terça-feira, 16 de julho de 2024

MORRO DA PENA VENTOSA

I

O título supra pertence ao segundo romance de Rui Couceiro, publicado no mês passado e que li com gosto, aliás em ritmo alucinante, visto tratar-se de um daqueles livros em que os acontecimentos se sucedem em catadupa e de surpresa em surpresa, de tal modo que as páginas são devoradas numa pressa desmedida e gulosa de desvendar o que (mais) nos espera.

Não estou desacompanhada nesta asserção, pois o Miguel Esteves Cardoso, quando da apresentação (do romance), em Lisboa, referiu tê-lo lido de uma assentada (creio ter sido esta a expressão empregue), com única interrupção para jantar.

De que trata este "Morro"? Tentando uma síntese, pode dizer-se que aborda a vida (vidas) e a morte (mortes), nem sempre de pessoas, sempre nas suas diversas expressões e em dupla perspectiva, psicológica e sociológica, sempre centrado na condição humana... e planetária.

II

De início, a narradora/protagonista, Beta, jovem mulher em processo de luto pela morte da avó por quem foi criada e com quem vivia, resolve contar-lhe, como antes fazia e lhe prometeu continuar a fazer, os acontecidos do dia-a-dia. Não o empreende de qualquer maneira; eventualmente numa tentativa de aproximação/identificação ou, quem sabe?, de atingir um ponto de fuga ou aconchego (que talvez só venha a encontrar-se), escolhe um inusitado artefacto que transforma na peça de mobiliário a partir da qual, dia após dia, regressada a casa, dá largas ao relato (não revelo qual artefacto nem recorro ao lugar comum de dizer que não lembraria ao diabo, mas permito-me conjecturar que apenas poderia ocorrer a este particular escritor); por outro lado, carente de apoio, toma por confidente a sua (única?) amiga de infância, recuperada do esquecimento e cuja identidade mantém em suspenso até nos ser impossível esperar mais para a conhecer – no meu caso, assumo, orgulhosamente, ter adivinhado antes da revelação, embora, devo confessar, após diversas tentativas falhadas, e talvez pelo simples facto de, na adolescência, ter tido vários amigos parecidos, não iguais, mas com préstimo idêntico.

Desse modo, vamos ficando a par da vida de Beta, e, com ela, das vidas de uma galeria de (interessantes, ora dramáticas ora divertidas) personagens, que, por via do que são relações de vizinhança e, afinal, relações humanas, ela vai agregando. Tomamos, assim, conhecimento da malha em que se tecem os dias de Beta, que as noites, essas, causam-lhe pavor, retendo-a em casa, só se permitindo espreitar através da janela, modo pelo qual se dá conta da presença de um novo vizinho, recuperado de outras vidas – como, se estiverem atentos à leitura e tiverem lido o anterior romance do mesmo autor, não deixarão de descobrir. E é este o elemento que introduz, embora a medo ou melhor, ao de leve, uma outra dimensão do amor e suas cambiantes (v.g., insegurança, fuga, ousadia e esperança).

Acontece que Beta é guia turística, apaixonada pela sua cidade, o Porto, e, em particular, pela zona em que habita – e dá título ao romance – e pelo Douro, a deslizar lá em baixo, motivo por que, através de interpostos destinatários, os seus clientes, nos vai descrevendo a cidade e, por testemunho directo, certos fenómenos que nela ocorrem, como é o caso da gentrificação e, mais adiante, de acontecimentos espantosos, que, na decorrência das transformações climáticas em curso, hão de vir a afectar, de modo absolutamente indesejável, a cidade, no cerne do seu ilustre representante, o rio Douro.

Junta-se, por esta via, a dimensão sociológica, com apontamentos de distopia, à dimensão psicológica que marca mais acentuadamente a primeira parte do romance; a cidade passa a ganhar protagonismo e, curiosamente, é neste contexto que o destino de Beta sofre uma reviravolta da qual nem todos estaríamos à espera (eu não estava).

III

No tocante ao objecto da narrativa, fico-me por aqui, visto não pretender revelar em excesso, tanto mais tratar-se de uma publicação tão recente, que muitos ainda não terão tido oportunidade de ler, não sendo justo estragar-lhes o prazer da leitura.

