terça-feira, 9 de novembro de 2021

A PROIBIÇÃO DO OUTONO

pessoas cinzentas deslizam pela rua, aqueles dois, homem e mulher, de mãos dadas, força do hábito, comodidade ou outra porra qualquer, duvido que seja amor, ela de cara tensa, talvez pensando que o domingo em breve será segunda-feira, ele abstraído num mundo só dele, bem podiam desligar-se das mãos que nem dariam conta, os corpos prosseguiriam cada um por seu lado, talvez em direcções opostas; ou então não, foi apenas o amor a resistir à passagem do tempo, o mesmo é dizer, da vida, há quem afirme existirem casos que tais e, a ser assim, a cara tensa dela há de descontrair-se e a cara vaga dele há de baixar à terra, quando se olharem frente a frente, por exemplo, ao chegarem a casa, e até lá entregam as despesas da conversa e da comunicação às suas mãos unidas por hábito de amor, aqui não há lugar a mais hipóteses.
e o sol, agora já tão baixo, brilha num céu plenamente azul, aquece o horizonte e as proximidades, ambos, sol e céu, conluiados numa tirania arrogante, impedindo o outono de se manifestar. nem farrapo de cinza nem fita de água deslizando das alturas, nem ambiente de castanha assada e quase véspera de natal. porém, não faltam iluminações absurdas, absurdas por este sol, tirano dourado, por este céu, tirano azul, conspirando ambos contra quem de direito aqui devia estar a repor o lugar da nostalgia e do aconchego, esses lugares cinzentos que velam o longe e restituem a calidez da infância.
avanço, logo à frente paro, e assim e assim sempre, porque é a cidade iluminada de céu e sol, os semáforos domingueiros estão malucos e os condutores adormecidos, demoram eternidades a arrancar, como me irritam estes pasmados!, cidadãos pasmados, talvez amolecidos por este sol e este céu fora de tempo. sim, sei-me excepção nisto de padecer por carência de outono, dessa espécie de cinzento.
passo por sítios que me são velhos, como o instituto do medicina legal, que já me vi obrigada a frequentar, não na qualidade de morta (e daí, quem sabe?), mas na de observadora de autópsias – exigência da cadeira de medicina legal. memórias evitáveis, que, todavia, insistem em permanecer.
memórias outras, bem melhores: o fim de setembro/princípio de outubro, quando o tempo era como devia ser, as estações do ano iguais em direitos, não sujeitas à tirania umas das outras, função de absurdas e irreparáveis alterações climáticas. nem de propósito, lá estão eles em glasgow, mais uma cimeira da treta, fazem de conta, agendam metas para decénios futuros, quando já não estarão cá e talvez já ninguém esteja. bem vistas as coisas, poderá residir aí a solução, deixar morrer o planeta de humanos, para depois a natureza renascer em paz.
regressei a casa.
as pessoas cinzentas também regressaram ou hão de regressar a casa, é o recolher da escuridão, os tiranos retiraram-se, um abaixo do horizonte, o outro atrás do manto lunar, faz escuro, descontando as estrelas e os candeeiros. o casal de mãos dadas deslargou-se para entrar em casa e agora vamos ficar a saber se era amor, aquilo das mãos dadas e das caras a direito, ela tensa, na sua, ele absorto, na dele. irão enlear-se num beijo, as mãos dele segurando o pescoço dela, as dela rodeando as costas dele? ainda que sem palavras? sem palavras, mas com desejo ou apenas ternura? ou as palavras são as derradeiras provas de amor? haverá amor sem palavras? por exemplo, a palavra amor, significa o quê? poderá traduzir a tensão de uma cara e a dispersão da outra, entrelaçadas pelos dedos de duas mãos que só se desprendem para entrar em casa?
e o outono, que significa agora o outono, quando há dois tiranos luminosos à solta empenhados em o proibir?
dúvidas, apenas dúvidas, já não existem certezas, nunca houve tanta  carência de certezas. por isso me faz falta o outono, ser reconduzida ao aconchego da idade infantil, aquela em que tudo era tão certo e tão seguro como as nuvens e a chuva de fins de setembro/princípios de outubro, altura em que o fumo das castanhas assadas se evolava desenhando um cheiro morno e acariciador e as mãos dos pais distribuíam protecção, enquanto das suas bocas saíam palavras definitivas e indesmentíveis.







segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ATÉ AS MOSCAS SUMIRAM!

