terça-feira, 15 de outubro de 2024

O HOMEM QUE SE DESINTEGROU DIANTE DE MIM

seguíamos no mesmo autocarro, ignoro se com idêntico destino – parvoíce, ninguém partilha destino com ninguém, apenas natureza, a (dita) natureza humana, estranha criatura, cimento dos males do mundo.
ele aparentava uma calma quase diáfana, como se estivesse em estado de yoga, meditação ou simples introspecção, mas sossegada (por vezes, a introspecção vai tão fundo nas entranhas que desatina qualquer mente, inclusive as mais recatadas ou que assim querem parecer).
não reparou em mim, pois, como acabei de contar, seguia, por assim dizer, na dele, uma suave onda muito própria. e, todavia...
a dado ponto, notei-lhe um brilho inusitado nos olhos, algo a destoar da atitude (ou aparência) anterior. embora ao de leve, mexeu-se no assento, desajeitado, como se a pressentir ou a fugir de um qualquer incómodo, uma dor, comichão, guinada, sei lá, não sou bruxa, como poderia saber?
momentos depois, levantou-se, estendeu a mão para o botão de sinalização de paragem do autocarro – será que ainda existem autocarros com tais botões?, pergunto-me agora, não que interesse alguma coisa para o caso – e deu uns passos em direcção à saída.
obviamente, esta conduta seria algo banal, não se tivesse dado o caso de a sua mão, de dedos finos e elegantes, com um dos quais accionara o botão, se lhe ter desprendido do pulso e descido, desamparada, em direcção ao chão, onde se quedou, imóvel e aparentemente indiferente, sem correr atrás do braço a que, até então, estivera ligada e, curiosamente, o homem não voltou atrás para a recolher, aliás, nem pareceu aperceber-se do sucedido.
eu olhava, atónita, e mais atónita fiquei ao constatar que mais ninguém reparara, apesar de a mão continuar ali deitada no chão e o homem caminhar, indiferente, para fora do autocarro, entretanto parado – agora, ao pensar nisso com maior distanciamento, não estou certa de que houvesse mais pessoas no autocarro, excepto o motorista, claro. 
levantei-me de supetão, sustei com um grito o gesto de recomeço de condução do motorista e, por entre desculpas murmuradas, precipitei-me em direcção ao homem, sem saber muito bem porquê.
como se por magia, ele acabava de se desvanecer não sei onde nem como e, após ter varrido, sem êxito, as proximidades e o horizonte mais longínquo com os olhos febris de curiosidade e impaciência, acabei por os fixar no chão, talvez na esperança de aí encontrar o seu rasto. 
a princípio, não entendi bem, mas rapidamente se tornou claro que aquilo era um pé, envolvido numa meia cinzenta, a sair dum sapato preto.
não conseguia despregar os olhos do chão e do que aí se ia deparando ao meu olhar esgazeado de tamanha e tão inusitada extravagância: a seguir àquele pé ainda calçado, uma mão, a gémea da que ficara no autocarro, os mesmos dedos finos e elegantes, quase delicados, uns metros à frente, o outro pé e, de metro a metro – se é que era esta a medida da distância e não outra –, seguiram-se, primeiro um depois o outro, os joelhos, troços de cima e de baixo das pernas, fatias do tronco, os braços e, por fim, a cabeça, a cabeça do homem do autocarro, com os olhos remetidos à serenidade inicial, como se o seu único momento de perturbação, o longínquo momento em que se levantou para pressionar o botão de paragem do autocarro, mais não fosse do que a pressa de se desintegrar, de se perder em pedaços desligados, para, assim, reencontrar a paz.
senti um sopro nas costas, voltei-me, era apenas o vento daquele princípio de inverno e nada mais, nem os restos desgarrados do corpo do homem que eu, estava certa, acabara de ver. sobressaltada, voltei a olhar em frente, também a cabeça já desaparecera. 
vislumbrei apenas um vasto campo aberto, despido de tudo quanto pudesse imaginar-se e quedei-me sem respostas, suspensa na inquietante angústia de ignorar o que sucedera ao homem, que destino tinha sido o seu, já para não pensar no meu.
depois, dei comigo a deambular não sei bem por onde, por que destino, enquanto me interrogava, qual homem?




segunda-feira, 19 de agosto de 2024

MARIA NINGUÉM (4): TRAÍDA POR UM SONHO


senti uma pancada nas costas, que me fez levantar a cabeça, atarantada, e os meus olhos bateram numa cara vermelhusca, cuja boca de dentes amarelos – nem todos... faltavam-lhe alguns – vociferou: "toca a andar que se faz tarde!"

assim de repente, a minha preocupação concentrou-se na pasta das notas, mas durou breve, pois rapidamente despertei por completo e constatei a triste realidade, acabava de passar pelas brasas e, enquanto isso, inventara aquela história estrambólica do milagre dos rolos das notas de cem euros. o desapontamento não foi maior por não estar habituada a milagres, nem sofrer da esperança de que acontecessem. assim, em vez de tombar num desgosto de decepção ou numa raiva de desacontecido, explodi a rir com quantas forças tinha e de forma um tanto descontrolada.

a cara vermelhusca fixou-me, misto de fúria, curiosidade e receio, e, com gesto de braço esticado, indicou-me a porta da rua. as lágrimas afloraram-me aos olhos, mas foi – ou quiçá tenha sido – de tanto rir, abandonei a mesa onde estivera a degustar a sanduíche de fiambre e o galão ou meia de leite ou já não sei bem o quê – nem estou para voltar atrás, a fim de rever o escrito antes – e saí da pastelaria, passando pelo dono daquele  rosto hediondo sem proferir palavra.  ao contornar a montra suja, divisei a minha figura despenteada, a que dei um jeito, fazendo dos dedos pente, e reconstituí a cena: gaja acabada de sair do hospital alapa-se na primeira espelunca que lhe aparece, no intuito de fazer contas à vida, e acaba a fazer contas a rolos de notas de cem euros, inexistentes. o resumo perfeito, disse para comigo, sem poder evitar novo ataque de riso. já era busco-fusco e tinha de dar um rumo, senão à vida, pelo menos ao corpo, ainda bem dorido e cansado. resolvi voltar ao quartinho do sótão da mansão do Drácula, sem saber se me receberiam de volta.

ou então, não! afinal, sempre ouvira dizer que nunca se deve regressar onde se foi feliz, era hora de complementar: e, muito menos, onde se foi infeliz. obviamente, isso levantou-me o problema de não descortinar ponto de retorno.

sem mais, lembrei-me da casa dos velhotes, para onde, anos antes, o meu pai me tinha despachado e concluí duas coisas, primeira, estava a ser injusta, aí até tinha sido feliz, quero dizer, pelo menos não me tratavam mal, segunda, valeria a pena tentar desafiar o estabelecido, regressar lá, de qualquer das formas, não tinha nada a perder, embora pela simples razão de não possuir nada, mesmo.

