ORA BLOGO, ORA NÃO
terça-feira, 15 de outubro de 2024
O HOMEM QUE SE DESINTEGROU DIANTE DE MIM
segunda-feira, 19 de agosto de 2024
MARIA NINGUÉM (4): TRAÍDA POR UM SONHO
sexta-feira, 2 de agosto de 2024
PORTO, O (MEU) LADO DE LÁ
terça-feira, 16 de julho de 2024
MORRO DA PENA VENTOSA
O título supra pertence ao segundo romance de Rui Couceiro, publicado no mês passado e que li com gosto, aliás em ritmo alucinante, visto tratar-se de um daqueles livros em que os acontecimentos se sucedem em catadupa e de surpresa em surpresa, de tal modo que as páginas são devoradas numa pressa desmedida e gulosa de desvendar o que (mais) nos espera.
Não estou desacompanhada nesta asserção, pois o Miguel Esteves Cardoso, quando da apresentação (do romance), em Lisboa, referiu tê-lo lido de uma assentada (creio ter sido esta a expressão empregue), com única interrupção para jantar.
De que trata este "Morro"? Tentando uma síntese, pode dizer-se que aborda a vida (vidas) e a morte (mortes), nem sempre de pessoas, sempre nas suas diversas expressões e em dupla perspectiva, psicológica e sociológica, sempre centrado na condição humana... e planetária.
De início, a narradora/protagonista, Beta, jovem mulher em processo de luto pela morte da avó por quem foi criada e com quem vivia, resolve contar-lhe, como antes fazia e lhe prometeu continuar a fazer, os acontecidos do dia-a-dia. Não o empreende de qualquer maneira; eventualmente numa tentativa de aproximação/identificação ou, quem sabe?, de atingir um ponto de fuga ou aconchego (que talvez só aí venha a encontrar-se), escolhe um inusitado artefacto que transforma na peça de mobiliário a partir da qual, dia após dia, regressada a casa, dá largas ao relato (não revelo qual artefacto nem recorro ao lugar comum de dizer que não lembraria ao diabo, mas permito-me conjecturar que apenas poderia ocorrer a este particular escritor); por outro lado, carente de apoio, toma por confidente a sua (única?) amiga de infância, recuperada do esquecimento e cuja identidade mantém em suspenso até nos ser impossível esperar mais para a conhecer – no meu caso, assumo, orgulhosamente, ter adivinhado antes da revelação, embora, devo confessar, após diversas tentativas falhadas, e talvez pelo simples facto de, na adolescência, ter tido vários amigos parecidos, não iguais, mas com préstimo idêntico.
Desse modo, vamos ficando a par da vida de Beta, e, com ela, das vidas de uma galeria de (interessantes, ora dramáticas ora divertidas) personagens, que, por via do que são relações de vizinhança e, afinal, relações humanas, ela vai agregando. Tomamos, assim, conhecimento da malha em que se tecem os dias de Beta, que as noites, essas, causam-lhe pavor, retendo-a em casa, só se permitindo espreitar através da janela, modo pelo qual se dá conta da presença de um novo vizinho, recuperado de outras vidas – como, se estiverem atentos à leitura e tiverem lido o anterior romance do mesmo autor, não deixarão de descobrir. E é este o elemento que introduz, embora a medo ou melhor, ao de leve, uma outra dimensão do amor e suas cambiantes (v.g., insegurança, fuga, ousadia e esperança).
Acontece que Beta é guia turística, apaixonada pela sua cidade, o Porto, e, em particular, pela zona em que habita – e dá título ao romance – e pelo Douro, a deslizar lá em baixo, motivo por que, através de interpostos destinatários, os seus clientes, nos vai descrevendo a cidade e, por testemunho directo, certos fenómenos que nela ocorrem, como é o caso da gentrificação e, mais adiante, de acontecimentos espantosos, que, na decorrência das transformações climáticas em curso, hão de vir a afectar, de modo absolutamente indesejável, a cidade, no cerne do seu ilustre representante, o rio Douro.