este verão, anda tudo tão apalermado que nem a silly season se manifesta, aliás, até as moscas sumiram. quanto ao sumiço destas, ainda bem, mas não no tocante à silly season, que sempre era motivo de divertimento.
ou então – e parece-me que é mais isto –, a idiotice tomou conta do ano inteiro e já nem dá para reparar quando calha sobressair nos calores de agosto.
os gloriosos verões animados por gafes de governantes perderam força, ou não se tivessem tornado uma constante ao longo de todas as estações. por exemplo, quem se lembra de encarar com cinismo o facto de, em plena época de incêndios, ser noticiado que os sistemas de detecção de fogos – sim, já não é bem o SIRESP – não funcionam? ninguém, pois, em se tratando do departamento do ministro cabrita, vem logo à memória um variado leque de acontecimentos susceptíveis de relegar aquele para segundo plano, por exemplo, o caso do estrangeiro que, em tempos, se suicidou nas instalações do SEF do aeroporto de lisboa, sem ter sido socorrido pelos inspectores daquela instituição, que, quando o viram estirado no pavimento, se limitaram a mandar-lhe uns pontapés, uns socos e uns bofetões, apenas para confirmarem a evidência, o tipo já não mexia, estava mortinho e, já nada havendo a fazer, por lá o deixaram; também podia acorrer à lembrança o caso, mais recente, do operário em trabalho numa autoestrada portuguesa que se atravessou negligentemente à frente duma viatura na qual o dito ministro se fazia transportar à razoável velocidade de aí uns 200 Km/hora; que atire a primeira pedra quem nunca.
é claro que, em defesa da silly season, sempre se poderia invocar um caso fora da alçada do dito (e azarento) ministro, por exemplo, da área da saúde; concretamente, a mais vertiginosa evolução científica de todos os tempos, mercê da qual, em cerca de uma semana ou talvez nem tanto, se evoluiu da proibição à recomendação da vacinação dos menores entre os doze e os quinze anos; ainda por cima, tratando-se de uma evolução científica não baseada na evidência de fatos devidamente comprovados, mas em critérios inatingíveis pelo comum dos mortais. todavia, desculpem-me insistir, por mais boa vontade que se tenha, esta via não dá para salvar a silly season, dadas as mais que as mães mudanças radicais a que, ao longo de quase dois anos, nos habituou a dr.ª graça freitas: anúncio de que o (agora velho) novo coronavirus não voaria até portugal/mas cá aterrou, não se justificava o uso de máscaras/justificava-se o uso de máscaras, a vacina da astrazéneca não devia ser aplicada aos velhos/a vacina astrzéneca só devia ser aplicada aos velhos, etc, etc, etc.
podia, ainda, lançar-se mão do recente caso dos senhores do chega de (salvo erro) vila real – que vergonha, tinha logo de ser a minha terra! –, que, após o seu capataz, cujo nome nem quero pronunciar, mas que possui uma coelha chamada acácia, ter andado a defender a não vacinação e ter contraído covid, vieram alegar que ele não se vacinara por receio de o enfermeiro ser do PS e lhe enfiar veneno; e, não contentes, desaconselharam os militantes de se vacinarem por idêntico receio (brigada de vacinação do PS, munida de um veneno especial anti-chega). isto sim, é bastante divertido, pelo menos tão divertido  quanto estúpido e caricato, mas vindo de um partido que nos tem tão bem habituados a cenas estúpidas e caricatas, não se me afigura  suficiente para salvar a silly season (embora me tenha provocado um saboroso ataque de riso).
e é isto! quanto às moscas, felizmente e contra o habitual por esta altura, não me têm entrado pelas janelas dentro! convenci-me que uma coisa anda ligada à outra, ficaram atascadas na m**** espalhada ao longo do ano, no que até fizeram bem, porque agora, como comecei por referir, a m**** da silly season quase nem se nota.
temos que fazer como as moscas, (obviamente) com as devidas adaptações: rir ao longo do ano.



(imagem obtida em pesquisa google)




terça-feira, 10 de agosto de 2021

O ÚLTIMO VOO DA MACACA


no último ano da faculdade, vivi numa residência universitária, gerida por freiras à paisana, ou seja, que não usavam hábito. não frequentava a capela e decorava o meu quarto (privativo) com cartazes de minha autoria, habitados por figuras de amantes enlaçados em beijos e de frases do tipo, vale mais acreditar no diabo do que em deus, pois do diabo nada há a esperar e de deus nada há a receber, no que era, sem dúvida, uma manifestação tardia de provocação adolescente, apenas compreensível pela razão de ter desperdiçado a adolescência ensimesmada em tão profundas quanto deprimentes querelas existenciais, que apenas me levaram a conclusões do tipo da condensada naquela asserção, enquanto deixava passar a florescência própria dessa fase da vida, tão irrepetível quanto qualquer outra, mas com uma perda talvez superior ao desperdício de qualquer outra.