por razões óbvias – de qualquer modo, não perderei tempo a explicá-las –, recordei a morada. caminhei com a pressa de quem espera encontrar uma mala de cabedal cheia de notas de cem euros – novo ataque de riso – e, uma vez chegada, achei por bem consultar o écran do telemóvel, antes de tocar à campainha. Oh diabo!, exclamei, ao constatar que as onze já caminhavam para a meia noite.

por qualquer acaso do destino, se é que isso existe, a porta abriu-se, dando passagem a uma explosão de luz e, envolto nela, um ser misterioso (anjo?) que, já próximo de mim, se converteu num homem aí dos seus quarenta anos, acompanhado de dois cães, esbeltos galgos, nos quais parecia concentrar-se toda a energia em falta na minha desgastada pessoa. por alguma razão, lembrei-me de um livro, "O Homem Que Gostava de Cães", do Leonardo Padura, e pensei se..., ora, não pensei nada, afinal, sabia lá eu da existência desse livro ou autor!, mas tal não significa que, mais tarde (e por mera hipótese), não o tivesse vindo a ler e a apreciar sumamente.

o homem que parecia gostar de cães – via-se pela maneira como lhes segurava a trela e lhes dava ordens, no caso, para não se lançarem sobre mim, toda encolhida a uma canto, a resguardo da maior exuberância da luz – fixou-me com os olhos semicerrados e, sem mais hesitação, disse: "tu não és a..., aquela rapariga que trabalhava para os meus avós, a..., olha, desculpa, não me lembro do nome, já lá vão uns anos." – e sorriu, como quem pede misericórdia. "não sei se sabes, mas eles gostavam muito de ti, creio que até pediram aos meus pais..." – hesitou por instantes – "bom, isso agora não interessa, eles não..." – interrompeu-se, enquanto me fitava, não sei se a reflectir em algo ou à espera de uma interpelação.

"sim, sou essa", respondi, completamente às escuras sobre a identidade do meu interlocutor, afinal, não me lembrava de ninguém a frequentar a casa dos velhotes, excepto a criadagem, ou seja, os meus colegas. mas, de repente, ocorreu-me uma altura em que uma filha deles, acompanhada do marido e do filho, rapaz uns anos mais velho do que eu, apareceram lá em casa, não sei com que objectivo, mas, a avaliar pela duração da visita, pelas vozes alteradas que as paredes da sala não conseguiram reter e pela tensão das despedidas, concluí que tinham ido apenas fazer a prova de vida e do estado de conservação dos velhos, certamente, para melhor avaliarem o tempo de espera da herança.

algo deve ter transparecido do meu olhar, que levou o homem que parecia gostar de cães a afirmar, "sim, sou eu, o afonso, estive contigo na cozinha enquanto os meus pais falavam com os teus patrões, a quem tinham vindo pedir ajuda para a compra de uma casa nova, com piscina e tudo." – reparei que o dizia com tristeza, como se num desacordo visceral com os progenitores, e adiantou – tal qual se em sequência lógica: "enfim, bem gostava de ter passado mais tempo com eles, com os meus avós". levou o olhar para longe e, após uma pausa, regressou com os seus aos meus olhos e perguntou, em jeito amigável: "e tu, o que fazes aqui?" sem saber muito bem porquê, respondi, "eu também", logo me apercebendo da incongruência da resposta.

e assim ficámos, parados no meio da noite, cada qual embrenhado em seus pensamentos ou anseios.  


P.S. : este texto é continuação do (post) de 14 de Junho p.p. e, com sorte, irá prosseguir. (falta o desenho-ilustração, porque continuo sem conseguir carregar fotos para o blog)



sexta-feira, 2 de agosto de 2024

PORTO, O (MEU) LADO DE LÁ


Vim parar a este mundo numa pequena cidade, lá para trás das montanhas. Mal tomei conhecimento de mim, passei a detestar a cidade tanto quanto amava as montanhas e creio – ou invento? – ter dado em sonhar com o que existiria para além delas, sobretudo do imponente Marão, que, ao tempo, quando ainda havia estações do ano, costumava cobrir-se de branco, no inverno.

Considerava a cidade enfadonha, desinteressante, inclusive, mesquinha, e apenas conseguia apreciar-lhe a deslumbrante paisagem das serras circundantes e a perspectiva de a abandonar, coisa (esta) destituída de facilidade, visto meu Pai não ser dado a viagens, mesmo em tempo de férias. Apesar disto, por razões de ordem vária, algumas profissionais, uma vez ou outra, ele necessitava ir ao Porto, ida e volta no mesmo dia, de carro (não dele, nunca quis), quase aventura, pois ainda não havia IPs e muito menos auto-estradas – nem da existência de semelhantes avanços se suspeitava – e o ziguezaguear pela estrada de ligação entre as duas cidades, maxime, as curvas da serra do Marão, não se afigurava tarefa ligeira ou isenta de perigo e ocupava um tempo que aqueles cento e poucos quilómetros multiplicavam por muitas horas e enjoos quase certos.

A partir de dada altura, creio que por volta dos meus nove anos, foi-nos permitido, ao meu irmão e a mim, acompanharmos os Pais naquelas extraordinárias viagens. É esse o marco temporal do meu estreado deslumbramento: primeiro, sair da mal amada cidade natal, segundo, atravessar o Marão para o lado de lá, o do ignoto promissor, e terceiro, conhecer a cidade do Porto, incluídas as suas praias mais próximas, com relevo para a de Leça da Palmeira (onde visitámos amigos aí em férias).

O Porto ofereceu-se, pois, a meus olhos (entenda-se, coração e mente) com a marca do longe, da porta aberta para o (ainda mais) longe, e foi amor à primeira vista. 

É certo que, a cada visita, o tempo escasseava, mas era o suficiente para compensar do isolamento e pasmaceira em que me decorria a vida e me recarregar as baterias do sonho (feito realidade por breves horas). E se eu sonhava! Desde logo, com aquela ambiência imponente e cinza que tanto me atraía – como, anos mais tarde, a de Londres ou Edimburgo –, não fosse o outono a minha estação preferida. Depois, com os tesouros que aí se podiam encontrar: em  ocasiões anteriores, a Mãe levara-me de lá um grande boneco de plástico – veio a ser baptizado de Toninho e ainda o conservo – e, mais tarde, quando já me era permitido ir,  fui autorizada a comprar um outro boneco, também de plástico e com roupa incluída, no caso, uns calções amarelos e um casaco de capuz, em xadrez castanho e amarelo, culminando nuns sapatinhos brancos – também o mantenho, bem como à respectiva indumentária. Em suma, havia aquele bazar fantástico, de onde vinham esses meus amados filhos de brincar.
 
Mais tarde, já adolescente, passei a interessar-me por outras montras e foi no Porto, nas suas magníficas lojas de artigos de pele, que comprei, em duas ocasiões, duas das minhas primeiras carteiras, uma de cor camel, outra azul escura, com bolsos exteriores, verdadeiro sucesso de modernidade, peças que dava vaidade possuir e usar.