Junta-se, por esta via, a dimensão sociológica, com apontamentos de distopia, à dimensão psicológica que marca mais acentuadamente a primeira parte do romance; a cidade passa a ganhar protagonismo e, curiosamente, é neste contexto que o destino de Beta sofre uma reviravolta da qual nem todos estaríamos à espera (eu não estava).
No tocante ao objecto da narrativa, fico-me por aqui, visto não pretender revelar em excesso, tanto mais tratar-se de uma publicação tão recente, que muitos ainda não terão tido oportunidade de ler, não sendo justo estragar-lhes o prazer da leitura.
A tal propósito, permito-me adiantar alguns tópicos.
O "Morro" exibe a excelente qualidade literária (já) evidenciada em "Baiôa" e partilha com ele diversos aspectos, sobretudo no tocante a certas temáticas, de que realço a da morte, a das (do valor das) relações interpessoais, enquanto elemento estruturante da vida, e (apesar destas) a da solidão.
Não uma solidão egoísta, maldisposta ou desistente, antes generosa, gentil e combativa, como o demonstra, desde logo e em especial, a personalidade dos narradores (simultaneamente, protagonistas) de ambos os romances, num caso ("Baiôa), "um jovem professor em fuga, dependente do telemóvel e às turras com a vida e com a morte" – citação cuja fonte não revelo, lançando, em vez disso, um desafio à atenção dos leitores do "Morro" para que a identifiquem –, no outro caso ("Morro"), uma jovem também às turras com a vida e com a morte, pode dizer-se, e igualmente num processo de fuga.
Está isto longe de significar que esses narradores se sobreponham, confundam ou, muito menos, se imitem.
Ou seja, se existe, ou melhor, me parece existir, coincidência em certas temáticas e em determinadas características dos protagonistas (desses dois protagonistas), já o mesmo se não pode afirmar das suas vidas, por exemplo, das razões das suas fugas (aliás, em boa parte desconhecidas, no primeiro caso, contrariamente ao segundo) e da materialização destas (tão diversas quer na sua expressão, quer no final em que desaguam – este, aliás e curiosamente, não revelado no primeiro caso, explícito no segundo).
Quer isto dizer que, pese embora as assinaladas coincidências, estamos perante enredos totalmente distintos, significando, assim, que a criatividade/originalidade do autor continua totalmente à solta e em alta, à semelhança do (já) demonstrado em "Baiôa".
Aventuro-me a ilustrar a diferença entre os dois romances nos seguintes moldes: "Baiôa" desenha-se como uma planície, já "Morro" se esculpe como paisagem acidentada, entre as alturas do morro e o leito do rio, lá em baixo. Curiosamente, esta imagem vai ao encontro da localização dos romances, o primeiro no Alentejo, o segundo na cidade do Porto, entre a Sé e o Douro. Todavia, a constatação de tal alteridade não se alicerça neste aspecto – aliás, ocorreu-me antes da tomada de consciência do mesmo –, antes tem a ver com os fios narrativos de um e outro dos livros e aquilo que estes sugerem no tocante ao respectivo processo criativo, pois, em "Baiôa", assiste-se a uma articulação pré-definida, de princípio/meio/fim, como se o autor tivesse todos estes aspectos pensados/estruturados à partida, enquanto em "Morro", ao menos a partir de certa altura, parece haver um improviso permanente sobre o próximo passo a dar, como se o destino da personagem principal – refiro-me à narradora – houvesse permanecido em aberto até (quase) ao final, acabando por ser influenciado pelo destino da outra personagem – a própria cidade –, que, aparecendo praticamente desde o início, vai tomando grandeza até determinar tal influência, num cruzamento de sucessivos acontecimentos, tão inesperados quanto insólitos e desafiadores, os quais, tal qual antes assinalei, impõem ao leitor uma corrida de página em página, até à revelação final (e é mesmo dizer, página final).