nada disto interessa àquilo de que me proponho falar, excepto pelo facto de ter sido nesse contexto que conheci a macaca, outra das residentes no citado local. curiosamente, não me recordo do nome dela, soa-me vagamente helena, mas sem certeza. macaca era a alcunha atribuída por outra nossa companheira de habitação, a j., de que me tornei grande amiga (anos mais tarde vim a ser madrinha de um dos seus filhos). a j. era muito viva, simpática e engraçada; atribuía estas alcunhas por brincadeira e sem intuitos ofensivos. a mim, chamava-me buda, talvez devido aos meus olhos achinesados e lábios carnudos, bem como ao meu forte interesse pelo oriente longínquo.

a macaca era madeirense e frequentava um curso de letras; aspecto frágil, magra e não muito alta, de proporções harmoniosas, do seu sorriso irradiava um brilho dourado, talvez porque o dourado predominava no seu rosto de feições perfeitas, um pouco asiáticas por virtude dos olhos rasgados e dos pómulos salientes: dourado era o cabelo, o tom da pele e os olhos, estes cor de mel. era discreta e simpática.

mesmo sem sermos especialmente próximas, a dada altura, a macaca contou-me do seu mundo interior, um mundo de negrume, tanto mais negro quanto o flagrante contraste com a irradiação luminosa da sua miúda pessoa. em aparente serenidade e sempre sem perder o sorriso, disse-me da sua família, pai, mãe e irmãos (não recordo quantos, mais do que um) e da doença de que, à excepção da mãe e justamente por herança paterna, todos sofriam, doença mental incapacitante e incurável (cujo nome não me lembro se referiu). ouvi-a atentamente, como sempre gostei de ouvir as pessoas, devo ter-lhe endereçado algumas perguntas e frases animadoras, como sempre tive por hábito fazer, mas nada em pormenor me restou na memória, excepto a percepção nítida (e compadecida) de que a vida da macaca estava marcada por um feroz receio, sem dúvida com a marca das maldições: (vir a) sofrer da doença paterna, que já pendia sobre os inocentes irmãos.

aquilo inquietou-me, mexeu-me por dentro ao ponto de permanecer como uma das inúmeras memórias empáticas que acumulo.

o tempo decorreu, acabámos os cursos, deixámos a residência universitária, cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais soube notícias dela.

não muitos anos mais tarde, em conversa com a j., talvez rememorando aqueles tempos, perguntei-lhe se sabia alguma coisa da macaca. respondeu-me: "suicidou-se, atirou-se dum quinto andar da avenida cinco de outubro". gelei de desgosto, talvez não tanto por aquela morte, mas pelo profundo sofrimento que à mesma tinha conduzido como único caminho de libertação.

ao longo da vida, este caso, como tantos outros, veio-me ocasionalmente à memória, nos últimos tempos com uma insistência maior, que me reclamou a necessidade de o relatar. talvez uma homenagem à gentil macaca, cujo sofrimento e, sobretudo, a elegância com que dele me fez testemunha, nunca consegui esquecer. e, sem dúvida, uma homenagem à coragem do seu acto final, o último voo.






 

sábado, 12 de junho de 2021

E SE FOSSE ASSIM?


não se tratou de um pesadelo, os pesadelos vinham embrulhados em cor diferente, que não refiro para não me repetir. desta vez, foi apenas um sonho, não um sonho acordado, do jeito dos que, no dizer do poeta, "comandam a vida", mas um sonho-sonho, daqueles a dormir, que talvez sejam comandados (ou encomendados) pela vida – embora, no caso, falar em vida seja, no mínimo, cínico... 

acabara de se deitar, ainda nem apagara a luz. tudo parecia sereno, quando um peso bruto se lhe abateu sobre o lado esquerdo do peito, albergue do coração e de outras vísceras. os olhos fixaram-se no tecto, reluzente de branco e, como se por efeito ricochete – causador de estranheza, mas aceite com assinalável naturalidade –, viu a boca, a sua própria boca, lábios entreabertos, talvez demasiado pálidos, deixando sair uma onda de corpo ascendente, que lhe lembrou a sombra de um mergulhador a evoluir para a superfície da água. só que, em vez de água havia ar, e em vez de superfície aberta erguia-se a barreira do tecto, onde os seus olhos de brilho perdido se estampavam. nada disso se lhe afigurou estranho ou ameaçador, nem para tal teria tido tempo, pois tudo se desenrolava com a naturalidade da abelha rainha a ser obedecida e com a rapidez do tempo que passa, quando, decorridos dez anos, ou menos, dependendo da idade do observador, se olha para trás.

