domingo, 26 de janeiro de 2025

O INEFÁVEL SIGNIFICADO DE UM F

Em minha casa, há uma daquelas escadas de bambu frequentemente usadas como suporte de toalhas ou outra coisa qualquer.
Comprei-a porque sim, ou melhor, porque gosto, gosto de bambu, gosto do design da peça e gosto de a ter simplesmente encostada a uma parede, hoje uma, amanhã outra (pois é leve, ocupa pouco espaço e apraz-me variar a decoração).
Não a uso como toalheiro, aliás, não lhe destinei qualquer propósito definido, a não ser o de estar ali. É certo que, de vez em quando, me sirvo de um dos seus degraus para instalar qualquer coisa, por exemplo, uma peça de roupa à espera de melhor poiso, um boneco de natal a perseguir um fio de luzes coloridas que trepam da base ao topo, ou algo igualmente passageiro, tão transitório como, por exemplo, as estações do ano (quando existiam) ou um estado de espírito (estes existem e, tanto quanto suspeito, assim hão de continuar, ao menos os meus).
Há, todavia, dois habitantes – únicos e permanentes – da minha escada de bambu, a saber, um pequeno macaco castanho, feito de borracha maleável, suspenso do degrau mais alto, mercê do abraço dos seus bracinhos magros,  e uma letra de metal, um F espalmado e colorido de flores, presa por uma cordão à parte de cima duma das barras laterais, mais ou menos ao nível do macaco.

Abro um parêntesis, porque acabam de me assaltar dois pensamentos, aliás, uma recordação e uma dúvida: a primeira é do João, aí pelos cinco anos, a querer subir a escada, aventura que fui a tempo de impedir, com os inerentes benefícios para ambos (ele e a dita); a segunda, é sobre se a empregada se dá ao trabalho de a limpar, o que não tenho averiguado, mas devo fazer, pois, sendo de cor castanha clara, cor de cana, não dá para distinguir, à vista desarmada, se acumula ou não pó; impõe-se avançar para o teste do algodão, por assim dizer.

Prosseguindo, para chegar à razão deste texto, a saber: o significado daquela letra F, em que a frieza do metal contrasta com a calidez do desenho florido.
Comprei-a numa época em que, por vezes, sucumbia ao impulso consumista de adquirir certos objectos, não necessariamente pelo seu valor, mas por qualquer outro critério, maxime, a harmonia estética, a evocação de certas memórias ou o carácter lúdico (o macaco releva deste último).
Ora, a verdadeira razão daquele F não deixa de constituir um mistério. Não há dúvida de que é um bonito efe e que, de resto, corresponde à primeira letra de um dos meus nomes próprios. Mas esconde-se ali qualquer coisa, podendo ir de um desejo de Felicidade à formulação de um desabafo de acentuada zanga, que enuncio em inglês, para não abandalhar este blog; sim refiro-me ao Fuck, aliás tão celebrado na filmografia americana – fuck isto, fuck aquilo, tu ou aquele, esta fucking situação ou outra fucking coisa e um longo etc. de fucks/fuckings
Lamentavelmente, algo me leva a crer que é esta última a identidade escondida da minha letra F, por mais fucked que isso possa ser... ou parecer.

Se este não-assunto merecia um texto? É claro que não. Mas vou falar de quê, do estado do mundo, sobretudo depois da eleição dos fucking oligarcas americanos para o desgoverno do mundo? Da aplicação do conceito da matrioska enquanto método de dissimulação de roubo de trolleys por um fucking deputado dum fucking partido político (?), cujo lema é a limpeza do país e cuja obsessão é a criminalidade dos imigrantes? Da mais recente fucking idiota proposta do sr. Trump para recambiar os Palestinianos para a Jordânia e o Egipto?

Enfim, que se fuck this, também só lê quem quer, embora eu goste que leiam. Caso contrário que fucking idea justificaria o trabalho de o publicar?


  

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

MARIA NINGUÉM (5): (A)TRAÍDA POR UMA MACIEIRA


os cães acabaram por decidir o curso dos acontecimentos. tomados de uma impaciência crescente, puxavam violentamente as trelas, por entre latidos vigorosos, em tal nível de exigência e urgência que o afonso acabou por ceder.

aparentando certo desconforto, enfatizado por um encolher de ombros, olhou-me em modo de pedir desculpa e disse, "olha, tenho de os levar ao passeio nocturno, são muito indisciplinados e, quando atingem este grau de desatino, não consigo dar conta deles; podes acompanhar-me ou, se preferires, esperas-me aqui em casa e falamos quando eu voltar, aí em meia hora." 

hesitei, pois o cansaço era demasiado para o acompanhar no passeio e, por outro lado, não sabia bem que conversa poderíamos vir a ter nem, tão pouco, se me atreveria a esperá-lo em casa, não fosse isso ser ou parecer abusivo. acabei por responder que o aguardava ali mesmo, no patamar da entrada, onde me deixei escorregar até ficar sentada de encosto à porta. "como queiras", disse ele, partindo atrás dos cães, arrastado por fortes puxões das trelas.