Em suma, como já deve ter dado para perceber, considero "Morro" um excelente romance, pelo que – valha isso o que valer – recomendo vivamente a sua leitura. Mas, para os que (ainda) o não fizeram, permito-me recomendar, pela mesma razão, a leitura de "Baiôa", esse primeiro romance que tanto me cativou, desencadeando uma premente necessidade de continuar a ler Rui Couceiro.
sexta-feira, 14 de junho de 2024
MARIA NINGUÉM (3): SURPREENDIDA POR UM ACHADO
a bem dizer, nem me lembro de como fui parar àquela cama, onde acordei bastante atordoada e com o corpo, aqui e ali, enfaixado em tiras brancas, presas com adesivos. por mais que puxasse pela cabeça, apenas me vinha à ideia um som, ti-nó-ni, ti-nó-ni, e a recordação longínqua de um alucinante desbobinar de degraus, como se tivessem vida própria. de resto, a minha vida apenas se manifestava pelas dores que, à medida que ficava mais desperta, me fustigavam sem sombra de consideração e destituídas de justificação de causa e, muito menos, de afinco. também não possuía noção exacta do sítio onde jazia esticada que nem um carapau congelado. a custo, rodei a cabeça e atinei a descobrir que se tratava de uma sequência de camas ocupadas por mulheres, de cujas bocas, volta e meia, se desprendiam suspiros, queixumes ou mesmo gritos. preparava-me para interrogar a da cama mais próxima, quando irrompeu pelo espaço um gajo de bata branca e auscultador pendurado ao pescoço, a modos de colar, embora não condizente com o brinco que lhe pendia duma orelha, seguido de mais meia dúzia ou por aí – na verdade, eu ainda não estava em condições de acertar nas contas. apesar do meu estado de debilidade e transtorno, tomei nota de que o homem era bom como o milho, alto, aí a rondar os quarenta anos, corpo a deixar adivinhar músculos bem exercitados e não sei que outros atractivos, pois vi o meu devaneio interrompido, quando ele se me dirigiu e, com um ar entre o altivo e o trocista, e para gáudio dos que o acompanhavam, disse: "então, tu és aquela que se andou a atirar das escadas abaixo e a ficar com a cabeça quase debaixo da roda dum autocarro? que ideia foi a tua?", enquanto me segurava o pulso e dava uma vista de olhos aos valores revelados por uma maquineta presa a um dos meus braços. sinceramente, não entendi nada do que ele dizia, embora tivesse começado a suspeitar que se tratava de um médico, seguido dos seus aprendizes, e que aquele meu poiso seria uma qualquer enfermaria. de tão aparvalhada, nem abri boca, quando muito os olhos, num arregalar de espanto, e ele prosseguiu, "como te chamas?", e eu nada, impossibilitada de comunicar, sabe-se lá porquê. ele insistiu, e eu acabei por responder, "não sei", não porque não soubesse, mas para ganhar tempo, até conseguir perceber o que me seria mais vantajoso, se revelar ou ocultar a minha identidade, pois, na realidade, não me lembrava do acontecido e de eventuais responsabilidades que pudesse carregar – se a minha vida de merda me servira para alguma coisa, fora justamente para pressentir o perigo e desencadear uma boa capacidade de defesa, de preferência, por antecipação.
enfim, não importando os pormenores, passo a resumir: nos dias seguintes, insisti na versão amnésia, ao mesmo tempo que conquistava a compaixão da minha vizinha de cama, pela qual vim a saber o ocorrido, o que me proporcionou algum sossego, afinal não tinha feito nada de censurável, limitara-me a cair por umas escadas abaixo duas vezes seguidas, mas, que eu soubesse, cair não constituía crime. mesmo assim, quando, ao fim de quinze dias, tive alta, já devidamente esclarecida e adequadamente tratada, mantive-me na afirmação do esquecimento da identidade. entregaram-me um endereço dum qualquer abrigo da segurança social ou dalguma ong, não percebi bem, enfiaram-me uma nota de vinte e outra de dez euros nas mãos e mandaram-me embora.