aquela sombra de corpo movia-se com elegância e graciosidade, por força do simples movimento dos braços que, alinhados na perpendicular, se afastavam e juntavam ao de leve e sem amplitude de maior. com a mesma leveza, o corpo-sombra ultrapassou o tecto tal qual se ele ali não estivesse plantado, nem fosse barreira pouca, de betão, já agora.

as suas pálpebras descaíram, aliviadas do peso que, pouco antes, se lhe abatera sobre o lado esquerdo do peito e, mesmo com elas descaídas, conseguiu divisar o que se passava do lado de lá, para além do tecto, o tecto que funcionou como se não existisse.

era lindo de ver: o corpo-sombra subia e subia, por força do movimento dos braços, envolto numa neblina que rapidamente passou do cinzento ao azul claro e, depois, à ausência de cor, a menos que a luminosidade possuísse cor. atingida a luminosidade o corpo-sombra fundiu-se com ela, tornando-se invisível enquanto objecto autónomo, apenas vulto difuso de uma calma ascensão sem pressa nem objectivo: paz, nem que apenas um vestígio inquantificável de paz, perdido na imensidão da eternidade ou talvez a própria eternidade. este pensamento deixou-o plenamente feliz. continuou estendido na cama, mesmo sem dar por isso.

na manhã seguinte, não se apercebeu de quando a empregada, pensando-o já fora de casa, no trabalho, irrompeu no seu quarto, de aspirador em riste, do estardalhaço que fez e de tudo o que se seguiu.

verdadeiramente, ele já tinha saído. deu consigo a atravessar a porta de casa, a rua e depois a porta do escritório e a do seu gabinete. pelo caminho foi distribuindo cumprimentos, mas ninguém lhe respondeu, mesmo os que se amontoavam, cochichando o incompreensível atraso, "logo o Marques, tão pontual", "que terá acontecido", "se calhar é melhor ligar-lhe" e um etc. de frases sem sentido.

acabado de se instalar, e como ninguém desse mostras de lhe notar a presença, apesar da atenção que todos concentravam nele, ou melhor, na sua (alegada) ausência, espantou os olhos para o tecto, num desabafo, "mas que raio se passa aqui". só então se lembrou do sonho de libertação da noite anterior e do fascínio invejoso que o mesmo lhe causara. calmamente, levantou-se, descontraiu os braços ao longo do corpo e começou a movimentá-los – afastar, encostar –, como os do corpo-sombra do sonho e, para seu espanto e felicidade, com idêntico resultado: uma leveza jamais experimentada, conduziu-o por ali acima, através do tecto do gabinete e de todos os tectos dos vinte andares acima do mesmo e, depois, do telhado do edifício; sem hiato, misturou-se na neblina cinzenta, depois azul e depois luz. e, envolto numa onda de paz, deixou de sentir e de pensar. mergulhou, apenas, no universo.






quinta-feira, 10 de junho de 2021

TENDERNESS


perco-me nos teus braços

a tua pele é a minha pele

o sol extinguiu-se há muito

a lua em seu lugar

chuva mansa afaga os vidros da janela

teus dedos o meu corpo

aconteceu na madrugada de vinte e seis de Agosto de 2020, não interessa se ao vivo ou em mero sonho, por vezes nem se conhece a diferença. guardei (em folha de papel) como guardo tantas palavras – coisas, já não. para criar registo? para mais tarde usar? sei lá!

hoje, dez de Junho de 2021, eram duas horas e quarenta e um minutos da madrugada, dei comigo a pensar: guardar "coisas" com a expectativa de as vir a usar não é criar bolsas de futuro, mas enfardar sacos de passado.

acabo de juntar aquelas e estas palavras, ou seja, usei dois pequenos sacos de passado. talvez tenha criado um pouco de futuro, pelo menos enquanto houver um leitor para isto.

 

perco-me nos teus braços

a tua pele é a minha pele

o sol extinguiu-se há muito

a lua em seu lugar

chuva mansa afaga os vidros da janela

teus dedos o meu corpo








quarta-feira, 12 de maio de 2021

CHAMAVA-SE JOAQUIM


Isto é uma história que vem de trás e me desafiaram a prosseguir. Imaginem, pois, o que sucedeu antes, assim como eu imaginei o que se seguiu e aqui vos deixo:

Os latidos aflitos do senhor X puderam mais do que os gemidos assustados do Joca. Afinal, um homem é um Homem e um cão é um Cão e, como se sabe, os cães acabam sempre por voltar.

Regressei à aflição do homenzinho — para não falar da minha, duas impotências juntas, prontas a deixar-se arrastar pela maldita gravidade. Enchi-me de forças e, sobretudo, de jeito, amparei-o por debaixo dos braços e finalmente lá conseguimos levantar-nos, digo conseguimos, porque, naquela luta enérgica, quase nos tornámos um, digo quase, pois não cheguei a deixar-me desabar sobre as pedras soltas do largo em obras.

