OU
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
DA LEITURA À GUERRA NA UCRÂNIA
quarta-feira, 13 de julho de 2022
A CLEPSIDRA: TEMPO DE DESCONTAR O TEMPO
Chega um momento em que, de forma mais ou menos súbita (e cortante), tomas consciência de que já não é tempo de contar o tempo, mas antes de o descontar. Sei que parece um lugar comum, e certamente o será para quem ainda não foi atingido por esta banal realidade; todavia, para quem o foi, a questão reveste-se de contornos subtis, embora gritantes, e induz reflexão e comparações que, até então, não ocorreriam (simplesmente, não poderiam ter ocorrido).
Por exemplo, compreendes a essência da canção Avec le temps e o porquê do fascínio que, desde jovem, exerceu sobre ti (e associas a recordação dos filmes do Ingmar Bergman, à cabeça, Morangos Silvestres, também vistos e pressentidos com tanta acuidade, ainda antes do tempo…). Mais curioso, pensas que o tempo ido é como os teus mortos, os entes queridos que já partiram, quero dizer, morreram.
Não pretendo ser confusa, passo a explicar ou, pelo menos, a ensaiar uma tentativa de explicação: aquela frase que ainda ontem pronunciavas a propósito de tantos episódios da tua era passada, a frase, parece que foi ontem, deixa de fazer sentido. Nada parece que foi ontem, nem a infância, nem a adolescência, nem o tempo dos primeiros amores ou dos últimos (sim, porque agora sabes que foram os últimos, embora também saibas que nada é definitivo, tudo se transforma e, curiosa e paradoxalmente, tudo permanece em aberto…); nem o que aconteceu, sei lá!, nos anos ou meses mais recentes parece que foi ontem ou sequer anteontem. Apenas foi e a memória do que foi esbate-se de cada vez que te bate à porta (ou lhe bates à porta) e deixas de distinguir a nitidez da imagem, a clareza dos sons e inclusive, talvez, o âmago dos sentimentos, último bastião de resistência. Mesmo que pretendas desfiar a linha da tua vida, organizar arquivos, fazer balanços, nem que seja apenas por um desejo (ou obsessão?) de limpeza – não para concluíres saldo, não vale a pena apurar o saldo do passado, precisamente porque o passado já se cumpriu e não se pode mudar –, facilmente perdes o fio da meada, derivas por caminhos paralelos ou não tanto que, aliás, a vida nada tem de linear, só na tua cabeça à procura de ordem, tentativa de organizar o caos, de preparar o momento para que a clepsidra desconta, mais ou menos apressadamente (consoante o cansaço da tua espera). É aí que entra a canção citada, porque, na verdade, Avec le temps, va, tout s’en va…
E associas os teus mortos, os teus mortos que não podes dizer que morreram parece que foi ontem. Não foi ontem, foi quando foi e, tal como com o tempo, a princípio, quando ainda jaziam à vista, estendeste a tua mão para o alto, os dedos prolongados em frente e tiveste a sensação de que esses dedos (quase) tocavam os etéreos dedos deles, embora sabendo que pela última vez. Até idealizaste a cena do tecto da Capela Sistina, aquela em que o dedo de Deus se estende em direcção ao de Adão; só que, neste caso, pela mão de Michelangelo, para a eternidade, enquanto no teu caso – do (ansiado) toque entre a ponta dos teus dedos e a dos teus mortos –, tal contacto, pura idealização (ilusão sabida ilusão), se desvanece e, no momento seguinte, já não é possível, porque os teus dedos ficaram no mesmo lugar, esticados de meter dó, enquanto os deles, dos teus mortos, deslizavam para o desconhecido ou para lugar nenhum, à velocidade dos fenómenos espaciais.