confesso que, ao vê-lo desaparecer do meu campo de visão, senti um misto de alívio e decepção, afinal não sabia bem o que me tinha levado de volta àquele lugar e, muito menos, o que procurava encontrar lá, já para não dizer que semelhante encontro escapara completamente às minhas previsões, aliás, inexistentes.

foi assim que, após ter descansado uns minutos, me levantei, a custo mas com determinação, e zarpei dali, tendo o cuidado de o fazer na direcção oposta à que ele tomara com os seus galgos, não fosse cruzar-me com ele.

ao fim de um tempo impossível de calcular e após ter calcorreado uma vasta extensão de estrada deserta, dei comigo a aproximar-me de uma zona habitada por moradias, a princípio dispersas e depois mais próximas umas das outras. a noite estava cerrada, apenas se vislumbrava o brilho tímido de uma ou outra estrela, bem lá no alto, e das janelas daquelas casas não se escapulia réstia de luz, como se mergulhadas em sono profundo. 

por essa altura, ao cansaço juntava-se-me uma fome rabugenta, assim uns dentes a roerem-me o vazio do estômago, e foi quando vi, pendendo do muro que rodeava uma das casas, alguns ramos de macieira, ornados de promissoras frutas. estiquei um braço e deitei a mão a uma maçã, que, apesar da escuridão, percebi bem vermelha e madura, exalando um cheiro delicioso. ferrei-lhe os dentes com quanta fome tinha e o sumo escorreu-me pelo queixo, enquanto o sabor, fresco e doce, me escorregava pela garganta abaixo, acalmando os dentes ávidos que antes me devoravam o vácuo estomacal. em menos de nada, apanhei outra maçã e outra, que mastiguei com gosto e pressa, sentindo um prazer indizível. depois, acabaram as maçãs ao meu alcance e ousei subir o muro, para aceder aos ramos mais altos. fiquei suspensa num equilíbrio instável, quando uma luz forte, vinda da janela frontal, em que nem sequer reparara, iluminou vivamente a minha desgraçada pessoa. embora encandeada, consegui pressentir uma forma humana, por trás do vidro da janela e, logo de seguida, aberta esta, ouvir a voz esganiçada e idosa de um ser encurvado, exclamar: "mas que vem a ser isto, pensas que estou sozinha e não me posso defender? salta já daí que a polícia está a chegar!"

obedeci de uma forma tão cega e atarantada que fui parar ao interior e não ao exterior do muro. ainda tinha um pedaço de maçã na boca, mas não foi por isso que não consegui falar, era medo e estupefacção o que me paralisava as cordas vocais e, já agora, as pernas. os olhos entretanto habituados à luz, vislumbrei a frágil figura de uma velhota, que, todavia, não revelava qualquer fraqueza ao segurar uma caçadeira apontada na minha direcção sem sombra de hesitação ou tremura.

"és muda?", perguntou. num esforço desumano, lá consegui sair do meu estado de paralisia e articular, embora a custo, uma resposta: "desculpe, senhora, não pretendo fazer mal nenhum, só comi umas maçãs, porque estava com fome e sem rumo."

"sem rumo?, ai isso não duvido! ora chega-te aqui, mas vem com calma e sem ideias, que não me custa nada carregar no gatilho."

aproximei-me, ridiculamente com as mãos no ar, como vira em algum filme, e, fixando um olhar penetrante em mim, a velhota desatou a rir às gargalhadas, baixou a arma e, indicando-me a porta, com um gesto de cabeça, mandou-me entrar.

a medo, sem saber muito bem o que fazer às mãos, cumpri a sua ordem e assim me vi dentro duma casa tão estranha quanto a sua dona. parecia saída dum conto de outros tempos, daquelas em que as mobílias estão cobertas de lençóis empoeirados e, de velhos candelabros, pendem rendas de teias de aranha, não esquecendo o vislumbre de umas cabecinhas de rato a farejarem das paredes esburacadas. se a mulher tinha o nariz adunco, uma verruga no nariz e um carrapito mal alinhado e esfiapado no alto da cabeça esguia, um queixo em forma de cunha e os nós dos dedos salientes como berlindes mal amanhados, pois claro que sim! não, não é verdade, tratava-se de uma velhinha graciosa, de face arredondada – tão arredondada quanto o descair das carnes ainda permitia –, olhos de um azul já desmaiado, a escapulir-se por entre uma tessitura de pregas e rugas que mais parecia o leito ressequido dum rio, mãos delicadas e uns fios de cabelo esparsos, mas bem alinhados.

por entre um sorriso doce, tão doce quanto desdentado, disse-me: "vejo que estás um bocado maltratada e, pelos vistos, com fome, e acredito que não te movem más intenções, assim mo dizem os teus olhos e nem preciso de to perguntar, como aquele da televisão que acaba sempre as entrevistas a inquirir aos entrevistados: o que dizem os teus olhos?", e riu-se, achando-se graça. aliás, teve graça e, eu própria ri, aliás, sorri, apesar de estar tranzida de medo, de espanto e de não sei quantos mais estados emocionais negativos.