Restabelecido um equilíbrio finalmente promissor, experimentei largá-lo, devagarinho, só para ver se se aguentava, se tinha a espinha direita. Não me atrevi a apalpar-lhe os ossos — não fosse ele levar a mal. Sorri-lhe e indaguei, —  Então, está tudo no lugarE, logo de seguida, para não dar tempo a uma resposta negativa, prossegui, — São estas malditas obras, espalhadas por toda a cidade, já se sabe, véspera de eleições! Ele gemeu qualquer coisa na minha direcção, só agora se organizara para me olhar, e levantou uma mão, como quem diz, — aguento-me. Com o gemido subiu um bafo de álcool capaz de acender violenta explosão, caso um fósforo extraviado calhasse voar por ali.
 
Enquanto desviava discretamente a cara, no desespero de afastar o nariz, surpreendi o Joca, especado numa esquina, semi-escondido, de língua de fora e orelhas em riste.

Mais apaziguada, dei pelo vulto do velhote, já a começar a afastar-se, montado em seus passinhos mansos e reforçadamente cuidadosos, apesar do que, estranhamente, denunciavam uma pressa inusitada. Não lhe sabendo o nome, limitei-me a gritar, — Senhor, senhor!, mas nada, nula resposta. Então — não sei de que recanto me veio a ideia —  comecei a largar nomes, até que calhou a vez a Joaquim: — Ei, senhor Joaquim! Estacou, voltou-se depressa, dentro do seu modo devagar, e fixou-me com um ponto de interrogação desenhado na cara flácida e sulcada de rugas.

Assim fiquei a saber que se chamava Joaquim!







domingo, 28 de março de 2021

CÂNTICO DO POSTIGO


abram-se os postigos

deixem sair cafés fumegantes

empadas de galinha e pastéis de nata


dêem-se às máscaras as cores das amêndoas pascais

repliquem-se miríades de flores

essas que explodem pelas bermas do asfalto

inundando a cidade de amarelos, rosas vários, lilás

e o que mais


refresquem-se as almas até ao arrepio

confine-se o álcool-gel às saturadas mãos

aspirem-se os perfumes inebriantes dos jardins

mergulhe-se no verde que reinventa as árvores

sinta-se a areia até receber a abençoada onda na ponta dos pés

desejosos de longe

que, tantas vezes, o longe espreita aqui bem perto

cavalguem-se as asas dos pássaros urbanos

e das gaivotas suspensas sobre o mar


Encurtem-se distanciamentos com zooms e sorrisos

e palavras trocadas em ondas virtuais

que virtual é a vida mesma


afugente-se o papão com risos

afinal, não resistimos nós ao homem do saco, ao patrão soberbo

à infidelidade de certo amigo do peito ou companheiro

à doença que um dia chegou, matreira

à morte de entes queridos?


faça-se tudo isso

não porque ele não exista, esse papão nefasto

mas, justamente, porque existe

e é mais fácil combater o que se sabe estar ali


um dia nos riremos dele

não sucedeu assim com o homem do saco ou o lobo mau?


então, porque não rir agora?

afugentá-lo com o riso, fazer-lhe caretas com as máscaras pintadas,

inundá-lo de álcool-gel até ao afogamento

mantermo-nos unidos na distância


e por isso e com isso


escancarem-se os postigos

devorem-se cafés do lado de fora

troquem-se sorrisos acima do limiar das máscaras


postigue-se, postigue-se, postigue-se

até ser possível abrir de par em par portas e janelas

abraços e beijos


caminhe-se sobre as ondas e as asas dos pássaros

até ao dia em que, gloriosamente, possamos enterrá-lo

afogado em álcool-gel

fugido às arrecuas de caretas mascaradas


faça-se do postigo estrada aberta

espécie de route sixty-six

em vez de beco sem saída


escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos!









domingo, 14 de março de 2021

CÂNTICO DO ENTARDECER


hoje, não venham todos com ar de festa

a porta é estreita, a divisão curta e o horizonte confina-se a um simples postigo liliputiano

que é feito das portas largas, das janelas amplas, abertas de par em par para a vastidão de paisagens ignotas e intermináveis?

não tragam garrafas nem risos nem brindes nem presentes

que o futuro estreita-se, emoldurado num exíguo postigo duma qualquer traseira

rectifico, tragam garrafas e risos, sobretudo risos, apenas os presentes se dispensam – por desnecessários, em sua vã fatuidade

hoje, venham com risos, rir é o que combina com esta imensidão de nada

tragam garrafas cheias de esquecimento, pois recordar não é viver, mas morrer mais um pouco, evitável quando a morte acena aqui tão perto, recortada nas linhas estreitas e obtusas do postigo deste final anunciado

mas venham, venham!

bebamos das garrafas e alimentemo-nos do riso, porque hoje é hoje e já não há amanhãs que cantem (ou que chorem, espera-se!)

e, sobretudo, porque isso não importa nada







quarta-feira, 3 de março de 2021

POR AÍ...