pronta para a vida, com trinta euros e uma morada à disposição, nem sabia por onde reiniciar. fui andando até ao metro mais próximo e, antes de embarcar, enfiei-me num café, pedi um galão e uma sanduíche de fiambre, ocupei uma mesa junto ao vidro embaciado de sujidade da montra e saboreei cada golo e cada pedaço como se festejasse a minha ressurreição e a minha liberdade. depois, veio-me um calor às faces – não, não era da menopausa, eu ainda nem aos vinte e cinco anos chegara –, e caí na realidade: que faria agora? não podia regressar ao castelo do drácula, onde exercera de empregada de limpeza, com direito a um quartinho no sótão, não tinha ninguém a quem recorrer e, acima de tudo, não fazia tenção de me apresentar à instituição para onde a senhora do hospital, assistente social ou lá como se chama, me encaminhara, não, não confiava em instituições, bem me bastava ter passado por algumas, ainda menor, quando, devido à morte dos velhotes onde, anos atrás, o meu pai me pusera a trabalhar, fiquei só no mundo.
a bem da verdade, aquele calor nas faces era medo, mas habituara-me a desprezar o medo, pelo que rapidamente reagi, decidi galgar um patamar, passar do desprezo ao desafio, desafiar o medo.
e foi assim que dei início a uma nova etapa da minha vida, resolvi caminhar, apenas caminhar e ver o que acontecia, só que, desta vez, concentrei a atenção nos pés, as minhas pernas ainda estavam um pouco fracas e, tão cedo, não queria voltar a estatelar-me no chão.
encaminhei-me para um jardim e embrenhei-me na folhagem que ladeava uma alameda, por onde, àquela hora, não circulava muita gente. aliás, no momento em que aconteceu, não se via rigorosamente ninguém. fixos como levava os olhos no chão, apercebi-me de um súbito brilho a faiscar da base duns arbustos. curiosa, abaixei-me, afastei as ramagens e vi uma peça de metal que sobressaía duma superfície rectangular preta. debrucei-me mais e apanhei o achado, uma pasta de cabedal, aliás, bem pesada. com atenção minuciosa, olhei em volta, onde continuava a circular ninguém. rapidamente, envolvi a pasta no casaco que levava pendurado num braço e afastei-me dali o mais depressa que pude, agora com os olhos bem vivos em redor, substituído o medo de cair pelo de que me caíssem em cima. mas não, nem vivalma. quase corri para o metro, comprei um bilhete e fui até ao fim da linha, nem sabia que sítio era aquele. calhou ser um bairro agradável, embora modesto. caminhei até à zona mais central, entrei numa pastelaria e encaminhei-me directamente para a casa de banho. com o coração aos saltos, abri a pasta, ansiosa por descobrir que peso era aquele que carregava. senti-me tonta quando deparei com a quantidade de rolos de notas de cem euros oferecidos à minha vista – e à minha ganância, acabada de revelar. voltei a fechar a pasta, dissimulei-a o melhor possível no interior do casaco e saí dali, na pressa desvairada de encontrar um local seguro. ao fim de curta deambulação, deparei com um hotel de três estrelas, onde, apesar do olhar renitente do empregado, fui aceite, após ter pago antecipadamente duas noites, com recurso a notas que retirei do bolso das calças (depois de, ainda na casa de banho da pastelaria, as ter surripiado ao interior da mala).
a insegurança que sentia em nada se comparava à excitação, às gloriosas e nunca antes sonhadas perspectivas que aquele achado acabava de me oferecer. e não, não experimentei qualquer incómodo moral, percebi imediatamente que aquela pasta de notas ali tão manhosamente escondida só podia provir de algo ilícito e, como tal, mais valia estar nas minhas inocentes mãos, de resto tão penalizadas por uma vida miserável, do que retornarem à posse de quem, sabe-se lá por que aperto, ali a escondera, certamente com a intenção de voltar para a reaver.
