quarta-feira, 23 de abril de 2025

AUTOBIOGRAFIA: FUNDAMENTO


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Se tal imagem não constituiu a verdadeira recordação inicial, então qual teria sido a recordação inicial? Teria sido de mim (sim, até àquela altura, não creio ter-me ainda reconhecido enquanto eu)?

Muito mais tarde, ao longo do caminho da vida, ocasionalmente, sobretudo antes de adormecer, lançava-me à procura da primeira recordação e da seguinte e da seguinte, no obsessivo intuito de surpreender uma ordem capaz de me explicar ou organizar, como se carecesse de referências seguras para me sentir em harmonia e como se o controlo, fosse lá do que fosse, dependesse disso, precisamente disso, como se o caos não pudesse servir-lhe de fundamento.

Curiosamente, também me comportava assim em relação às coisas, necessitava de organização à volta, tudo nos seus devidos sítios, tal qual se isso condicionasse a possibilidade de (auto)domínio e libertação.

Acontece que as tentativas de organização dos factos da vida se perdiam, sistematicamente, no prelúdio de sonos agitados, como quem, partindo sempre do mesmo início, não consegue atingir um ponto final, sequer um ponto e vírgula, perdendo-se em abruptos parágrafos, na impossibilidade de estabelecer escalas intermédias, excepto uns quantos parêntesis espantados, talvez mesmo desconexos.

Quanto às coisas, algo de semelhante sucedia, nunca atingindo o ponto de arrumação definitivo, aqui pela entrega à divagação, quando não à preguiça, do (re)começo ou do seguimento, talvez porque o critério e o grau de exaustão requeridos, ou melhor, auto-impostos, eram de tal maneira exigentes que os esforços se pereciam em adiamentos sucessivos.

Tudo isto gerava-me (do mesmo modo que era gerado por?) uma ansiedade permanente e uma sensação de desordem que me manietava a liberdade de acção, aliás, de voar e de me sentir preparada para o último voo (ou mergulho, vá-se lá saber se a morte é voo ou mergulho, elevação ou descida!). Ou a isso, a esse adiamento repetido e angustiadamente sabido inacabado, servia de esfarrapada desculpa.

Os adiamentos formavam rios caudalosos, ramificados em afluentes vários, até que decidi escrever-me, talvez assim conseguisse avançar com a organização das memórias, talvez com esta chegasse a libertar-me das coisas, sobretudo da prisão das coisas – sim, as coisas funcionam como uma espécie de carcereiros; as memórias, ou melhor, as emoções guardadas (ou inventadas) nas memórias, quanto a estas não restam quaisquer dúvidas da sua natureza de carcereiras.

Impunha-se domesticá-las! Que melhor forma do que começar por conhecê-las, descrevê-las, tentativa de organização do caos?

Lancei mãos à obra, pela terceira ou quarta vez (em décadas)…
(...)




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