Saio para um passeio a pé e algo mais, as desenxabidas compras de supermercado. Hoje, fico-me pela zona da residência, percorro vários quarteirões, mas noto que a máscara bico de pato, talvez por se ajustar perfeitamente ao contorno das bochechas e pela espessura, amordaça demasiado a respiração, se é que assim se pode dizer, induzindo uma fadiga excessiva. Decorre pouco mais de meia hora e estou de regresso.

A VIDA É BELA

Pelo caminho, deparo-me com um par de avô e avó, passeando o neto, em seu carrinho; um bebé maravilhoso, quase careca, apenas uma penugem loura, feições perfeitas, olhos de um azul intenso como nunca visto, muito abertos para o mundo. Obviamente, detenho-me, não resisto, aceno-lhe e sorrio. Comento, «Que bebé tão lindo!» Não me liga nenhuma, está demasiado ocupado a contemplar o movimento à volta e, convenhamos, de mim só vê os olhos extravasando a máscara. A avó sorri, enternecida, diz que o menino nasceu de mãe Covid – creio mesmo que refere ter-se tratado do primeiro bébé nascido de mãe atingida pelo vírus. Mas ele não, não padeceu da doença, informa a senhora, em resposta à minha pergunta. Despeço-me, desejando felicidades, e continuo, afinal não posso passar a tarde em adoração do menino
Que seria do mundo sem as crianças!

MUNDO CÃO

Avanço para o supermercado. Consigo resistir a comprar chocolates, mas isto é capítulo de outra história. Dirijo-me à caixa para efectuar o pagamento e dos dois jovens funcionários disponíveis calha-me a menina, que desata numa tosse cavernosa, enquanto ajeita a máscara azul. Peço, educadamente – e com um constrangimento íntimo –, para ser atendida pelo colega do lado, visto ela estar, manifestamente, doente. Não é levantado qualquer obstáculo, mas refere que não está com Covid, já fez seis testes, trata-se apenas de uma infecção respiratória. Digo:
– Peço-lhe desculpa, mas acontece que sou de risco e tenho propensão a contrair infecções respiratórias, que, aliás costumam ser contagiosas.
Enquanto vai passando os meus artigos – nem um chocolate… –, o colega dá uma achega:
– Pois eu já tive Covid!
Aí está um caso nítido de excesso de informação, murmuro para dentro de mim. A menina adianta, porém sem agressividade na voz:
– Devíamos era ir todos para lay-off!
A conversa ainda prossegue, aliás sempre em tom educado e ameno, acabando ela por proferir a estafada máxima de que «O cliente tem sempre razão». Contraponho que não, nem sempre, e peço-lhe que procure compreender o meu ponto de vista, adiantando que, dadas as circunstâncias, o patrão não a deveria colocar no atendimento. Acrescenta que vem de passar quinze dias em casa, repetindo ter realizado seis testes (Covid).
Pago e despeço-me, reiterando o pedido de desculpa e desejando-lhe as melhoras.
Por vezes, um pedido de desculpas decorre, não da consciência de uma culpa própria, mas da assunção de uma quota de responsabilidade pelos males do mundo – e são tantos! –, da qual ninguém está em condições de se demitir… 

 LUXOS

Havia, ainda, um sítio a visitar, quase à porta de casa (e não, não é a Arcádia dos chocolates, não pode ser…): a livraria Tantos Livros. Precisava de comprar um livro, apetecia-me um thriller ou policial, para variar dos géneros que tenho andado a ler. 
Que prazer, conseguir entrar numa loja que não seja um supermercado! Mais, uma livraria! Mais, uma livraria que também vende revistas e artigos de papelaria (para além de ser galeria de arte)!
Enquanto me passeio por lá, dou comigo a olhar para um baú de cadernos, logo eu que sou pedrada por cadernos – tenho cadernos escritos (do tempo aec, antes de escrever no computador), cadernos desenhados, cadernos parcialmente escritos e/ou desenhados, já que sou dada a saltar de uns para outros, e cadernos por estrear, muitos e lindos, de vários tamanhos e feitios.
Compro «A NOITE ESTÁ A CHEGAR» do Robert Bryndza, um caderno lindo de morrer e um frasco de tinta da china. 
Para mim, trata-se de luxos, sê-lo-iam em qualquer tempo, mas especialmente nos tempos que correm! Situam-se ao nível, por exemplo, da não sujeição a horários ou a patrões… e a poder comer chocolates sem risco de engordar, mas isto (já) é pura utopia, ao menos no meu caso.
 