Todavia, melhor que tudo isso, eram os meninos da Foz (como, mentalmente, os apodei), jovens de calças cinzentas e blazers azuis escuros assertoados, que se passeavam em descapotável e me induziam devaneios com um mundo que, nada tendo a ver com o meu, almejava atingir – na verdade, vim a usar saias cinzentas pregueadas e blazers azuis escuros assertoados, mas, descapotável, apenas tive um Citroen Dyane, de cor bege, meu primeiro carro, que troquei de velho e com muita pena.

Por essa altura, a imaginação permitiu-me criar um mundo alternativo, sem o qual me teria sido (ainda) mais penoso aguentar a realidade fechada em que vivia ou a realidade em que vivia fechada, e, para isso, contribuíram significativamente as visitas à cidade do Porto.

Aquando das mesmas, passeávamos e fazíamos compras, na Rua de Santa Catarina e suas adjacentes, como a de Santo António, visitávamos o mercado do Bolhão, e acabávamos a tarde a lanchar num grande café situado na Avenida dos Aliados, cujo nome não recordo.

Ignoro se é a imaginação da memória a pregar-me partidas, mas acredito ter visto as primeiras iluminações de Natal no Porto – à minha cidade só chegaram anos mais tarde, já eu a tinha abandonado.

Aos dezasseis anos, finalmente – e por motivo dos estudos universitários do meu irmão e, um ano depois, dos meus –, emigrámos para Lisboa. Aleluia!, deixei, sem sombra de saudades, a terrinha acanhada em que me fora dado nascer e estiolar, à qual não regressei durante cinco anos e onde apenas voltaria mais tarde e só por ocasião de férias, para visitar meus Pais.

Nunca esqueci o Porto – que, aliás, preenchia o meu recanto de devaneio muito mais do que Lisboa, mesmo sendo esta, sem hesitação, a minha cidade-para-viver, da qual muito gosto. Apesar disso, só esporadicamente lá regressei, em passagens breves, sempre maravilhosas, a caminho ou de regresso da cidade natal – sem contar com duas ocasiões em que fui e vim no mesmo dia, com o objectivo de ver duas exposições, uma da Paula Rego, outra do Francis Bacon (ambas em Serralves e ambas excelentes).

O Porto sempre permaneceu como uma memória preciosa e aparece-me, de tempos a tempos, nos sonhos – refiro-me, agora, aos que ocorrem durante o sono –, como se resista a deixar-se esquecer – ignorante da impossibilidade de tal risco! –, como quem chama por mim.

De há uns tempos para cá, andava com a ideia de o revisitar, quando dois factores aceleraram a passagem à acção: o anúncio da exposição da Yayoi Kusama, no Museu de Serralves, e, posteriormente, a leitura do romance "Morro da Pena Ventosa", de Rui Couceiro, que se desenrola na cidade, aliás, erigida a personagem (v. post de 16 do mês passado).

Assim, há umas semanas, meti-me a caminho, com a intenção de visitar tal exposição, os lugares da minha infância e adolescência – sem esquecer a Foz e as praias até Leça da Palmeira –, e os do citado romance, em particular, a zona da Sé e da Pena Ventosa. Ah! e não olvidando a Livraria Lello.

Chegada ao hotel – situado em Gaia, para fugir à (presumível) confusão do centro do Porto, e com vista para a foz do rio Douro –, larguei a bagagem e segui para o Museu de Serralves, onde pude apreciar a fantástica exposição da YK, não sem antes me ter visto forçada a andar às voltas, no intuito de estacionar o carro, o que, a custo, lá acabei por conseguir, e após levar com ondas de poeirada em cima, devido a obras no local (aproveitei, ainda, para ver uma outra exposição ali em curso, dedicada ao 25 de Abril, por sinal, bem interessante).

No dia seguinte, sob chuva e nevoeiro ou, no mínimo, neblina – tempo que até aprecio, mas não me deu grande jeito – fui à (re)descoberta da Foz e por aí adiante, até Leça da Palmeira. Gostei do passeio (como não?), amei rever aquele mar, mas, dado o estado do tempo, nem cheguei a apear-me.

Retrocedi, então, para o centro, larguei o carro no Silo Auto e avancei para a saudosa Rua de Santa Catarina. Sendo já tarde, a fome a apertar e sem tempo ou paciência para procurar um restaurante decente, decidi almoçar no centro comercial Via Catarina, que, há uns anos, era um local sossegado e agradável, mas agora me pareceu uma espécie de Colombo (em miniatura) – o buliçoso centro comercial de Lisboa onde não entro aí há uns três anos, nem faço tenção de entrar. Mal me despachei, saí a correr, gulosa duma sobremesa e café no Majestic, onde fui muito bem atendida e, de imediato, arquivei a experiência desagradável do almoço. Um parêntesis para referir que não deixei de recordar o maravilhoso café Tortoni, de Buenos Aires, de onde – não digam nada a ninguém – trouxe de empréstimo uma ementa.

O percurso pela rua de Santa Catarina deixou-me triste, não por não antecipar a mudança – sabia que o Porto, à semelhança de Lisboa e de tantas outras cidades, tem sido invadido por turistas e que as lojas antigas (das minhas compras acima mencionadas) deram lugar a comércios de merchandising turístico, logo, desprovidos de qualquer gosto, e a lojas das marcas que habitam todo o mundo, globalização oblige. Sendo certo que ainda se mantêm as belas fachadas de prédios antigos, a rua está (ou apareceu-me) completamente desfigurada e inundada de gente chefiada por guias de bandeirinha em riste (quem sabe se uma destas não seria Beta, a protagonista do supracitado romance...). O prazer de observar e fotografar tropeça nos múltiplos corpos que se nos atravessam à frente e o encanto esvai-se. Ainda procurei a Rua de Santo António (não descortinei placas de identificação das ruas, possível distracção minha), mas a indicação da empregada duma ourivesaria antiga, ainda do tal tempo, onde, vá-se lá saber porquê?, comprei um anel de prata com um coração de zircónia, levou-me à Rua de  Trinta e Um de Janeiro (vim a saber, via internet, tratar-se de rebaptização), que desci a pique até à Estação de S. Bento, no intuito de seguir para a Livraria Lello. Entrei e, na tentativa de fotografar os bonitos painéis de azulejos, capturei uma data de pessoas.

Começava a sentir-me vítima de frustração e cansaço (não por ter andado muito, mas, talvez, porque a decepção também cansa). Empreendi, a custo, a subida da Rua dos Clérigos, com destino à Livraria Lello e, inevitavelmente, deparei-me com uma fila a desenhar curvas e contra-curvas. Dirigi-me ao porteiro e perguntei se os nacionais compradores de livros também tinham de ir para a fila, tendo-me respondido que nacionais ou turistas era igual. Limitei-me a espreitar o interior belo e sombrio, dei meia volta e comecei a descer. Outro parêntesis para recordar Buenos Aires e a sua magnífica Livraria Ateneo, de entrada livre e que, para mim, continua a ser a mais bonita onde estes meus pés que o fogo há de engolir já tiveram a sorte de pisar.