P.S. : este texto é continuação do (post) de 4 de Março p.p. e, com sorte, irá prosseguir.
segunda-feira, 15 de abril de 2024
BAIÔA SEM DATA PARA MORRER
«O meu pai odiava o lugar, os meus avós tinham morrido na capital, onde moravam há décadas, e o telhado da casa da aldeia caíra mais ou menos na mesma altura, segundo a minha mãe fruto de alinhamento cósmico, ou por vontade de deus, porque isto anda tudo ligado, porque nós não somos nada.»
Livros, o que seria de mim sem livros! Pois é, fazem parte, aliás essencial, da minha alimentação e, de vez em quando, não resisto a falar sobre algum, forma de partilha ou convite. É o caso deste, mencionado em título e ao qual pertence a transcrição acabada de fazer, em jeito de epígrafe, da autoria de Rui Couceiro.
Habitava em mim a vaga reminiscência do (intrigante) título, creio que por via de entrevista captada em algum programa de rádio ou em qualquer plataforma da Internet, não sei bem, mas algo ouvi que germinou em curiosidade latente. O tempo foi passando e ele a esvair-se, todavia sem deixar de latejar no incansável recanto da minha mente onde se aloja a avidez por novas leituras, pela descoberta de novos escritores.
Até que um dia, deparei-me com a página do Autor numa rede social (Facebook) e, hélas!, de forma por sinal bem engenhosa e divertida, ele fazia referência à sua dita obra. Ficou logo ali decidida a minha próxima aquisição literária, o que rapidamente se concretizou e, daí à leitura, foi apenas o (breve) compasso de espera para acabar de ler o livro então em curso.
Explicado como lá cheguei, agora, sim, vou falar do livro, BAIÔA, assim abreviado, por simplificação mas não só – também como homenagem ao personagem portador desse nome, tão rico de humanidade quanto parco de palavras.
Tomadas as primeiras páginas, deparei-me com um narrador, personagem-narrador, que me deu a conhecer uma aldeia perdida na fundura alentejana, de seu (sugestivo) nome Gorda-e-Feia – pobre dela, não lhe bastava a gordura, ainda tinha de acumular a feiura, que ele há sortes mesmo más!, foi o que pensei de imediato.
Uma aldeia abandonada a meia dúzia de sobreviventes de vidas idas, velhos, portanto, cada um com suas idiossincrasias, cujo ponto de encontro/reunião social é a taberna de um deles, que, todavia, não exerce apenas de taberneiro, acumulando com outra actividade, à qual todos acabam sempre por precisar de recorrer, mas que não vou revelar, pois isso não se faz, não se desvenda o mistério para frustar o prazer da descoberta, ou seja e como agora se diz, nada de fazer spoiler.
Pois bem, é precisamente à porta dessa taberna que o nosso narrador (e, para mim, personagem principal, sem pretender retirar importância aos restantes), vai ter, quando, num ímpeto de determinação em abandonar uma vida de que apenas nos revela o essencial – mas sobre a qual largamente me permiti divagar, não deixando de parte a suspeita de um desgosto amoroso... –, decide mudar-se para a dita aldeia, ele, homem jovem, no início dos trinta, único jovem, no meio da tal meia dúzia de velhos e velhas.
Na verdade, tratou-se de um ímpeto, de agarrar uma oportunidade de mudança, de resto, tão radical quanto inusitada, surgida duma circunstância imprevisível, mas que constitui o cerne da questão, quero dizer, da história, o ponto de partida para o que vai desenrolar-se perante o nosso olhar, surpreso, atónito, comovido, divertido e mais uns quantos estados de alma que a narrativa dos estranhos fenómenos que por ali sucedem nos vai despertando.