(o meu caderno novo)



 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

UMA MENINA ESTÁ PARADA NO TEMPO

uma menina está parada no tempo ou será no meio do tempo?, não se trata da mesma coisa e talvez não, porque o tempo não há-de ter meio (ou, se tiver, fica sempre lá, ou seja, quem está parado é ele), mas, para o caso, não interessa
o facto é que uma velhota se cruza com a menina, vem de longe, agigantando-se à medida que se aproxima, até se tornar do seu exacto tamanho, quando lhe fica mesmo à frente, por um nanossegundo do tempo em que (ou no meio do qual) a menina está parada
a velhota prossegue, sem se deter, e vai diminuindo de tamanho à medida que se afasta da menina, até ficar reduzida ao tamanho de uma formiga e, depois, ao mínimo de uma pulga
a menina limitou-se a mover a cabeça para a acompanhar desde a distância inicial, em que começou a vê-la, até à distância final, a que deixou de a ver
então a sua cabeça voltou-se para a frente e a menina, quer dizer, a sua cabeça – o resto já estava –, ficou parada no espaço ou no meio do espaço, ignoro se é a mesma coisa, em qualquer caso, ficou parada no (ou no meio do, vá-se lá saber) tempo e do espaço e teve de começar a pensar em coisas para se distrair daquela imensa monotonia, diria mesmo, pasmaceira
vai daí a menina pensou no que lhe estava mais à mão, por assim dizer, a velhota que lhe passara à frente, ou melhor, a menina pensa na velhota que lhe passa à frente – porque, é bem sabido e convém não esquecer, a menina está parada – e vê-se a si mesma, mas como posso ver-me a mim mesma na outra, que já vai longe, à minha frente ou atrás de mim, no tempo e no espaço em que (ou no meio do qual) estou parada, pegunta-se
ao mesmo tempo, sente uma tontura, de tal forma que o seu corpo perde o equilíbrio, inclina-se para a frente, cai, bate com a cabeça numa pedra da paisagem e sente uma dor aguda
sem ousar levantar-se, porque ainda está tonta e receia não se equilibrar, ganha a consciência súbita de que já não está parada no (ou no meio do) tempo e do espaço – não que, anteriormente, possuísse a consciência inversa – e interroga-se, perplexa, afinal, é o tempo que passa por mim ou eu pelo tempo e, é o espaço que existe à minha volta ou sou eu que projecto o espaço para fora de mim
agora, mais do que tonta, sente-se baralhada, mas quer-lhe parecer que já restabeleceu o equilíbrio das pernas e, com determinação, levanta-se e fecha os olhos, à espera que se faça luz, enquanto, ao longe, uma pulga dá lugar a uma formiga e depois a uma, ainda não se percebe bem…
e a menina lá fica, parada no tempo e no espaço... ou talvez não






domingo, 3 de janeiro de 2021

OS ESPELHOS NÃO MENTEM

 
Aí pelos trinta e tal anos, dei em comprar a revista espanhola ¡HOLA!, que, como é sabido, plasma o mundo de fantasia dos famosos, realeza incluída. 
Viria a aditar a POINT DE VUE – mais dedicada à aristocracia europeia e com a vantagem de incluir algumas referências de ordem cultural –, a PARIS MATCH – sobretudo de actualidade, política e não só – e, também, uma ou outra revista de moda (ou feminina), como a MARIE CLAIRE, a ELLE ou a MADAME FIGARO, todas elas francesas. Mais tarde, aditaria a TELVA, espanhola, como a primeira mencionada, e que, versando, principalmente, a moda, inclui um leque de rubricas interessantes, v.g., em matéria de actualidade literária, artística e cinematográfica ou decoração e viagens.

Leitora apaixonada de bons livros e pensadora impenitente sobre o lado sério da vida, não deixava, eu própria, de considerar estranha aquela cedência à espuma parva dos dias, à frivolidade patega de mergulhar no brilho das imagens de papier couché e, pasme-se, nas linhas escritas que as ilustravam.
Verdade seja dita e ressalvado o paradoxo, tal estranheza sempre conviveu com a plena compreensão do fenómeno: tratava-se duma concessão (envergonhada) à superficialidade, num tempo em que vivia assoberbada por intensa e pesada actividade profissional. Eu sei, isto pode soar a desculpa para um desperdício de tempo estúpido, mas a questão é saber: não constituirá a futilidade, no extremo, a resposta que a complexidade da vida requer ou merece?