E, à medida que o tempo passa, e muito contra tua vontade e com muita raiva tua, deixas de lhes recordar as feições, as feições dos teus mortos, não mais ouves o canto das suas vozes, das suas gargalhadas e dos seus choros, e os episódios que viveste com eles, bons ou maus – não há vidas perfeitas! – diminuem no rigor dos contornos. Talvez apenas permaneça a memória dos sentimentos ou, tão só, uma névoa dessa memória. O mesmo sucede com o teu tempo ido, mas nem isso te impede de, embora com estranheza e sentimento de culpa (ou algo semelhante), começares a senti-los longe, muito longe de ti, assim como longe está a criança e tudo o mais que foste, em tempos que não mais parece que foram ontem.
Em suma, as memórias remotas do tempo e das pessoas que te morreram e já não parece que foi/foram ontem permanecem, mas acomodadas na categoria das memórias da memória, uma outra forma ou um outro nível de identidade e de pertença, não sei bem a quê. Também não interessa saber. As coisas são como são e ter consciência delas, por duro que possa parecer, é melhor do que não ter, ao menos para quem não aprecia enganos, sobretudo para quem não aprecia auto-enganos.
Tudo isto para dizer que decidi deixar de ter o cabelo castanho claro (um pouco mais claro do que o seu natural), finalmente outorguei liberdade aos meus cabelos brancos. Ainda vai em poucos centímetros, não dá para ver se são muitos ou poucos, com distribuição homogénea ou não, logo se vê. Obviamente sei que vou parecer mais velha, mas que interessa o parecer quando comparado com o ser! E o ser, o que é, é que me tenho deixado fascinar pela clepsidra, plim, plim, plim, a água a pingar inexoravelmente e eu a pensar nos projectos que se acumulam e para os quais não vislumbro horizonte de realização útil. Who cares?, plim, plim, plim, Avec le temps, Morangos Silvestres…, os dedos a deixar de se tocar, tretas, mas tretas que não podia deixar passar em vão, afinal sempre fui dada a reflexões e a (des)organizar as ideias, proporciona-me um certo conforto, isto de destralhar a mente (ou será o espírito?)…
Estou a desfrutar do processo de libertação dos cabelos brancos. De resto, se não gostar do efeito, posso sempre voltar a pintar…
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(imagem obtida em pesquisa Google) |
quarta-feira, 8 de junho de 2022
A ILHA DAS CABEÇAS ROLANTES
Soprava um vento agudo, daqueles que assobiam histórias por contar; forçava-a a caminhar inclinada para a frente, atrapalhando-a na pressa de chegar ao cais onde o barco aguardava, impaciente, pronto a largar (pois, quanto mais depressa empreendesse a travessia, mais depressa estaria de regresso, afastado da ilha, o inóspito e acanhado rochedo onde apenas morava um farol desactivado e a casa, abandonada, do faroleiro).
As ondas agitavam-se numa ameaça de crescendo, em perfeita sintonia com a força do vento e, tal como este, soavam alto, no que, para quase todos, constituía, sem sombra de dúvida, uma ordem de distância, mas, para ela, representava simples apelo. Sentia-se atraída por aquela música que, aos ouvidos dos restantes, não passava de monstruoso ruído, ameaça de forças misteriosas, sabia-se lá quais.
O capitão do barco incluía-se neste grupo, o de quase todos excepto ela, mas não tivera coragem de recusar o inusitado pedido, transportá-la, a ela e aos seus pertences, até à ilha maldita — como a haviam designado após o encerramento do farol e a partida do último faroleiro.
A meia dúzia de casas, agora em ruínas, que completara a paisagem havia sido progressivamente abandonada, talvez pelas razões que conduziram ao desfecho final, aquele de que ninguém pretendia ou ousava falar, talvez por sequer lhe conhecer os exactos contornos, talvez pelas tenebrosas suspeitas que não podiam eximir-se de conjecturar.
Mas agora, ali estava ela, ofegante, puxando um trólei que, diferentemente da restante carga, não mandara previamente entregar ao capitão do barco, talvez por conter os seus bens mais preciosos, aqueles cuja conservação lhe interessava garantir a todo o custo — pelo menos foi o que ele pensou.