A circunstância foi que um dos moradores da aldeia, o velho Baiôa (nem imaginava que tal fosse nome de gente, aliás, continuo sem saber, mas isso não interessa nada), ciente de um segredo partilhado por um tal Dr. Bártolo – o médico da aldeia e investigador de assuntos entre o científico e o, por assim dizer, esotérico –, vai empreender, com enorme determinação e empenho e a expensas suas, um plano de renovação das casas da aldeia, derreadas de degradação à medida do abandono (emigração e morte) dos seus moradores, plano esse, com o qual visa garantir o chamamento ao lugar de novos habitantes, sobretudo habitantes novos, que garantam a permanência no mapa da vida da agora exausta, despovoada e semi-morta, enfim, em vias de extinção, Gorda-e-Feia (e eu logo de imaginá-la transformada em Esbelta-e-Bela, mas isto sou eu, não é do livro nem estava nos planos de Baiôa, pois o nome da aldeia sempre seria o seu traço de identidade e, como tal, nem lhe passaria pela cabeça mudá-lo, tenho a certeza).
A primeira casa reconstruída por Baiôa calhou ser a da família do nosso narrador, há muito estabelecida em Lisboa, e, comunicada a notícia, foi recebida com gratidão e entusiasmo pela mãe e acolhida por ele com a tal determinação (desespero?) de necessária mudança, quanto mais não fosse, para sair da zona de desconforto que constituía a sua vida de professor-aqui-e-ali e, sobretudo, de agarrado às redes sociais em elevado grau de dependência, vivendo através de fotografias, posts e pertinentes reacções – e mais não nos conta, mas somos livres de imaginar.
Estranhamente, a diferença etária e cultural entre o jovem recém-chegado e os poucos habitantes da aldeia, superado o choque inicial (da mudez com que que é recebido à porta da taberna), não constitui obstáculo a que se estabeleça uma aproximação e amigável relacionamento entre eles. Na verdade, à semelhança dos outros, ele passa a frequentar o ponto de encontro, a taberna, vai conhecendo a vida de cada um e, sobretudo, torna-se o ajudante cúmplice e esforçado de Baiôa na reconstrução das casas destroçadas. A relação entre ambos vai-se estreitando, ao ponto de Baiôa, aliás homem de poucas palavras – excepto com as árvores –, o ter posto a par do segredo do Dr. Bártolo, o tal segredo que está na origem daquela sua necessidade e urgência de resgatar Gorda-e-Feia para a vida, já não digo para a elegância e a beleza, apesar de que a reconstrução das casas não deixará de dar um contributo nesse sentido – digo eu, aqui a falar sozinha.
Enquanto nos põe a par desta sua experiência, o narrador revela-nos, a pouco e pouco, as vidas dos parcos habitantes da aldeia e, não menos importante, aliás, central em todo o contexto, acaba por nos desvendar o segredo, o tal segredo que comanda toda a actuação de Baiôa e, em última análise, a sua própria ida para a aldeia, pois se a casa da família não lhe tivesse sido devolvida completamente reconstruída e pronta a habitar, ainda hoje ele andaria a carregar as malas de terra em terra, no exercício da docência, e a viver através de fotografias, palavras e emojis publicados nas redes sociais, sempre num afã crescente e febril necessidade de preenchimento de profunda insatisfação e árido vazio – imagino eu, a menos que tivesse sido consumido por um Burnout, que também sucede em tais casos, e seria deveras lamentável, pois nos privaria da fantástica história que trouxe até nós.
Ora, aquela nova vida assentou-lhe tão bem, que é delicioso ouvir a sua narrativa do que se passou e passa em Gorda-e-Feia, sobretudo pela calma, ponderação, generosidade, elegância, esmero e, não menos importante, o sentido do tempo e o sentido de humor com que o faz. A ligação entre o real e o imaginário, o genuíno e o simbólico, o passado e o presente, a conviverem em harmonia deliciosa. E, se assim o ouvimos com deleite, é também com deleite que o lemos, pois que, afinal, de leitura se trata, e o livro está muito bem escrito.