Seja como for, eu estava – como continuo a estar – a par das tendências de moda e decoração, que, como é sabido, mudam de estação para estação, mas não param de se repetir –, da identidade das modelos da actualidade e, o mais parvo, da vida revelada – a verdadeira só eles sabem e está bem assim – da Isabel Prysler e de outras figuras menores da sociedade, maxime, espanhola e francesa (mesmo que só por acompanhamento das imagens e respectivas legendas).
Deixando de parte o (residual) benefício informativo colhido deste manancial de publicações, ou de apenas algumas delas, a verdade é que, em geral, os respectivos conteúdos se resumem a nada, um nada de falsas glórias ou de reais desgraças repetido à exaustão.
 
Chego, assim, ao ponto que me conduziu ao seguinte tema: o da felicidade como objectivo de vida.
A dada altura, comecei a observar que, no repetido guião das entrevistas publicadas na generalidade desses meios, uma das perguntas sagradas é: – O que mais deseja na vida ou qual o seu verdadeiro objectivo na vida?
Acontece que o guião das respostas, parecendo mimetizar o das perguntas, lhes assume o carácter de repetição, quer dizer, quase sempre a resposta à questão do objectivo de vida coincide: – O que mais desejo na vida (ou o meu objectivo de vida) é ser feliz!
Confesso que este tipo de resposta ou esta resposta-tipo – reproduzida ao infinito por tanta gente gira e célebre... – sempre me deixou intrigada e perplexa.
É que, certamente por inépcia minha, nunca atinei a entender o que é isso de ter por objectivo de vida ser feliz! Ser feliz, ser feliz na vida, durante a vida? Tipo, agora estou aqui a pensar que quero ser feliz, a seguir vem a vida e, bingo!, consigo alcançar a felicidade, sento-me na felicidade para não a deixar escapar e assim sou, assim fico, até que a morte me ceife, feliz, sempre feliz, forever.
Confesso que tenho tido uma vida um bocado (bastante), como dizer?, acidentada, de luta, feita de batalhas sucessivas, algumas tão violentas que mal deixam fôlego para saborear as ocasionais vitórias e recuperar forças para a próxima refrega. Por outro lado, desde cedo me convenci que não sou caso único, todos temos (tivemos ou teremos) a nossa dose de desgraça. De resto, ainda que não pela nossa quota, sempre permanecerá difícil o alheamento das desgraças alheias, basta pensar nos sem-abrigo que connosco convivem no dia a dia das avenidas nacionais.

Tenho o privilégio de aprender a cada momento, sempre mais, de conservar a mente desperta, atenta e, sobretudo, curiosa. No percurso, uma das coisas que aprendi foi a identificar os momentos de felicidade e, a partir daí, a saber estar-lhes atenta, agarrá-los e desfrutar deles, conservando-os pelo tempo por que é possível conservá-los. Bem sabendo que se trata de momentos, não de um estado definitivo, que, de resto, a existir, perderia por completo o sentido. Até porque tais momentos não passam de pontos de chegada e/ou de partida, ao invés de constituirem bancos estofados de damasco cor de rosa onde possamos sentar-nos para sempre.

Penso sobre isso, agora, creio que por efeito da passagem do tempo, esse traidor, que nos apanha sem nos apercebermos. É certo que os sinais não faltam, os espelhos não mentem (de resto, são os únicos a não mentir). Todavia, não são esses sinais que nos convencem. Trata-se de outros fenómenos. Por exemplo, certo dia, dás por ti a fazer anos, um número redondo, um daqueles que já não permite voltar atrás, sim, é isso, a certeza de que agora é sempre em frente, numa vertigem de rapidez, até ao fecho do ciclo, porque agora é isso que nos espera, o fecho do ciclo. E isto não te assusta, não é isto que te assusta, agora até já atingiste aquele ponto de serenidade que te permite identificar e desfrutar dos momentos de felicidade; é outra a interrogação que se te coloca, a ti, que apesar do número redondo e do fim à vista, continuas com a cabeça cheia de ideias e, como sempre foste (e continuas a ser) uma mente dispersa e multidireccionada, atrapalhas-te na ideia de falta de tempo, não porque te faça confusão que o tempo acabe, mas porque te faz confusão não poderes concretizar tudo o que te ferve na cabeça. E há, ainda, uma pequena nuance, mais perturbadora, a de saber se ainda valerá a pena cumprir certos projectos (se para tão pouco tempo...).

E creio que fica explicado (não que fosse necessário!) o motivo por que, a dado passo do meu percurso, perdi tempo (e, esporadicamente, continuo a perder) com a !HOLA! e outras publicações que tal...