Por essa altura, apenas desejava apanhar um táxi até ao meu carro e regressar ao hotel. Foi difícil, mas lá consegui, perto da estação de S. Bento, onde um acabava de deixar (mais) uma turista. O taxista meteu conversa, gabando o meu "sotaque lisboeta" (assim disse!), dirigindo-se a mim por querida (!) e não se inibindo de expelir um palavrão. Tudo com ar deveras castiço, não levei a mal, tanto mais que, sendo tão curta a distância para o Silo Auto, me dei por muito feliz de haver um taxista disposto a transportar-me. Não que o tivesse feito, pois, a dada altura, avisou, sempre com enorme simpatia, que me deixaria num dado ponto, não longe do destino, pois continuaria para o aeroporto (turistas a sair como fornadas de pãezinhos quentes, pensei) e não lhe dava jeito deixar-me mesmo junto do Silo Auto. Não aceitando pagamento por meio electrónico, estendi-lhe uma nota de dez euros, para a qual alegou não ter troco e ir procurá-lo, pelo que saiu da viatura, mas, de imediato, retrocedeu e apresentou-me uma nota de cinco euros, acompanhada da pergunta/afirmação, "fica assim?" Claro que sim, aliás, o taxímetro nem quatro euros atingia. Lá seguiu, todo sorridente, "é perto, querida, agora vai em frente, vira ali à esquerda e depois à direita e está lá", disse. Era verdade, não tive de andar muito para reencontrar o meu carro. 

Pior foi sair dali, quero dizer, do centro do Porto, para regressar a Gaia. Foram tantas as voltas e tão demoradas – agora, eram carros e mais carros em vez de turistas e mais turistas, a cruzarem-se-me no caminho –, que cheguei a admitir um ataque de doideira do Waze. O regresso só não demorou mais porque cometi umas tropelias automobilísticas pelo caminho, mas lá que foi moroso e labiríntico, foi. Por isso, no dia seguinte, desisti de reentrar na cidade a fim de calcorrear a tal zona do Morro da Pena Ventosa e regressei a Lisboa.

É caso para dizer que, desta vez, não reencontrei o meu Porto, mas não alimento qualquer dúvida de que ele continua lá, sob a camada do bulício e da confusão com que me deparei, e, sobretudo, continua , dentro de mim, intacto, como quando a Rua de Santo António ainda não tinha voltado a ser designada de Trinta e Um de Janeiro. Ignoro se o meu sonho recorrente sobre o Porto insistirá em visitar-me, mas estou certa de que, no que depender de mim, hei de regressar ao Porto, quanto mais não seja para cumprir o desejo de visitar a zona da Pena Ventosa e, sempre, para revisitar o local que constituiu o alimento inicial do meu desejo pelo que está para lá das montanhas, sejam elas quais forem, e que me tem levado por viagens maravilhosas.

O Porto será sempre o (meu) lado de lá!

P.S. Quando preparei esta viagem, consultei um livro que já nem me lembrava de ter, intitulado  "Caminhar pelo Porto/7 percursos pelas histórias e segredos da cidade", da autoria de Germano Silva, autor que, imagine-se!, é citado no romance "Morro da Pena Ventosa". Gostei da coincidência, como gosto sempre deste cruzamento com a (nossa particular) realidade que a literatura (bem como o cinema), tantas vezes e a par de tudo o resto, proporciona. Quem sabe se a decisão de criar este texto não nasceu !

Só mais isto: razões misteriosas, situadas para além da minhas capacidades de compreensão e resolução, não me permitiram ilustrar este post com fotografias, o que muito gostaria de ter feito. Quando, por acção de um qualquer cérebro informático, a questão estiver resolvida, virei suprir esta lacuna. 
 


terça-feira, 16 de julho de 2024

MORRO DA PENA VENTOSA

I

O título supra pertence ao segundo romance de Rui Couceiro, publicado no mês passado e que li com gosto, aliás em ritmo alucinante, visto tratar-se de um daqueles livros em que os acontecimentos se sucedem em catadupa e de surpresa em surpresa, de tal modo que as páginas são devoradas numa pressa desmedida e gulosa de desvendar o que (mais) nos espera.

Não estou desacompanhada nesta asserção, pois o Miguel Esteves Cardoso, quando da apresentação (do romance), em Lisboa, referiu tê-lo lido de uma assentada (creio ter sido esta a expressão empregue), com única interrupção para jantar.

De que trata este "Morro"? Tentando uma síntese, pode dizer-se que aborda a vida (vidas) e a morte (mortes), nem sempre de pessoas, sempre nas suas diversas expressões e em dupla perspectiva, psicológica e sociológica, sempre centrado na condição humana... e planetária.

II

De início, a narradora/protagonista, Beta, jovem mulher em processo de luto pela morte da avó por quem foi criada e com quem vivia, resolve contar-lhe, como antes fazia e lhe prometeu continuar a fazer, os acontecidos do dia-a-dia. Não o empreende de qualquer maneira; eventualmente numa tentativa de aproximação/identificação ou, quem sabe?, de atingir um ponto de fuga ou aconchego (que talvez só venha a encontrar-se), escolhe um inusitado artefacto que transforma na peça de mobiliário a partir da qual, dia após dia, regressada a casa, dá largas ao relato (não revelo qual artefacto nem recorro ao lugar comum de dizer que não lembraria ao diabo, mas permito-me conjecturar que apenas poderia ocorrer a este particular escritor); por outro lado, carente de apoio, toma por confidente a sua (única?) amiga de infância, recuperada do esquecimento e cuja identidade mantém em suspenso até nos ser impossível esperar mais para a conhecer – no meu caso, assumo, orgulhosamente, ter adivinhado antes da revelação, embora, devo confessar, após diversas tentativas falhadas, e talvez pelo simples facto de, na adolescência, ter tido vários amigos parecidos, não iguais, mas com préstimo idêntico.

Desse modo, vamos ficando a par da vida de Beta, e, com ela, das vidas de uma galeria de (interessantes, ora dramáticas ora divertidas) personagens, que, por via do que são relações de vizinhança e, afinal, relações humanas, ela vai agregando. Tomamos, assim, conhecimento da malha em que se tecem os dias de Beta, que as noites, essas, causam-lhe pavor, retendo-a em casa, só se permitindo espreitar através da janela, modo pelo qual se dá conta da presença de um novo vizinho, recuperado de outras vidas – como, se estiverem atentos à leitura e tiverem lido o anterior romance do mesmo autor, não deixarão de descobrir. E é este o elemento que introduz, embora a medo ou melhor, ao de leve, uma outra dimensão do amor e suas cambiantes (v.g., insegurança, fuga, ousadia e esperança).

