pronto, havia de ser logo hoje, ainda nem madrugada acabada de desadormecer. sem saber bem como, ignorante que sou dos aconteceres fortuitos (e mesmo dos outros, a bem da verdade o digo), esbardalhei-me pelas escadas abaixo, sem tempo nem cabeça para contar os degraus, só que eram muitos, não uma simples meia dúzia ou, vá lá, dez, mas uma escadaria em grande estilo, como as das mansões dos ricaços nos filmes de Hollywood.
estava a dizer, esbardalhei-me por ali abaixo, como carro sem travões em descida íngreme, as várias saliências do meu corpo (e não são poucas, magra que estou, qual espantalho) a embaterem a eito e com estrondo nas esquinas dos degraus, a cabeça, um ombro, o outro ombro, as ancas, as mãos enroladas numa impossibilidade de defesa, os pés torcidos, um sapato descascado a perder-se pelo caminho abrupto, e, num ápice que durou décadas de eternidade, eis-me cá em baixo, completamente esbardalhada, já disse, mas não me canso de repetir, que isto das histórias de desgraça não são nada se não se repetirem até à exaustão.
acabada de aterrar, encontrei os meus olhos fechados, os olhos que tenho negros, da cor de um poço sem fundo, do tamanho daquele onde acabara por me deixar engolir. a boca estava meio distorcida, creio que a tentar recuperar do espanto, mas talvez fosse a tentar evitar gritar, sim, porque, naquele momento, ali e então, eu desconhecia o meu estado geral, nem sequer se conseguiria reunir os meus pedaços e levantar-me para ir avaliar os estragos.
ai, os estragos!, minha aflição mor, a madeira impecável de cera, polimento e brilho, os degraus arreganhados para mim, a olharem-me de alto, e eu ainda sem saber se os ferira em algum lado, lhes arrancara uma lasca ou, embora menos grave, lhes sujara o esmero da limpeza, por exemplo manchando-os com o sangue que me escorria pelo nariz dorido, entretanto a ganhar forma de batata e – parecia-me, só pelo sentir – a entortar para um lado (pensei: com sorte é para o lado direito, talvez corrija o desvio para a esquerda, vindo de nascença ou, quem sabe, duma chapada perdida no tempo! surpreendi-me com este pensamento positivo, nada adequado a tão aflitiva situação, mas sou mesmo assim, quando menos se espera, quero dizer, quando menos o espero, lá estou eu a variar, a perder-me em pensamentos paralelos que tanto podem fazer sentido, como era este o caso, como revelar-se absolutamente abstrusos).
e não era apenas isso, também do canto da boca me deslizava um fio de sangue peganhento, a cheirar a metal, vindo não sei de que recôndito ponto interior. procederia do estômago, dos pulmões? esta suposição assustou-me um bom bocado, assim do tamanho de um grande cacho de bananas da madeira, pequeninas, mas muitas, muito juntas (imaginei).
levei a mão à boca e senti um buraco não previamente detectado, não me refiro ao formado pela boca aberta, mas um mais pequeno, a cova de um dente, pelo menos um dente, concluí sem dúvidas, mesmo na ausência de espelho que o confirmasse. e as minhas preocupações recrudesceram, que seria feito do dito pedaço de marfim, é disso que são os dentes, certo?, ter-se-ia enfiado no primor da escadaria, rasgando-lhe o esplendoroso madeirame?
continuava sem saber se poderia voltar a reunir os meus pedaços soltos apenas ligados pela dor, uma dor todavia comum, espalhada por todo o lado, nuns sítios mais intensa do que noutros, é certo, mas ressoando em uníssono, em modo de campainha estrídula e, em alguns pontos, de chama acesa.