Quando ela o contactara a pedir aquele serviço, ele tentara sondar as suas motivações para tão desajustada pretensão, mudar-se para tal e tão suspeito isolamento. Ela evadiu resposta, aliás, de modo não inteiramente contundente, mas definitivamente eficaz, deixando claro que ele não tinha nada com isso. Ele abordou a questão num outro ângulo, insinuando as sombras que pairavam sobre a ilha, dados os acontecimentos aí ocorridos, mas, às perguntas concretas dela, não foi capaz de apresentar factos definitivos, claros e comprovados, porque, verdadeiramente, nem ele nem ninguém os conhecia (o aparecimento sucessivo de cabeças rolando na praia do lado de cá, à medida do desaparecimento dos parcos habitantes da ilha, nunca fora esclarecido, tanto mais que, para além do resto, os correspondentes corpos nunca se encontraram…).
Chegados a este ponto, ela, no seu tom incisivo, confrontou-o com um surpreendente maço de notas e perguntou, de modo seco e definitivo, que não dava margem a mais hesitações ou tregiversações: — Responda-me, apenas, se está interessado em levar-me lá, a mim e a meia dúzia de caixotes que lhe serão entregues na véspera da partida, a efectuar depois de amanhã. Se não for o senhor, há-de ser outro.
Ele sabia-a despossuída de razão, mais ninguém estaria disposto a prestar aquele serviço, mas, perante o volume de notas exibido e, sobretudo, mais qualquer coisa, talvez a força hipnótica que exalava dos olhos dela, perfurando os seus, aceitou. Ainda a advertiu da necessidade de antecipada consulta das condições meteorológicas para o dia pretendido, pois, sob certas condições, aquele mar tornava-se deveras perigoso, mas ela recusou-se a aceitar adiamentos, enfiou-lhe as notas na mão, virou costas e, elevando um braço, disse: – Até depois de amanhã, sexta-feira, nessa altura dou-lhe o resto do dinheiro. Ele espantou-se, mas da sua boca aberta não saiu som que a conseguisse alcançar, estava já fora de vistas, mas esse som exprimiria a dúvida sobre que dinheiro a mais, afinal não era já imensamente desproporcionada a quantia entregue, elevadíssima para tão curta travessia!? Bem, afinal talvez ela soubesse que o preço daquele transporte não se media em simples questão de distância, talvez. Afinal, quem era aquela mulher? Porque quereria mudar-se para um sítio tão inóspito e sinistro, para mais, sozinha? Assim fluíram, inquietos, os pensamentos do capitão.
Quando, finalmente, chegou ao cais, ele aguardava-a, preocupado, sem saber muito bem como abordar a questão. Enquanto hesitava em carregar o trólei e ajudá-la a subir para o barco, que balançava perigosamente nas vagas rentes ao cais, disse-lhe: – A senhora há de desculpar, mas, como vê, o mar está muito agitado, repare só na altura das ondas, e a velocidade do vento não para de aumentar, pelo que a travessia não pode ser efectuada em condições de mínima segurança. Temos de adiar, aliás, a previsão para amanhã é bem mais favorável e, por certo, apenas um dia de espera não deverá causar-lhe grande transtorno.
Sem sequer uma hesitação, ela retirou novo maço de notas do bolso do impermeável azul eléctrico que a cobria do pescoço até à borda das botas de borracha, enfiou-lho na mão e disse: – Tem de ser hoje, não há alternativa, contrato é contrato, e pode crer que os riscos de incumprimento serão bem superiores aos do mau tempo…
Intrigado e dominado por um medo irracional, sugerido por esta ameaça incompreensível, ele resignou-se ás ordens dela e, em menos de dez minutos, entranharam-se naquela rota de alturas gigantescas e mergulhos profundos, antecipando, a cada segundo, o momento em que iriam ser depositados no fundo do mar, empurrados pelos destroços da frágil embarcação. Estes eram os receios dele, no meio do dantesco esforço por controlar os nervos e o barco, no cerne de tão funesto temporal. Quanto a ela, permanecia numa calma espantosa, apenas exibindo tensão na forma como agarrava as mãos a um varão metálico, tentando não ser arrastada borda fora.