Acontece que Beta é guia turística, apaixonada pela sua cidade, o Porto, e, em particular, pela zona em que habita – e dá título ao romance – e pelo Douro, a deslizar lá em baixo, motivo por que, através de interpostos destinatários, os seus clientes, nos vai descrevendo a cidade e, por testemunho directo, certos fenómenos que nela ocorrem, como é o caso da gentrificação e, mais adiante, de acontecimentos espantosos, que, na decorrência das transformações climáticas em curso, hão de vir a afectar, de modo absolutamente indesejável, a cidade, no cerne do seu ilustre representante, o rio Douro.

Junta-se, por esta via, a dimensão sociológica, com apontamentos de distopia, à dimensão psicológica que marca mais acentuadamente a primeira parte do romance; a cidade passa a ganhar protagonismo e, curiosamente, é neste contexto que o destino de Beta sofre uma reviravolta da qual nem todos estaríamos à espera (eu não estava).

III

No tocante ao objecto da narrativa, fico-me por aqui, visto não pretender revelar em excesso, tanto mais tratar-se de uma publicação tão recente, que muitos ainda não terão tido oportunidade de ler, não sendo justo estragar-lhes o prazer da leitura.

Não posso, todavia, terminar este post sem chamar BAIÔA SEM DATA PARA MORRER, primeiro romance do mesmo escritor – publicado em 2022, mas que só tive o prazer de ler este ano e ao qual dediquei, neste espaço, o post de 15 do passado mês de Abril. Porquê? Pela simples razão de, enquanto lia "Morro", não conseguir deixar de o comparar a "Baiôa", mais concretamente, de reflectir nas semelhanças e diferenças entre ambos e – em perspectiva especulativa, entenda-se – no respectivo processo criativo (gostando imenso de ler e de escrever e transpondo muito da leitura para a escrita e vice-versa, um dos aspectos que sempre me suscita particular curiosidade é, justamente, esse).

A tal propósito, permito-me adiantar alguns tópicos.

O "Morro" exibe a excelente qualidade literária (já) evidenciada em "Baiôa" e partilha com ele diversos aspectos, sobretudo no tocante a certas temáticas, de que realço a da morte, a das (do valor das) relações interpessoais, enquanto elemento estruturante da vida, e (apesar destas) a da solidão.

Não uma solidão egoísta, maldisposta ou desistente, antes generosa, gentil e combativa, como o demonstra, desde logo e em especial,  a personalidade dos narradores (simultaneamente, protagonistas) de ambos os romances, num caso ("Baiôa), "um jovem professor em fuga, dependente do telemóvel e às turras com a vida e com a morte" – citação cuja fonte não revelo, lançando, em vez disso, um desafio à atenção dos leitores do "Morro" para que a identifiquem –, no outro caso ("Morro"), uma jovem também às turras com a vida e com a morte, pode dizer-se, e igualmente num processo de fuga.

Está isto longe de significar que esses narradores se sobreponham, confundam ou, muito menos, se imitem.

Ou seja, se existe, ou melhor, me parece existir, coincidência em certas temáticas e em determinadas características dos protagonistas (desses dois protagonistas), já o mesmo se não pode afirmar das suas vidas, por exemplo, das razões das suas fugas (aliás, em boa parte desconhecidas, no primeiro caso, contrariamente ao segundo) e da materialização destas (tão diversas quer na sua expressão, quer no final em que desaguam – este, aliás e curiosamente, não revelado no primeiro caso, explícito no segundo). 

Quer isto dizer que, pese embora as assinaladas coincidências, estamos perante enredos totalmente distintos, significando, assim, que a criatividade/originalidade do autor continua totalmente à solta e em alta, à semelhança do (já) demonstrado em "Baiôa".

Aventuro-me a ilustrar a diferença entre os dois romances nos seguintes moldes: "Baiôa" desenha-se como uma planície, já "Morro" se esculpe como paisagem acidentada, entre as alturas do morro e o leito do rio, lá em baixo. Curiosamente, esta imagem vai ao encontro da localização dos romances, o primeiro no Alentejo, o segundo na cidade do Porto, entre a Sé e o Douro. Todavia, a constatação de tal alteridade não se alicerça neste aspecto – aliás, ocorreu-me antes da tomada de consciência do mesmo –, antes tem a ver com os fios narrativos de um e outro dos livros e aquilo que estes sugerem no tocante ao respectivo processo criativo, pois, em "Baiôa", assiste-se a uma articulação pré-definida, de princípio/meio/fim, como se o autor tivesse todos estes aspectos pensados/estruturados à partida, enquanto em "Morro", ao menos a partir de certa altura, parece haver um improviso permanente sobre o próximo passo a dar, como se o destino da personagem principal – refiro-me à narradora – houvesse permanecido em aberto até (quase) ao final, acabando por ser influenciado pelo destino da outra personagem – a própria cidade –, que, aparecendo praticamente desde o início, vai tomando grandeza até determinar tal influência, num cruzamento de sucessivos acontecimentos, tão inesperados quanto insólitos e desafiadores, os quais, tal qual antes assinalei, impõem ao leitor uma corrida de página em página, até à revelação final (e é mesmo dizer, página final).

IV

Em suma, como já deve ter dado para perceber, considero "Morro" um excelente romance, pelo que – valha isso o que valer – recomendo vivamente a sua leitura. Mas, para os que (ainda) o não fizeram, permito-me recomendar, pela mesma razão, a leitura de "Baiôa", esse primeiro romance que tanto me cativou, desencadeando uma premente necessidade de continuar a ler Rui Couceiro.

 

Bertrand.pt - Morro da Pena Ventosa (autografado)






sexta-feira, 14 de junho de 2024

MARIA NINGUÉM (3): SURPREENDIDA POR UM ACHADO

a bem dizer, nem me lembro de como fui parar àquela cama, onde acordei bastante atordoada e com o corpo, aqui e ali, enfaixado em tiras brancas, presas com adesivos. por mais que puxasse pela cabeça, apenas me vinha à ideia um som, ti-nó-ni, ti-nó-ni, e a recordação longínqua de um alucinante desbobinar de degraus, como se tivessem vida própria. de resto, a minha vida apenas se manifestava pelas dores que, à medida que ficava mais desperta, me fustigavam sem sombra de consideração e destituídas de justificação de causa e, muito menos, de afinco. também não possuía noção exacta do sítio onde jazia esticada que nem um carapau congelado. a custo, rodei a cabeça e atinei a descobrir que se tratava de uma sequência de camas ocupadas por mulheres, de cujas bocas, volta e meia, se desprendiam suspiros, queixumes ou mesmo gritos. preparava-me para interrogar a da cama mais próxima, quando irrompeu pelo espaço um gajo de bata branca e auscultador pendurado ao pescoço, a modos de colar, embora não condizente com o brinco que lhe pendia duma orelha, seguido de mais meia dúzia ou por aí – na verdade, eu ainda não estava em condições de acertar nas contas. apesar do meu estado de debilidade e transtorno, tomei nota de que o homem era bom como o milho, alto, aí a rondar os quarenta anos, corpo a deixar adivinhar músculos bem exercitados e não sei que outros atractivos, pois vi o meu devaneio interrompido, quando ele se me dirigiu e, com um ar entre o altivo e o trocista, e para gáudio dos que o acompanhavam, disse: "então, tu és aquela que se andou a atirar das escadas abaixo e a ficar com a cabeça quase debaixo da roda dum autocarro? que ideia foi a tua?", enquanto me segurava o pulso e dava uma vista de olhos aos valores revelados por uma maquineta presa a um dos meus braços. sinceramente, não entendi nada do que ele dizia, embora tivesse começado a suspeitar que se tratava de um médico, seguido dos seus aprendizes, e que aquele meu poiso seria uma qualquer enfermaria. de tão aparvalhada, nem abri boca, quando muito os olhos, num arregalar de espanto, e ele prosseguiu, "como te chamas?", e eu nada, impossibilitada de comunicar, sabe-se lá porquê. ele insistiu, e eu acabei por responder, "não sei", não porque não soubesse, mas para ganhar tempo, até conseguir perceber o que me seria mais vantajoso, se revelar ou ocultar a minha identidade, pois, na realidade, não me lembrava do acontecido e de eventuais responsabilidades que pudesse carregar – se a minha vida de merda me servira para alguma coisa, fora justamente para pressentir o perigo e desencadear uma boa capacidade de defesa, de preferência, por antecipação. 

