sábado, 4 de agosto de 2018

NENHUM AMIGO À SUA ESPERA!


A senhora não deveria ter menos de 75 anos, calculo eu (mas não sou muito atinada em tal tipo de cálculos). A dada altura, alguém lhe perguntou a idade. Iludiu a resposta delicadamente, num (óbvio) fingimento de surdez ou distracção. Lembrei-me da minha avó materna, que sempre se recusou a mencionar em quantos anos ia e que nós, os seis netos, nunca chamámos de avó.

Era uma pessoa elegante, quer na maneira de vestir, quer nos gestos, calmos, suaves e delicados. Via-se que devia ter sido muito bonita, aliás, ainda o era - se é que a velhice, nos seus sinais arrasadores, é compatível com a ideia de beleza...

Em conversa - calhámos, ocasionalmente, no mesmo banco do autocarro ou na mesma mesa de refeições -, mostrou-se bastante comunicativa. Contou-me, por exemplo, ter sido professora de História, fazer parte de várias associações relacionadas e ser monárquica, referindo, a propósito, encontros sociais com o pretendente ao trono, D. Duarte Pio de Bragança, e sua família.

Daí passou ao relato, com gosto manifesto, de uma ocorrência da infância: fora passar o fim de semana a casa de uma amiga e a mãe advertiu-a, com particular insistência, para se portar bem, pois estaria presente um convidado muito importante, sem, todavia, lhe revelar a respectiva identidade. Já na companhia da amiga, estranhou que o dono da casa tratasse o tal convidado por sua alteza. Intrigada (por desconhecer o significado da expressão), dirigiu-se a este e disse, - Alteza não é nome de gente! Ele achou divertido e teceu qualquer comentário sobre a graça das crianças. Tratava-se, afinal, do pai do actual pretendente ao trono, que vivia no exílio e estava proibido de vir a Portugal. Daí a mãe não a ter informada sobre a sua identidade!

Ao longo da viagem, ouvi-a repetir esta história - e não só - a outros viajantes, sempre com a mesma convicção, empenho, deleite e, talvez, uma pontinha de (ingénua) vaidade. Apenas essa sistemática repetição denunciava a sua condição de velhice (apesar de, segundo me parece, a repetição não constituir marca exclusiva dos velhos). De resto, mantinha uma notável memória das coisas da sua profissão, como tive oportunidade de comprovar, enquanto ouvinte duma interessante conversa que manteve com um outro viajante, deveras interessado em História, embora médico de profissão.

A dada altura, referiu os muitos (e bons) amigos que tinha e a riqueza da sua agenda social, com um calendário recheado de almoços e outras reuniões.

Mesmo assim - ou talvez por tudo isso... - pareceu-me uma pessoa só no mundo (embora, num certo sentido, todos estejamos sós no mundo). 

Como familiares mais próximos, mencionou, vagamente, ter um primo muito idoso, padre em exercício numa paróquia do norte, e uma prima, já falecida. Só mais tarde e ainda em tom vago, confessou ter uma irmã mais velha, da qual, por razões não indicadas, estava totalmente afastada.

No último dia da viagem, veio sentar-se à mesa em que eu tomava o pequeno almoço. Aí, vencida pela curiosidade, perguntei-lhe se tinha sido casada. Respondeu-me que sim e que, por sua vontade, se divorciara havia cerca de vinte anos, por estar farta. Abstive-me de perguntar porquê. Com uma espécie de orgulho ou regozijo, como quem se gaba duma ousadia desusada, acrescentou,- Logo a seguir ao divórcio ter sido decretado, estando eu com o meu advogado e o meu marido com a sua advogada, ele dirigiu-se a mim e disse, Maria do Céu, você foi a mulher da minha vida, e eu respondi-lhe, Pois você não foi o homem da minha vida

Não resisti a indagar, - E filhos, tem? Aí, toda ela se transformou, a compostura habitual abalada por uma espécie de arrepio ou tremura, um assomar de lágrimas secas aos olhos cansados e o esboço dum soluço mudo. - Tive um filho, morreu há treze anos, aos 42, com leucemia - respondeu. - E netos, tem? - insisti, indiscreta, incapacitada de domar a curiosidade por aquela vida. Um mal estar doutra natureza, vestido de muita distância construída, embrulhou a resposta, - Tenho, mas não os vejo, a mãe afastou-os de mim. Brutal, pensei, como se aquela solidão desolada se tivesse despenhado sobre os meus ombros.

Enquanto ela prosseguiu, talvez nas suas histórias repetidas, eu reflectia para comigo que mais valia ter estado calada (aliás, já sabia, há muito tempo, que há perguntas a evitar, não só por boa educação, mas sobretudo pelo inesperado das respostas. Sabia-o desde a infância, de quando perguntara a uma colega qual a profissão do pai e obtivera como resposta, - O meu pai já morreu!).

Fomos até à varanda do hotel ver a paisagem de Bodo. 

No regresso, à saída do aeroporto, a senhora dirigiu-se, com os seus modos calmos, para a longuíssima e turbulenta fila de táxis. Nenhum amigo estava à sua espera.

Por essa altura, tornou-se-me claro que não podia deixar de escrever sobre ela. Assim, quando alguém ler esta história, a senhora será recordada, embora por um qualquer desconhecido e não por um ente querido.

(Paisagem de Bodo)






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