abri os olhos por virtude da luz forte que rasgava a fenda aberta entre as portadas da janela, desencontradas num encerramento imperfeito. o piscar das pálpebras trouxe-me de volta ao quarto da véspera e, reflexamente, fixei a porta, lembrando, num sobressalto, a chave que a sibila rodara na noite anterior. de um salto, saí da cama e, meia aos tropeções, dirigi-me ao puxador, rodando-o com quanta força tinha e que foi tanta ou tão pouca que o dito me ficou nas mãos, enquanto a porta permaneceu imutável, perfeitamente indiferente ao meu aflito esforço de evasão.
chamei furiosamente, com quanta gana me proporcionaram os pulmões: SIBILA, SIBILA, SIBILA!, mas não sucedeu nada, nem um som do lado de lá da indiferença da porta.
exausta e meia desvairada — estado em que, aliás, me encontrava desde a funesta queda das escadas e o que se lhe seguiu—, abri as portadas da janela de para em par e espreitei através da vidraça, fazendo pala sobre os olhos com as mãos, pois o sol incidia com intensidade desusada àquela hora que eu presumia ser da manhã, embora não tivesse noção exacta de quanto tempo permanecera a dormir, quem sabe se sob sedação. o coração comprimiu-se-me num aperto, mal os olhos o informaram de que o exterior da janela estava quadriculado por forte grade de ferro. vi o quintal da véspera aos quadradinhos, as macieiras carregadas das suas maçãs, o muro e, de braços cruzados a olhar para mim, com um sorriso matreiro, a sibila. tentei comunicar, mas o vidro da janela era demasiado grosso, parecendo impedir a passagem do som ou assim suspeitei. um pensamento precipitado, pois, de imediato, ouvi-a dizer, "o que fazes aí, rapariga? anda mas é ter comigo e aproveitar este tempo maravilhoso que não é eterno". abri a janela, sentindo-me estúpida por o não ter feito mais cedo, e respondi, "não consigo, a porta não abre, está trancada e o puxador ficou-me nas mãos". "ora essa! espera aí, que já vou resolver isso", reagiu a velhota. segundos volvidos, todavia suportados como eternidades, senti a porta abrir-se, sem que a chave tivesse sido rodada. não consegui abster-me de exclamar, "mas a porta estava fechada à chave". "fechada à chave?, como assim, cá em casa só existe a chave da porta da rua, sou apenas eu e tu és a primeira hóspede que recebo desde que aqui vivo, onde foste buscar essa ideia?", retorquiu ela. gaguejei qualquer coisa, sem capacidade de resposta coerente e ela fixou-me de modo estranho, perdendo, por instantes, aquela bonomia de velhota excêntrica. estremeci num arrepio e, mal recuperei daquela gaguez inesperada, perguntei-lhe, "mas as grades", "quais grades?, interrompeu ela e eu, dirigindo-me para a janela, disposta a dizer, "estas", espequei de espanto e desconcerto, ao perceber que não havia tais grades, havia sim um gradeamento de madeira, muito próximo da janela, para o qual apontei, sem palavras. ela disse, "isso é uma instalação para trepadeiras, ficou aí encostada à espera de melhores dias, quer dizer, da visita do meu amigo corbin, que prometeu vir ajudar-me a fazer isso. bem, agora veste-te e anda daí tomar o pequeno almoço, se assim se pode chamar, pois, não tarda nada são horas do lanche".
obedeci, sempre a olhar para a porta, agora aberta, e em menos de nada apresentei-me na cozinha, onde uma mesa munida de torradas e café fumegante me aguardava. já mais serena, mas ainda perturbada, percebi que estava cheia de fome e, sem réstia de cerimónia, atirei-me às torradas como se não comesse há vários dias ou meses ou anos, sei lá! ela olhava-me regalada, como se feliz por testemunhar aquele prazer que me proporcionava e eu, com um sorriso tímido, pedi-lhe desculpa e agradeci, justificando, "parece que já não comia aí há um ano!" "foi exactamente há um ano e meio", disse ela, como quem fala para si própria e exibindo a falta de dentes num sorriso maroto. ora, eu tinha acabado de introduzir na boca um grande pedaço de torrada e o espanto e o medo causados por aquela sua declaração induziram-me um engasgamento ruidoso e aflitivo, que ela se apressou a interromper, batendo-me nas costas e impelindo-me a cuspir o pão atravessado na garganta. com os olhos em lágrimas, não de choro, mas do sufoco pelo que acabara de passar, não consegui verbalizar a pergunta que se me impunha, mas os meus olhos devem tê-la transmitido, pois ela, sem perder aquele sorriso, agora mais perverso do que maroto, cacarejou, "ai rapariga, és mesmo assustadiça, então não vês que estou a brincar, não sabes que ninguém pode sobreviver sem se alimentar durante um ano e meio?"
as palavras de sibila não me tranquilizaram, antes senti uma estranha inquietação, causadora de um sentimento de urgência em deixar aquela casa. porém, tinha-me comprometido a ficar uns dias para a ajudar nas arrumações. o melhor é despachar isto o mais rapidamente possível, decidi. fingindo serenidade e esboçando um sorriso – embora, receei, nada convicto –, perguntei à Sibila por onde queria que começasse o trabalho. "qual trabalho", perguntou, ao que respondi lembrando o compromisso que assumira em troca do acolhimento dispensado. "não me recordo de nada disso, aliás, a minha casa encontra-se na devida ordem, como sempre", respondeu ela, para grande desconcerto meu, enquanto, levantando-se e convidando-me a acompanhá-la, me fez correr todas as divisões da casa. assim pude constatar a perfeita ordem e limpeza que imperavam, em contraste com o que presenciara na véspera (ou será que não tinha sido na véspera?, inquietei-me). desarmada e quase sem palavras, murmurei mais um agradecimento pela sua bondade e anunciei a intenção de me ir embora, encaminhando-me para a saída, mas ela anunciou firmemente que não podia sair, o sol acabara de se pôr e o melhor seria ficar mais uma noite, fazendo acompanhar as palavras do gesto decidido de rodar a chave na porta da rua e guardá-la no bolso.
mais uma vez, decidi desprezar o medo e engendrar uma maneira de fugir daquele cárcere. o primeiro passo seria não dormir, estar atenta aos acontecimentos, descortinar possíveis pontos de fuga... conseguiria?