enfim, não importando os pormenores, passo a resumir: nos dias seguintes, insisti na versão amnésia, ao mesmo tempo que conquistava a compaixão da minha vizinha de cama, pela qual vim a saber o ocorrido, o que me proporcionou algum sossego, afinal não tinha feito nada de censurável, limitara-me a cair por umas escadas abaixo duas vezes seguidas, mas, que eu soubesse, cair não constituía crime. mesmo assim, quando, ao fim de quinze dias, tive alta, já devidamente esclarecida e adequadamente tratada, mantive-me na afirmação do esquecimento da identidade. entregaram-me um endereço dum qualquer abrigo da segurança social ou dalguma ong, não percebi bem, enfiaram-me uma nota de vinte e outra de dez euros nas mãos e mandaram-me embora.

pronta para a vida, com trinta euros e uma morada à disposição, nem sabia por onde reiniciar. fui andando até ao metro mais próximo e, antes de embarcar, enfiei-me num café, pedi um galão e uma sanduíche de fiambre, ocupei uma mesa junto ao vidro embaciado de sujidade da montra e saboreei cada golo e cada pedaço como se festejasse a minha ressurreição e a minha liberdade. depois, veio-me um calor às faces – não, não era da menopausa, eu ainda nem aos vinte e cinco anos chegara –, e caí na realidade: que faria agora? não podia regressar ao castelo do drácula, onde exercera de empregada de limpeza, com direito a um quartinho no sótão, não tinha ninguém a quem recorrer e, acima de tudo, não fazia tenção de me apresentar à instituição para onde a senhora do hospital, assistente social ou lá como se chama, me encaminhara, não, não confiava em instituições, bem me bastava ter passado por algumas, ainda menor, quando, devido à morte dos velhotes onde, anos atrás, o meu pai me pusera a trabalhar, fiquei só no mundo.

a bem da verdade, aquele calor nas faces era medo, mas habituara-me a desprezar o medo, pelo que rapidamente reagi, decidi galgar um patamar, passar do desprezo ao desafio, desafiar o medo.

e foi assim que dei início a uma nova etapa da minha vida, resolvi caminhar, apenas caminhar e ver o que acontecia, só que, desta vez, concentrei a atenção nos pés, as minhas pernas ainda estavam um pouco fracas e, tão cedo, não queria voltar a estatelar-me no chão.

encaminhei-me para um jardim e embrenhei-me na folhagem que ladeava uma alameda, por onde, àquela hora, não circulava muita gente. aliás, no momento em que aconteceu, não se via rigorosamente ninguém. fixos como levava os olhos no chão, apercebi-me de um súbito brilho a faiscar da base duns arbustos. curiosa, abaixei-me, afastei as ramagens e vi uma peça de metal que sobressaía duma superfície rectangular preta. debrucei-me mais e apanhei o achado, uma pasta de cabedal, aliás, bem pesada. com atenção minuciosa, olhei em volta, onde continuava a circular ninguém. rapidamente, envolvi a pasta no casaco que levava pendurado num braço e afastei-me dali o mais depressa que pude, agora com os olhos bem vivos em redor, substituído o medo de cair pelo de que me caíssem em cima. mas não, nem vivalma. quase corri para o metro, comprei um bilhete e fui até ao fim da linha, nem sabia que sítio era aquele. calhou ser um bairro agradável, embora modesto. caminhei até à zona mais central, entrei numa pastelaria e encaminhei-me directamente para a casa de banho. com o coração aos saltos, abri a pasta, ansiosa por descobrir que peso era aquele que carregava. senti-me tonta quando deparei com a quantidade de rolos de notas de cem euros oferecidos à minha vista – e à minha ganância, acabada de revelar. voltei a fechar a pasta, dissimulei-a o melhor possível no interior do casaco e saí dali, na pressa desvairada de encontrar um local seguro. ao fim de curta deambulação, deparei com um hotel de três estrelas, onde, apesar do olhar renitente do empregado, fui aceite, após ter pago antecipadamente duas noites, com recurso a notas que retirei do bolso das calças (depois de, ainda na casa de banho da pastelaria, as ter surripiado ao interior da mala).

a insegurança que sentia em nada se comparava à excitação, às gloriosas e nunca antes sonhadas perspectivas que aquele achado acabava de me oferecer. e não, não experimentei qualquer incómodo moral, percebi imediatamente que aquela pasta de notas ali tão manhosamente escondida só podia provir de algo ilícito e, como tal, mais valia estar nas minhas inocentes mãos, de resto tão penalizadas por uma vida miserável, do que retornarem à posse de quem, sabe-se lá por que aperto, ali a escondera, certamente com a intenção de voltar para a reaver. 



P.S. : este texto é continuação do (post) de 4 de Março p.p. e, com sorte, irá prosseguir.



segunda-feira, 15 de abril de 2024

BAIÔA SEM DATA PARA MORRER


«O meu pai odiava o lugar, os meus avós tinham morrido na capital, onde moravam há décadas, e o telhado da casa da aldeia caíra mais ou menos na mesma altura, segundo a minha mãe fruto de alinhamento cósmico, ou por vontade de deus, porque isto anda tudo ligado, porque nós não somos nada.» 

Livros, o que seria de mim sem livros! Pois é, fazem parte, aliás essencial, da minha alimentação e, de vez em quando, não resisto a falar sobre algum, forma de partilha ou convite. É o caso deste, mencionado em título e ao qual pertence a transcrição acabada de fazer, em jeito de epígrafe, da autoria de Rui Couceiro.


Habitava em mim a vaga reminiscência do (intrigante) título, creio que por via  de entrevista captada em algum programa de rádio ou em qualquer plataforma da Internet, não sei bem, mas algo ouvi que germinou em curiosidade latente. O tempo foi passando e ele a esvair-se, todavia sem deixar de latejar no incansável recanto da minha mente onde se aloja a avidez por novas leituras, pela descoberta de novos escritores.


