terça-feira, 10 de agosto de 2021

O ÚLTIMO VOO DA MACACA


no último ano da faculdade, vivi numa residência universitária, gerida por freiras à paisana, ou seja, que não usavam hábito. não frequentava a capela e decorava o meu quarto (privativo) com cartazes de minha autoria, habitados por figuras de amantes enlaçados em beijos e de frases do tipo, vale mais acreditar no diabo do que em deus, pois do diabo nada há a esperar e de deus nada há a receber, no que era, sem dúvida, uma manifestação tardia de provocação adolescente, apenas compreensível pela razão de ter desperdiçado a adolescência ensimesmada em tão profundas quanto deprimentes querelas existenciais, que apenas me levaram a conclusões do tipo da condensada naquela asserção, enquanto deixava passar a florescência própria dessa fase da vida, tão irrepetível quanto qualquer outra, mas com uma perda talvez superior ao desperdício de qualquer outra.

nada disto interessa àquilo de que me proponho falar, excepto pelo facto de ter sido nesse contexto que conheci a macaca, outra das residentes no citado local. curiosamente, não me recordo do nome dela, soa-me vagamente helena, mas sem certeza. macaca era a alcunha atribuída por outra nossa companheira de habitação, a j., de que me tornei grande amiga (anos mais tarde vim a ser madrinha de um dos seus filhos). a j. era muito viva, simpática e engraçada; atribuía estas alcunhas por brincadeira e sem intuitos ofensivos. a mim, chamava-me buda, talvez devido aos meus olhos achinesados e lábios carnudos, bem como ao meu forte interesse pelo oriente longínquo.

a macaca era madeirense e frequentava um curso de letras; aspecto frágil, magra e não muito alta, de proporções harmoniosas, do seu sorriso irradiava um brilho dourado, talvez porque o dourado predominava no seu rosto de feições perfeitas, um pouco asiáticas por virtude dos olhos rasgados e dos pómulos salientes: dourado era o cabelo, o tom da pele e os olhos, estes cor de mel. era discreta e simpática.

mesmo sem sermos especialmente próximas, a dada altura, a macaca contou-me do seu mundo interior, um mundo de negrume, tanto mais negro quanto o flagrante contraste com a irradiação luminosa da sua miúda pessoa. em aparente serenidade e sempre sem perder o sorriso, disse-me da sua família, pai, mãe e irmãos (não recordo quantos, mais do que um) e da doença de que, à excepção da mãe e justamente por herança paterna, todos sofriam, doença mental incapacitante e incurável (cujo nome não me lembro se referiu). ouvi-a atentamente, como sempre gostei de ouvir as pessoas, devo ter-lhe endereçado algumas perguntas e frases animadoras, como sempre tive por hábito fazer, mas nada em pormenor me restou na memória, excepto a percepção nítida (e compadecida) de que a vida da macaca estava marcada por um feroz receio, sem dúvida com a marca das maldições: (vir a) sofrer da doença paterna, que já pendia sobre os inocentes irmãos.

aquilo inquietou-me, mexeu-me por dentro ao ponto de permanecer como uma das inúmeras memórias empáticas que acumulo.

o tempo decorreu, acabámos os cursos, deixámos a residência universitária, cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais soube notícias dela.

não muitos anos mais tarde, em conversa com a j., talvez rememorando aqueles tempos, perguntei-lhe se sabia alguma coisa da macaca. respondeu-me: "suicidou-se, atirou-se dum quinto andar da avenida cinco de outubro". gelei de desgosto, talvez não tanto por aquela morte, mas pelo profundo sofrimento que à mesma tinha conduzido como único caminho de libertação.

ao longo da vida, este caso, como tantos outros, veio-me ocasionalmente à memória, nos últimos tempos com uma insistência maior, que me reclamou a necessidade de o relatar. talvez uma homenagem à gentil macaca, cujo sofrimento e, sobretudo, a elegância com que dele me fez testemunha, nunca consegui esquecer. e, sem dúvida, uma homenagem à coragem do seu acto final, o último voo.






 

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