Não posso, todavia, terminar este post sem chamar BAIÔA SEM DATA PARA MORRER, primeiro romance do mesmo escritor – publicado em 2022, mas que só tive o prazer de ler este ano e ao qual dediquei, neste espaço, o post de 15 do passado mês de Abril. Porquê? Pela simples razão de, enquanto lia "Morro", não conseguir deixar de o comparar a "Baiôa", mais concretamente, de reflectir nas semelhanças e diferenças entre ambos e – em perspectiva especulativa, entenda-se – no respectivo processo criativo (gostando imenso de ler e de escrever e transpondo muito da leitura para a escrita e vice-versa, um dos aspectos que sempre me suscita particular curiosidade é, justamente, esse).

A tal propósito, permito-me adiantar alguns tópicos.

O "Morro" exibe a excelente qualidade literária (já) evidenciada em "Baiôa" e partilha com ele diversos aspectos, sobretudo no tocante a certas temáticas, de que realço a da morte, a das (do valor das) relações interpessoais, enquanto elemento estruturante da vida, e (apesar destas) a da solidão.

Não uma solidão egoísta, maldisposta ou desistente, antes generosa, gentil e combativa, como o demonstra, desde logo e em especial,  a personalidade dos narradores (simultaneamente, protagonistas) de ambos os romances, num caso ("Baiôa), "um jovem professor em fuga, dependente do telemóvel e às turras com a vida e com a morte" – citação cuja fonte não revelo, lançando, em vez disso, um desafio à atenção dos leitores do "Morro" para que a identifiquem –, no outro caso ("Morro"), uma jovem também às turras com a vida e com a morte, pode dizer-se, e igualmente num processo de fuga.

Está isto longe de significar que esses narradores se sobreponham, confundam ou, muito menos, se imitem.

Ou seja, se existe, ou melhor, me parece existir, coincidência em certas temáticas e em determinadas características dos protagonistas (desses dois protagonistas), já o mesmo se não pode afirmar das suas vidas, por exemplo, das razões das suas fugas (aliás, em boa parte desconhecidas, no primeiro caso, contrariamente ao segundo) e da materialização destas (tão diversas quer na sua expressão, quer no final em que desaguam – este, aliás e curiosamente, não revelado no primeiro caso, explícito no segundo). 

Quer isto dizer que, pese embora as assinaladas coincidências, estamos perante enredos totalmente distintos, significando, assim, que a criatividade/originalidade do autor continua totalmente à solta e em alta, à semelhança do (já) demonstrado em "Baiôa".

Aventuro-me a ilustrar a diferença entre os dois romances nos seguintes moldes: "Baiôa" desenha-se como uma planície, já "Morro" se esculpe como paisagem acidentada, entre as alturas do morro e o leito do rio, lá em baixo. Curiosamente, esta imagem vai ao encontro da localização dos romances, o primeiro no Alentejo, o segundo na cidade do Porto, entre a Sé e o Douro. Todavia, a constatação de tal alteridade não se alicerça neste aspecto – aliás, ocorreu-me antes da tomada de consciência do mesmo –, antes tem a ver com os fios narrativos de um e outro dos livros e aquilo que estes sugerem no tocante ao respectivo processo criativo, pois, em "Baiôa", assiste-se a uma articulação pré-definida, de princípio/meio/fim, como se o autor tivesse todos estes aspectos pensados/estruturados à partida, enquanto em "Morro", ao menos a partir de certa altura, parece haver um improviso permanente sobre o próximo passo a dar, como se o destino da personagem principal – refiro-me à narradora – houvesse permanecido em aberto até (quase) ao final, acabando por ser influenciado pelo destino da outra personagem – a própria cidade –, que, aparecendo praticamente desde o início, vai tomando grandeza até determinar tal influência, num cruzamento de sucessivos acontecimentos, tão inesperados quanto insólitos e desafiadores, os quais, tal qual antes assinalei, impõem ao leitor uma corrida de página em página, até à revelação final (e é mesmo dizer, página final).

IV

Em suma, como já deve ter dado para perceber, considero "Morro" um excelente romance, pelo que – valha isso o que valer – recomendo vivamente a sua leitura. Mas, para os que (ainda) o não fizeram, permito-me recomendar, pela mesma razão, a leitura de "Baiôa", esse primeiro romance que tanto me cativou, desencadeando uma premente necessidade de continuar a ler Rui Couceiro.

 

Bertrand.pt - Morro da Pena Ventosa (autografado)