Há dois dias retida em casa, achaques diversos, estómago, coluna…
Hoje, faço um assinalável esforço para me levantar, mas tem de ser, preciso de ir levar aquelas duas miraculosas injecções para a coluna, passar pelo cabeleireiro e, sobretudo, arejar, distrair (ou não fosse a rua o meu modo de sobrevivência!). É uma da tarde, o visor do rádio está morto, a luz da mesa de cabeceira, também. Verifico a instalação eléctrica, não provém daí o apagão. Sigo para a cozinha, agoniada e com as dores lombares a apertar o cerco. Fixo-me nas árvores da rua, enquanto telefono para o número das avarias da empresa de electricidade. Estranho, a chamada não é estabelecida. Ligo para outro número da empresa, mas a mensagem anuncia grande demora no atendimento. Volto a tentar o primeiro número. Sem êxito. Tento consultar a Internet, mas já não dá, acciono os dados móveis, todavia, após um auspicioso início, vão abaixo. A rede já foi, em todas as suas vertentes e funções.
Penso na falta do som do rádio, minha companhia de levantar, de começar o dia.
Regresso ao quarto, vejo os miúdos universitários que habitam um dos prédios da frente. Pergunto se sabem alguma coisa, se têm rede. Rede também não têm, mas sabem ter-se tratado de um apagão geral, na Europa.
Penso no que não podia deixar de pensar, pirataria, ataque informático, Putin, Trump, ambos de conluio?
Penso que os receios infundidos pelo estado do mundo se estão a concretizar talvez (ainda) mais rapidamente do que esperava.
Penso, com preocupação, na minha família, será que algum foi apanhado no metro ou num elevador? E a minha sobrinha-neta, será que a sua intervenção cirúrgica, marcada para amanhã, poderá realizar-se? Como estará ela, já tão nervosa com a perspectiva, como a achei há dias!
Sigo a rotina de antes de sair de casa, com as devidas adaptações. Pequeno almoço, uma tosta com compota (não gosto, mas tento acalmar o enjoo), desacompanhada de café (isto das máquinas eléctricas!, comprar café solúvel para emergências, anoto mentalmente na lista de compras); lavo a louça, faço a cama, banho, ora bolas!, não dá para tomar banho, a caldeira funciona a electricidade e gás...
Antes de sair, renovo a conversa através da janela, os miúdos não sabem mais nada. Estão animados, como se nada fosse. Ainda bem, abençoada juventude!
Tirar o carro da garagem é impossível, o sistema é de monta-autos (elevador). Bem podia tê-lo deixado na rua, mas, vá-se lá adivinhar!
Desço os quarenta e dois degraus que me separam da porta da rua, alumiada pela lanterna do telemóvel, saio. Um raio de um calor infernal (cada vez suporto menos o calor!). Mudo-me para o lado da sombra.
Circulam bastantes pessoas, com ar descontraído, como se nada fosse, ainda bem, algumas nas esplanadas dos cafés que continuam abertos.
Vou interpelando algumas, sobretudo as que olham para telemóveis (que, afinal, não funcionam), no sentido de obter informação, mas cada qual apresenta a sua versão. Versão um: apagão geral na Europa; versão dois, apenas em Portugal Espanha e sul de Itália ou França; versão três, para além destes, Marrocos. Quanto às causas, apenas uma versão, avaria numa central de França, pelos vistos conectada com toda a rede europeia, sem suspeita de ataque informático. Previsões, em geral, desconhecidas, até que alguém fala em até 72 horas.
Entro num café, com o objectivo de comprar um ou dois bolos secos (nem me lembro que também vende pão), mas não compro nada, só há bolos com creme, o que, na circunstância, não me parece aconselhável.
Em conversa, a empregada, perante a versão da tal avaria em França, mostra-se céptica, avança que isto foi mas é coisa do Trump. Concordo, ao menos ao nível da probabilidade.
Ainda acrescenta, bem andavam a falar no kit de emergência, mas este país! Não, digo, não é o país, somos nós, as pessoas, olhe, eu própria ando há tempos a pensar nisso, mas vou sempre adiando. Imagine que nem uma lanterna ou velas tenho em casa. Pois é, concorda, deixamos sempre tudo para depois.
Sigo para a loja do chinês, na esperança de encontrar o dito objecto, agora tornado essencial. Esgotadas, já foram todas! Miraculosamente, lá desencantam uns kits de lanternas para bicicleta. Fico logo com um dos três disponíveis e duas embalagens de pilhas extra.
Mais à frente, numa loja quase a fechar, consigo comprar pão.
O trânsito amontoa-se, caótico, como seria de esperar, com os semáforos em greve. Ouvem-se bastantes sirenes.
Já vi mais do que uma pessoa carregada com sacos do ECI. Uma delas informa-me que o supermercado está aberto e aceitam pagamentos multibanco. Talvez pudesse lá ir abastecer-me de qualquer coisa justificada pela situação. Mas não, apesar de ser tão próximo, falta-me a vontade e, sobretudo, as forças par continuar sob a espessura do calor.
Estou à porta de casa, subo os quarenta e dois degraus com recurso à lanterna acabada de comprar.
Penso em como irei ocupar este tempo, sobretudo esta perspectiva de silêncio, de falta de contacto (embora abstracto) com o mundo. No Covid, ainda havia telefones e Internet e aproveitei para fazer imensas coisas em casa. Neste momento, nem sei em que posição estacionar o corpo queixoso. E a incerteza, a falta de notícias, de saber o que se passa, incomoda-me. Contudo, permaneço calma, não fossem as maleitas e ia passear até ao jardim da Gulbenkian.
Penso que este acontecimento representa uma pequena amostra dos padecimentos daqueles que sofrem o terror das guerras (obviamente, os ucranianos surgem-me em primeiro lugar).
Curiosamente, enquanto falava com um desconhecido (hoje só falei com desconhecidos), à procura de notícias, abeirou-se de nós um homem jovem, a pedir, anunciando ser ucraniano. Não demos esmola (porque nunca se sabe se é fingimento).
Penso em contradições e arrependimentos, no abstracto e no concreto...
Desligo o telemóvel, para poupar carga. Lamento, ontem à noite, não ter deixado o computador a carregar, pois estava com metade da carga. Preguiça, vício de procrastinação.
Agora estou a escrever no iPad, que, mesmo não sendo usado, perde a carga muito mais rapidamente do que o computador. Já só tem 13%, nem deve dar para rever este texto, destinado ao blog, como crónica de um dia anunciado.
Penso no Papa Francisco, que talvez tenha partido em bom momento. E ocorre-me pedir-lhe que interceda pelo mundo, mas depois recordo que, agora, ele é pó de estrelas!
Ignoro se estou a ser apocalíptica, mas o que pensar perante a ameaça dos Trumps e dos Putins desta vida?
P.S.: Este texto foi escrito por volta das dezassete horas do dia 28 de Abril de 2025. Agora, que acabo de o editar, (obviamente) já há luz. O Primeiro-Ministro veio comunicar ao País o que se passa. Continuo sem saber qual foi a causa do apagão, nem sei se alguma vez nós, comum dos mortais, virá a saber. Mal possa, vou tratar do Kit de emergência. Amanhã irei à loja do chinês, reclamar da lanterna que deixou de funcionar (agora só dá luz se se mantiver o dedo premido)...