Aqui chegada, parece-me dispensável concluir o óbvio, ou seja: adorei ler BAIÔA, um livro deveras bem escrito, bem desenhado e construído, que, num jeito mágico e irónico e com um timing perfeito, nos fala de temáticas caras, nomeadamente, em termos humanos (velhice, abandono, solidariedade...), sociológicos (desertificação, mudança de paradigmas de vida...) e, inclusivamente, políticos (promessas e aproveitamentos eleitorais...).
Recomendo, pois, vivamente, a leitura deste romance e, já agora, anuncio, entusiasmada, que o próximo romance do Autor virá ter connosco dentro de pouco tempo.
Seguir o Autor nas redes sociais é, igualmente, algo que aconselho, pela valia das notícias editoriais que vai partilhando – é Editor da @contrapontoeditores – , e, em geral, das suas publicações, caracterizadas pelo bom gosto e bom senso. De resto – e abro um parêntesis para o referir – é por encontros como este que permaneço nas redes sociais, apesar da miséria muita que por lá também pulula.
segunda-feira, 4 de março de 2024
MARIA NINGUÉM (2): TRAÍDA POR TROPEÇÕES
conforme desabafei no relato anterior, após a segunda queda, ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. acontece que chamaram o INEM, não que me tivesse apercebido, só acordei na barriga da ambulância, por sinal, bem estranha, uma cara (ou seriam duas?) debruçada sobre mim a medir-me ou apalpar-me não sei o quê, fios pendurados de tubos espaciais e máquinas uivantes. senti-me conduzida ao ventre da minha mãe, como se alguma vez tivesse conservado memória de por lá ter balançado os meses do costume, talvez menos, creio haver sido expulsa em modo prematura. desse local, evoluí para recordações outras, não pelo seu mérito, apenas por razão e fundamento do meu caminho pela vida:
lá em casa, éramos menos que muitos, apenas três. caso a minha mãe não tivesse morrido logo depois de me abandonar ao mundo (e talvez por isso – nunca ninguém se dignou informar-me), havíamos de somar muito para cima desse número, que eu bem via como se povoavam de múltiplos seres as casas da vizinhança, bairro malcheiroso e barulhento onde passei os primeiros anos desta minha existência. a avó, mãe de meu pai, este e eu, três gafanhotos a tropeçar na escuridão daquele tugúrio que, de vantagem em relação aos dos vizinhos, só possuía a de ser maior, não por dispor de mais espaço, antes devido à redução de ocupantes. mesmo assim, tropeçávamos uns nos outros. certas vezes, era a mão do meu pai que tropeçava na minha cara, quem diz cara, diz rabo ou diz cabeça, braço ou onde calhasse. outras vezes, era a garrafa, já tão menos de metade que até fazia sede, a tropeçar no gargalo dele, do pai. a avó só tropeçava de olhos, batiam na minha figura ou na do outro e estremeciam, não sei se de pena, desgosto, indignação, desdém ou de que porra. era muito curta de idade para saber interpretar sinais, de resto não possuía estudos de psicologia, nem de psicologia, nem de quase nada, que aquilo da escola primária exigia motivação e a minha era só uma, divagar.
