me que merecemos uma segunda oportunidade.» Despediu-se, de seguida, enviando um beijo, que ela, com a boca seca, retribuiu em surdina.