digo, estava eu ainda sem saber se… e, portanto, ignorando se voltaria a poder levantar-me e dei comigo, naquele decúbito de estendida-feita-quase-morta, a olhar para a escadaria, da base ao topo que mal conseguia alcançar, tal era a sua magnitude e imponência. os meus olhos ainda não estavam bem abertos, creio que algo inchara pelo lado de fora, das pálpebras e das olheiras, e os fez ficarem tão, mas tão pequenos, que não alcançavam o que eu pretendia me relatassem: os eventuais (quase certos, só por milagre não) estragos nas preciosas escadas.
então, insinuou-se-me este pensamento: se, quando comecei a descer a porra das escadas, as tivesse olhado com tanta atenção como agora, só que de cima para baixo e não de baixo para cima, de certeza que não me tinha deixado desabar por aí abaixo àquela velocidade furiosa que já se sabe. mas, como diz não sei quem, o que está feito, feito está. onde andaria eu com a cabeça ou, melhor dizendo, com os pés, quando me lancei naquele mergulho vertiginoso (credo, até dá para imaginar um empurrão prodigalizado por alguma força do mal, ele que as há, há, é como as bruxas)?
ouvi passos e assustei-me, quero dizer, assustada estava eu, o caso não era para menos, ainda não alcançara fazer o balanço dos estragos na porra da escadaria, com o devido respeito pela sua magnificência e pelo carinho e atenção com que sempre a tratara (sim, era eu a encarregada de zelar por sua excelência aquela puta, quero dizer, pela maravilhosa escadaria e, apesar de sempre me terem feito confusão as atenções que me eram exigidas para com a dita, como se não passasse de um local vocacionado para levar com os pés, o facto é que lhe dedicava um certo carinho).
adiante, ouvi passos, desviei os olhos do meu objecto de indagação e, a grande custo, elevei-os na vertical, onde pressentira umas sombras. e foi aí que dei com os olhos dele, muito arregalados e a espumarem de raiva. encolhi os meus pedaços soltos – ainda não estava certa de os conseguir reunir – e ouvi, vindas da caverna malcheirosa e cuspideira da sua boca desguarnecida de lábios (aquilo mais pareciam duas linhas desenhadas a esferográfica rollerpoint de tamanho 0,05 ou menos), ouvi, repito, as seguintes palavras, que senti como pedras arremessadas sobre o meu maltratado corpo: o que fazes aí, sua lerda, toca a mexer, ou achas que não há mais quem queira trabalhar?
nesse momento, a minha vida de merda reluziu-me num flash que mais parecia fogo de artifício, por qualquer razão, ou melhor, desrazão, deu-me uma enorme vontade de rir, ao que se juntou uma força vinda do fundo não sei de que poço, talvez aquele para onde eu acabara de ser sugada, levantei-me dum salto, mesmo sem perceber se algum pedaço do meu corpo ficou para trás (que importava isso!), obliterei o inventário dos danos da escadaria, fixei o homem-sem-lábios-e-já-agora-sem-coração e vociferei: vai para a grandessíssima puta que te pariu.
ele não estava à espera, espantou-se o maldito buraco da sua deslabiada boca muito aberta, esboçou o seu corpo fardado um avanço na minha direcção, enquanto eu (ou o que restava de mim) já avançava com quanta força tinha, o mesmo é dizer, a força da determinação, que da outra, a física, nem restos me assistiam, em direcção à saída.
sem olhar para traz – não por medo, mas por desprezo, o mais absoluto dos desprezos –, empurrei a porta e, na pressa de sair dali, esqueci-me que três degraus me separavam da rua. só tive tempo de desabafar, num desvalido sopro: que se fodam as escadas.
instantaneamente depois (passe a contradição, a existir), ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. por agora.
Relato de uma queda pelas escadas muito bem feito. Dá para sentirmos as dores. Onde está a continuação?
ResponderEliminarObrigada, Alexandra! Já continuou em mais dois posts e estou a escrever o quarto. Bjs (finalmente, consegui responder)
EliminarPor vezes é mesmo preciso "cair" para descobrir o sentido da vida, o que realmente é importante. Parabéns por mais este excelente texto
ResponderEliminarAna
ResponderEliminarObrigada, Ana! Bjs
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