sempre me perdi e continuo a perder-me por divagar, divagar por realidades várias, e não pensem que não incluem livros, que, se não são livros lidos, são livros pensados e costurados por mim, com princípio, meio e fim, embora nem sempre contenham uma história ao gosto de toda a gente – a bem dizer, nem toda nem nenhuma, pois ninguém os lê. mas eu aprendi a ler, fiz até muita questão nisso, nisso e na geografia, ai!, como eu gostava de percorrer o globo terrestre com os meus pequenos dedos encardidos, unhas negras de desafiar a terra e as cascas das árvores e tudo o que me despertasse a curiosidade de saber o que se passava lá por baixo, lá por dentro. ainda bem que não dispunha de tesouras ou facas ao alcance da mão, nisso (e não só) a minha avó mostrou-se deveras cuidadosa, talvez visse para além da realidade aparente, talvez fosse essa a função do tropeçar dos seus olhos vagabundos. ah!, o que quero dizer, é que, caso tivesse esse tipo de instrumentos à mão, talvez experimentasse num gato ou num cão da vizinhança, não por maldade de ferir ou de matar, apenas por sede de conhecimento. eu tinha de saber por experiência, motivo por que a escola não se me deu muito bem.
também, ainda que desse, não teria mudado nada, pois o meu pai, nem dez anos ainda eu alcançara, pensou, deliberou e executou, pegou em mim e vendeu-me em contrabando, melhor, alugou-me, por uma quantia mensal mais o ganho de se ver livre de mim. nessa altura, quando parti, o tropeço dos olhos da avó caiu para dentro dos meus e fiquei com a impressão de que uma parte deles me rolou para dentro, onde permaneceu até à eternidade, que é onde ela já habita há uns anos, desde o enfarte fulminante, posto que a minha memória se encarrega de zelar por isso.
quanto ao outro, o meu pai, foi uma cirrose – desengane-se quem estava à espera de algo mais original – que o levou para os infernos onde se cruzam garrafas e chapadas, mulheres perdidas em partos prematuros e filhas menores alugadas por dez réis de mel coado, como dizia a avó, que esteja bem, lá onde a observo – fazendo de conta que habita algum lugar para lá do meu interior, onde a guardo como o lobo mau guardou a avó da capuchinho vermelho, mas, obviamente, com diversa motivação e contexto. ele, o meu pai, okay, estou para aqui a falar nele, mas isso não significa eternidade, esta acontece quando (enquanto) a memória guarda, zela e cuida. quanto a ele, a memória é mero pretexto para mais um destes livros, no caso, mero folheto, construído do nada. ah, pois, o facto de lerem isto não equivale a verdade, quem vos disse que não se trata, apenas, do cruzamento de palavras a passar-me – a passar-vos – pelos neurónios?
de resto, a minha infância, não posso dizer que tenha sido infeliz ou feliz, não por falta de recordações, mas porque as infâncias não são tempo nem lugar de análise aprofundada e valorativa dos acontecidos: estes vivem-se e é tudo – tudo, tudo, não digo, pois o que acontece, acontecido está, integra-se, entranha-se e não há maneira de desacontecer. mais ou menos como o amor, só mais ou menos, porque este, bem vistas as coisas, pode acabar por desacontecer, basta pensar que a dor, uma grande dor, pode bem matar um amor, mesmo um amor enorme (ou não?).
já agora, só para esclarecer e evitar confusões – estou mesmo a ver que já me imagináveis jovem prostituta –, aqueles onde o meu pai me pôs de alugada eram uma família de velhos, velhos abandonados como convém, que os novos andam muito entretidos a esquecer que um dia – com sorte ou azar, consoante – também serão velhos. eram uma família de um homem e uma mulher, casados. apesar de muito ricos, tratavam-me bem e não queriam que passasse fome, metia-lhes impressão a minha caixa de ossos e o rosto esquálido. mas depois morreram e eu, bem, tive de ficar por minha conta, mas, a bem dizer, até aí, também tinha estado mais ou menos por minha conta, apenas que menos alimentada e com os olhos da minha avó, enquanto existiram, a tropeçar, atentamente, nos meus.
só muito mais tarde fui parar àquela outra casa onde, certo dia, me esparramei pelas escadas abaixo. casa, é modo de dizer, aquilo era um casarão, mais parecia um castelo... do Drácula.
P.S. : este texto é continuação do (post) imediatamente anterior e, com sorte, irá prosseguir.