Até que um dia, deparei-me com a página do Autor numa rede social (Facebook) e, hélas!, de forma por sinal bem engenhosa e divertida, ele fazia referência à sua dita obra. Ficou logo ali decidida a minha próxima aquisição literária, o que rapidamente se concretizou e, daí à leitura, foi apenas o (breve) compasso de espera para acabar de ler o livro então em curso.


Explicado como lá cheguei, agora, sim, vou falar do livro, BAIÔA, assim abreviado, por simplificação mas não só – também como homenagem ao personagem portador desse nome, tão rico de humanidade quanto parco de palavras.


Tomadas as primeiras páginas, deparei-me com um narrador, personagem-narrador, que me deu a conhecer uma aldeia perdida na fundura alentejana, de seu (sugestivo) nome Gorda-e-Feia – pobre dela, não lhe bastava a gordura, ainda tinha de acumular a feiura, que ele há sortes mesmo más!, foi o que pensei de imediato.


Uma aldeia abandonada a meia dúzia de sobreviventes de vidas idas, velhos, portanto, cada um com suas idiossincrasias, cujo ponto de encontro/reunião social é a taberna de um deles, que, todavia, não exerce apenas de taberneiro, acumulando com outra actividade, à qual todos acabam sempre por precisar de recorrer, mas que não vou revelar, pois isso não se faz, não se desvenda o mistério para frustar o prazer da descoberta, ou seja e como agora se diz, nada de fazer spoiler.


Pois bem, é precisamente à porta dessa taberna que o nosso narrador (e, para mim, personagem principal, sem pretender retirar importância aos restantes), vai ter, quando, num ímpeto de determinação em abandonar uma vida de que apenas nos revela o essencial – mas sobre a qual largamente me permiti divagar, não deixando de parte a suspeita de um desgosto amoroso... –, decide mudar-se para a dita aldeia, ele, homem jovem, no início dos trinta, único jovem, no meio da tal meia dúzia de velhos e velhas.


Na verdade, tratou-se de um ímpeto, de agarrar uma oportunidade de mudança, de resto, tão radical quanto inusitada, surgida duma circunstância imprevisível, mas que constitui o cerne da questão, quero dizer, da história, o ponto de partida para o que vai desenrolar-se perante o nosso olhar, surpreso, atónito, comovido, divertido e mais uns quantos estados de alma que a narrativa dos estranhos fenómenos que por ali sucedem nos vai despertando.


A circunstância foi que um dos moradores da aldeia, o velho Baiôa (nem imaginava que tal fosse nome de gente, aliás, continuo sem saber, mas isso não interessa nada), ciente de um segredo partilhado por um tal Dr. Bártolo – o médico da aldeia e investigador de assuntos entre o científico e o, por assim dizer, esotérico –, vai empreender, com enorme determinação e empenho e a expensas suas, um plano de renovação das casas da aldeia, derreadas de degradação à medida do abandono (emigração e morte) dos seus moradores, plano esse, com o qual visa garantir o chamamento ao lugar de novos habitantes, sobretudo habitantes novos, que garantam a permanência no mapa da vida da agora exausta, despovoada e semi-morta, enfim, em vias de extinção, Gorda-e-Feia (e eu logo de imaginá-la transformada em Esbelta-e-Bela, mas isto sou eu, não é do livro nem estava nos planos de Baiôa, pois o nome da aldeia sempre seria o seu traço de identidade e, como tal, nem lhe passaria pela cabeça mudá-lo, tenho a certeza).


A primeira casa reconstruída por Baiôa calhou ser a da família do nosso narrador, há muito estabelecida em Lisboa, e, comunicada a notícia, foi recebida com gratidão e entusiasmo pela mãe e acolhida por ele com a tal determinação (desespero?) de necessária mudança, quanto mais não fosse, para sair da zona de desconforto que constituía a sua vida de professor-aqui-e-ali e, sobretudo, de agarrado às redes sociais em elevado grau de dependência, vivendo através de fotografias, posts e pertinentes reacções – e mais não nos conta, mas somos livres de imaginar.


Estranhamente, a diferença etária e cultural entre o jovem recém-chegado e os poucos habitantes da aldeia, superado o choque inicial (da mudez com que que é recebido à porta da taberna), não constitui obstáculo a que se estabeleça uma aproximação e  amigável relacionamento entre eles. Na verdade, à semelhança dos outros, ele passa a frequentar o ponto de encontro, a taberna, vai conhecendo a vida de cada um e, sobretudo, torna-se o ajudante cúmplice e esforçado de Baiôa na reconstrução das casas destroçadas. A relação entre ambos vai-se estreitando, ao ponto de Baiôa, aliás homem de poucas palavras – excepto com as árvores –, o ter posto a par do segredo do Dr. Bártolo, o tal segredo que está na origem daquela sua necessidade e urgência de resgatar Gorda-e-Feia para a vida, já não digo para a elegância e a beleza, apesar de que a reconstrução das casas não deixará de dar um contributo nesse sentido – digo eu, aqui a falar sozinha.


Enquanto nos põe a par desta sua experiência, o narrador revela-nos, a pouco e pouco, as vidas dos parcos habitantes da aldeia e, não menos importante, aliás, central em todo o contexto, acaba por nos desvendar o segredo, o tal segredo que comanda toda a actuação de Baiôa e, em última análise, a sua própria ida para a aldeia, pois se a casa da família não lhe tivesse sido devolvida completamente reconstruída e pronta a habitar, ainda hoje ele andaria a carregar as malas de terra em terra, no exercício da docência, e a viver através de fotografias, palavras e emojis publicados nas redes sociais, sempre num afã crescente e febril necessidade de preenchimento de profunda insatisfação e árido vazio – imagino eu, a menos que tivesse sido consumido por um Burnout, que também sucede em tais casos, e seria deveras lamentável, pois nos privaria da fantástica história que trouxe até nós.


Ora, aquela nova vida assentou-lhe tão bem, que é delicioso ouvir a sua narrativa do que se passou e passa em Gorda-e-Feia, sobretudo pela calma, ponderação, generosidade, elegância, esmero e, não menos importante, o sentido do tempo e o sentido de humor com que o faz. A ligação entre o real e o imaginário, o genuíno e o simbólico, o passado e o presente, a conviverem em harmonia deliciosa. E, se assim o ouvimos com deleite, é também com deleite que o lemos, pois que, afinal, de leitura se trata, e o livro está muito bem escrito.


Aqui chegada, parece-me dispensável concluir o óbvio, ou seja: adorei ler BAIÔA, um livro deveras bem escrito, bem desenhado e construído, que, num jeito mágico e irónico e com um timing perfeito, nos fala de temáticas caras, nomeadamente, em termos humanos (velhice, abandono, solidariedade...), sociológicos (desertificação, mudança de paradigmas de vida...) e, inclusivamente, políticos (promessas e aproveitamentos eleitorais...).