acabámos as duas sentadas à mesa duma grande e acolhedora cozinha, onde ela me serviu uma deliciosa ceia de torradas com compota, bolinhos caseiros e uma enorme caneca de chocolate quente, sob a promessa de, em troca, eu lhe contar a minha história e lhe prometer que ficaria um tempo com ela para a ajudar a dar um jeito à casa.

naquele momento, pareceu-me perfeito, bem vistas as coisas, não tinha qualquer alternativa, nem para onde ir, nem o que fazer. 

quando me conduziu ao quarto, anunciou duas coisas, uma, que se chamava sibila, a outra, que dormisse descansada, pois ela se encarregaria de me despertar. não me dando tempo a retorquir fosse o que fosse, sequer um agradecimento, saiu do quarto, murmurou boa noite e fechou a porta. confesso que estava aparvalhada, estado de que saí, como se de um salto, ao ouvir a chave rodar na fechadura. o que mais me pode acontecer?, pensei, mas depois rendi-me ao cansaço e às circunstâncias e tombei na cama macia e empoeirada, deixando-me embrenhar rapidamente num sono quase comatoso, apenas animado pela correria desvairada de uma matilha de galgos, em direcção a um homem refugiado no cimo de uma árvore, de onde pendiam armas no lugar de frutos.


P.S. : este texto é continuação do (post) de 19 de Agosto p.p. e, com sorte, irá prosseguir. (falta o desenho-ilustração, porque continuo sem conseguir carregar fotos para o blog)



terça-feira, 14 de janeiro de 2025

HOJE JÁ NÃO TERÁS AMANHÃ


Ignoro o teu nome, se és homem ou mulher, quem sabe se um dos outros inúmeros géneros, entretanto inventados e que nem sequer conheço.
Ignoro o teu nome e tudo o resto, vi-te a uma distância de metros, eu estacionada no carro, a falar ao telemóvel com uma amiga, contando as desventuras de uma recente intervenção cirúrgica malsucedida, apenas por alto e em tom jocoso, detesto pormenorizar desgraças e lamentar o que não tem remédio (ai, como me chateiam aquelas amigas que curtem desgraças como quem curte amores, só falam de doenças e pouco mais, tudo ao pormenor, esmiuçado com detalhes de macramé!).

Mas não é de mim, é de ti que me proponho falar, embora não tenha muito a dizer. Desconheço quem eras, o teu nome, género, idade, profissão ou falta dela, família, amigos, enfim, a moldura do teu corpo e da tua vida é-me completamente estranha.
Digo, estranha, não alheia. É que te vislumbrei a sombra, por sob o fato preto, quando, acompanhado/a por dois homens, também eles de negro vestidos, davas entrada na limusine cinzento prata.
O teu vulto aparentava fragilidade, talvez tivesses perdido peso, ultimamente, talvez nunca tenhas chegado a ganhar um peso assinalável, ao menos, a ser este o caso, não necessitaste de te preocupar com a balança. 

Mas, que sei eu, que nada sei de ti? De que cor os teus olhos, de que doçura ou amargor os teus beijos — se é que beijavas… —, de viajar, gostarias? e de ler, de amar, de ver as estrelas e o mar? Dançar?
A dúvida mais perturbadora que me assaltou, a mim que nada sei de ti nem nunca virei a saber, foi a seguinte: gostarias de viver? E uma outra, mais pungente ainda, estarias assim completamente desacompanhado/a?
É que, repito, nada sei de ti. 

A não ser que hoje, dia 30 de Dezembro de 2024, pelas cinco e pouco da tarde, vi a sombra de teu frágil corpo, sobre um esquife metálico (assim me pareceu), embrulhada num envólucro negro (manta, plástico?), atado à tua volta, ser transportada por dois agentes funerários, sob a vigilância de um terceiro, do interior dum prédio sito na Avenida Cinco de Outubro, em Lisboa, ali ao pé do cinema Nimas (terás gostado de cinema?) para o interior de uma carrinha funerária, de cor cinzenta prata. Ah!, isto sem que ninguém te acompanhasse.

Se conseguisse desenhar o abandono, recorreria às tintas com que acabo de dar forma a estas palavras.

Por qualquer (obscura?) razão, fiz suposições tão abusivas quanto esperançosas, do tipo, talvez estivesses farto/a de viver, talvez não te tenha custado partir. 
Uma coisa é certa, sejas quem fores ou o que tenhas sido, estejas onde estiveres ou em lado nenhum, desejo-te a paz definitiva do esquecimento, ao menos para não recordares que ninguém te acompanhou à porta, ao menos esta última vez.

Será que alguém chegou a saber quem eras?

(Este texto – que escrevi e publiquei no Facebook, 30/12/2024 — baseia-se num facto real.)