Em menos de vinte minutos de tormenta, que a ele pareceram anos, acostaram no cais, quase desfeito, da ilha. Ele ancorou o barco conforme pode, ajudou-a a sair e, aliviado por ter conseguido chegar inteiro, mas revoltado perante a arbitrariedade das ordens dela, começou a descarregar os caixotes, sob a chuva torrencial que lhe deslizava para as costas, escorrida da gola do impermeável, já de si todo encharcado da travessia. Uma vez concluída a tarefa, deixou-se ficar, enquanto ela, encostada ao trólei, o observava com ar interrogativo. Como se condicionado por ordem irrecusável, ele ofereceu-se para a ajudar a transportar os pertences, ao que ela anuiu, com naturalidade e sem surpresa, como se isso fosse o mais natural deste mundo, como se ele acumulasse as funções de marinheiro com as de carregador. Ao fim de um tempo, estava tudo dentro da casa do faroleiro. Ela sorriu pela primeira vez — Que sorriso lindo, parece outra pessoa!, pensou ele, estranhamente conquistado — e convidou-o a tomar uma bebida quente, enquanto abria um dos caixotes e retirava duas canecas e, da mochila, um termos. Despejou café nas canecas e estendeu-lhe uma delas. Ele segurou-a, grato, e levou-a à boca, deixando-se inundar pelo aroma e quentura da bebida. Ela fez o mesmo, sentada num dos caixotes por abrir.
Terminado o café, ela levantou-se e encaminhou o homem até à saída. Desejou-lhe boa viagem de regresso e, sem mais, fechou a porta, deixando-o exposto ao temporal que continuava a violentar o exterior, enegrecendo o rochedo mais do que negro ele já era por natureza. O vento uivava por entre as frinchas das janelas e, através dos vidros enevoados, ela viu-o caminhar apressado para o barco, num desespero por sair dali — Óptimo!, pensou ela, enquanto sorria num esgar trocista e impiedoso.
Chegado ao barco, ele hesitou, mas acabou por entrar, sempre ficaria abrigado da chuva e do vento, mas não se atreveu a dar início à viagem de regresso, não enquanto aquelas condições permanecessem. Sabia que não estava seguro, o barco podia ser atirado contra os rochedos, mas a perspectiva de ser engolido pelo mar afigurou-se-lhe ainda mais aterradora, pelo que decidiu aguardar. Desconhecia que, duma das janelas da casa do faroleiro, um par de olhos frios e impacientes o observavam, desejosos de o verem fora dali, como se o que quer que ali tivessem ido fazer requeresse a mais pura solidão ou não pudesse de todo ser observado por testemunhas imprevistas (e indesejadas).
Entretanto, uma escuridão maior foi-se instalando, à medida do avanço das horas, o vento foi amainando, a chuva recolheu às nuvens e as ondas, se bem que agitadas, foram-se acalmando. O marinheiro aventurou-se, finalmente, a regressar, não sem lançar um olhar derradeiro à casa do faroleiro, que mal se divisava, às escuras. Então, viu uma réstia de luz. Seguindo-lhe o rasto ascendente, deparou com o topo do farol, o farol desactivado que voltara a acender-se sobre o mar à volta. Sentiu uma pressa ainda maior de zarpar dali. O motor do barco roncou na sua potência máxima.
(Caríssim@s leitores,
Se passarem por cá e quiserem saber o que se passou a seguir, por exemplo, se o marinheiro chegou são e salvo, por favor deixem comentário nesse sentido... 😉)