Recomendo, pois, vivamente, a leitura deste romance e, já agora, anuncio, entusiasmada, que o próximo romance do Autor virá ter connosco dentro de pouco tempo.


Seguir o Autor nas redes sociais é, igualmente, algo que aconselho, pela valia das notícias editoriais que vai partilhando – é Editor da @contrapontoeditores – , e, em geral, das suas publicações, caracterizadas pelo bom gosto e bom senso. De resto – e abro um parêntesis para o referir – é por encontros como este que permaneço nas redes sociais, apesar da miséria muita que por lá também pulula.












segunda-feira, 4 de março de 2024

MARIA NINGUÉM (2): TRAÍDA POR TROPEÇÕES


conforme desabafei no relato anterior, após a segunda queda, ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. acontece que chamaram o INEM, não que me tivesse apercebido, só acordei na barriga da ambulância, por sinal, bem estranha, uma cara (ou seriam duas?) debruçada sobre mim a medir-me ou apalpar-me não sei o quê, fios pendurados de tubos espaciais e máquinas uivantes. senti-me conduzida ao ventre da minha mãe, como se alguma vez tivesse conservado memória de por lá ter balançado os meses do costume, talvez menos, creio haver sido expulsa em modo prematura. desse local, evoluí para recordações outras, não pelo seu mérito, apenas por razão e fundamento do meu caminho pela vida:

lá em casa, éramos menos que muitos, apenas três. caso a minha mãe não tivesse morrido logo depois de me abandonar ao mundo (e talvez por isso – nunca ninguém se dignou informar-me), havíamos de somar muito para cima desse número, que eu bem via como se povoavam de múltiplos seres as casas da vizinhança, bairro malcheiroso e barulhento onde passei os primeiros anos desta minha existência. a avó, mãe de meu pai, este e eu, três gafanhotos a tropeçar na escuridão daquele tugúrio que, de vantagem em relação aos dos vizinhos, só possuía a de ser maior, não por dispor de mais espaço, antes devido à redução de ocupantes. mesmo assim, tropeçávamos uns nos outros. certas vezes, era a mão do meu pai que tropeçava na minha cara, quem diz cara, diz rabo ou diz cabeça, braço ou onde calhasse. outras vezes, era a garrafa, já tão menos de metade que até fazia sede, a tropeçar no gargalo dele, do pai. a avó só tropeçava de olhos, batiam na minha figura ou na do outro e estremeciam, não sei se de pena, desgosto, indignação, desdém ou de que porra. era muito curta de idade para saber interpretar sinais, de resto não possuía estudos de psicologia, nem de psicologia, nem de quase nada, que aquilo da escola primária exigia motivação e a minha era só uma, divagar.

sempre me perdi e continuo a perder-me por divagar, divagar por realidades várias, e não pensem que não incluem livros, que, se não são livros lidos, são livros pensados e costurados por mim, com princípio, meio e fim, embora nem sempre contenham uma história ao gosto de toda a gente – a bem dizer, nem toda nem nenhuma, pois ninguém os lê. mas eu aprendi a ler, fiz até muita questão nisso, nisso e na geografia, ai!, como eu gostava de percorrer o globo terrestre com os meus pequenos dedos encardidos, unhas negras de desafiar a terra e as cascas das árvores e tudo o que me despertasse a curiosidade de saber o que se passava lá por baixo, lá por dentro. ainda bem que não dispunha de tesouras ou facas ao alcance da mão, nisso (e não só) a minha avó mostrou-se deveras cuidadosa, talvez visse para além da realidade aparente, talvez fosse essa a função do tropeçar dos seus olhos vagabundos. ah!, o que quero dizer, é que, caso tivesse esse tipo de instrumentos à mão, talvez experimentasse num gato ou num cão da vizinhança, não por maldade de ferir ou de matar, apenas por sede de conhecimento. eu tinha de saber por experiência, motivo por que a escola não se me deu muito bem.

também, ainda que desse, não teria mudado nada, pois o meu pai, nem dez anos ainda eu alcançara, pensou, deliberou e executou, pegou em mim e vendeu-me em contrabando, melhor, alugou-me, por uma quantia mensal mais o ganho de se ver livre de mim. nessa altura, quando parti, o tropeço dos olhos da avó caiu para dentro dos meus e fiquei com a impressão de que uma parte deles me rolou para dentro, onde permaneceu até à eternidade, que é onde ela já habita há uns anos, desde o enfarte fulminante, posto que a minha memória se encarrega de zelar por isso. 

quanto ao outro, o meu pai, foi uma cirrose – desengane-se quem estava à espera de algo mais original – que o levou para os infernos onde se cruzam garrafas e chapadas, mulheres perdidas em partos prematuros e filhas menores alugadas por dez réis de mel coado, como dizia a avó, que esteja bem, lá onde a observo – fazendo de conta que  habita algum lugar para lá do meu interior, onde a guardo como o lobo mau guardou a avó da capuchinho vermelho, mas, obviamente, com diversa motivação e contexto. ele, o meu pai, okay, estou para aqui a falar nele, mas isso não significa eternidade, esta acontece quando (enquanto) a memória guarda, zela e cuida. quanto a ele, a memória é mero pretexto para mais um destes livros, no caso, mero folheto, construído do nada. ah, pois, o facto de lerem isto não equivale a verdade, quem vos disse que não se trata, apenas, do cruzamento de palavras a passar-me – a passar-vos – pelos neurónios?

de resto, a minha infância, não posso dizer que tenha sido infeliz ou feliz, não por falta de recordações, mas porque as infâncias não são tempo nem lugar de análise aprofundada e valorativa dos acontecidos: estes vivem-se e é tudo – tudo, tudo, não digo, pois o que acontece, acontecido está, integra-se, entranha-se e não há maneira de desacontecer. mais ou menos como o amor, só mais ou menos, porque este, bem vistas as coisas, pode acabar por desacontecer, basta pensar que a dor, uma grande dor, pode bem matar um amor, mesmo um amor enorme (ou não?).

já agora, só para esclarecer e evitar confusões – estou mesmo a ver que já me imagináveis jovem prostituta –, aqueles onde o meu pai me pôs de alugada eram uma família de velhos, velhos abandonados como convém, que os novos andam muito entretidos a esquecer que um dia – com sorte ou azar, consoante – também serão velhos. eram uma família de um homem e uma mulher, casados. apesar de muito ricos, tratavam-me bem e não queriam que passasse fome, metia-lhes impressão a minha caixa de ossos e o rosto esquálido. mas depois morreram e eu, bem, tive de ficar por minha conta, mas, a bem dizer, até aí, também tinha estado mais ou menos por minha conta, apenas que menos alimentada e com os olhos da minha avó, enquanto existiram, a tropeçar, atentamente, nos meus.

só muito mais tarde fui parar àquela outra casa onde, certo dia, me esparramei pelas escadas abaixo. casa, é modo de dizer, aquilo era um casarão, mais parecia um castelo... do Drácula. 




P.S. : este texto é continuação do (post) imediatamente anterior e, com sorte, irá prosseguir.