terça-feira, 7 de outubro de 2025

MARIA NINGUÉM (7): SURPREENDIDA PELA SORTE

certamente, ninguém ignora que uma coisa é tentar e outra conseguir. se os meus esforços para não adormecer foram hercúleos, não podem restar quaisquer dúvidas: em vez de me deitar, sentei-me na cama, as costas muito direitas grudadas à cabeceira e os olhos tão abertos que mais deviam assemelhar-se a faróis, tanto mais que o breu da noite, cercando o exterior da janela, cujas portadas me abstivera de fechar, contrastava, de certeza, com o brilho emanado das minhas esforçadas pupilas, tão desejosas da protecção das pálpebras quanto pressionadas pela necessidade de permanecerem arregaladas.
aguentei-me assim até me aperceber de que o silêncio reinante era tão espesso que até se conseguia ouvir; então, levantei-me de mansinho e espreitei pelo buraco da fechadura à procura de qualquer indício de movimento; os meus olhos foram invadidos por uma escuridão tão densa quanto a que reinava no exterior. com extrema cautela, experimentei o puxador (já arranjado pela sibila, se é que alguma vez estivera avariado!?) e constatei, não sem alívio, que a porta abria.
saí e, pé ante pé, dirigi-me à casa de banho, não por necessidade, mas para ver o que sucedia e dispor de uma justificação, caso a sibila me surpreendesse, vinda sabe-se lá de onde. como os meus receios não se tivessem cumprido (aleluia!), aventurei-me até à porta da rua. confirmei, tristemente mas sem surpresa, que, essa sim, estava fechada à chave, mas desta, nem rastos. como poderei libertar-me de tão estranho cativeiro?, lamentei-me num sussurro não pronunciado. 
em silêncio, regressei ao quarto e pus-me à janela, procurando ambientar a vista à maldita escuridão, no intuito de conseguir identificar alguma alternativa de fuga. muito vagamente, talvez mais de memória que de realidade, dei comigo a divisar o quadriculado da instalação para trepadeiras que antes havia confundido com um gradeamento. mas, o mais surpreendente foi começar a suspeitar da audição de vozes murmuradas, vindas mesmo dali debaixo da janela; desviando, agora, o foco, da visão para a audição, consegui, a custo, discernir a voz da sibila alternada com outra, mais profunda, aparentemente masculina; apesar do meu esforço hercúleo para apreender a conversa, não logrei tal feito, mas consegui distinguir as palavras "ela", "fuga", "permitir", "tens de ajudar-me" e, repetidamente, "sim", no que se afigurava um assentimento obediente da voz masculina ao que a voz de sibila lhe dizia, sugeria ou pedia (consoante referi, ignoro o teor do discurso, impossível de reconstituir a partir daqueles vocábulos esparsos). 
a impotência de perceber o que se passava, teve, todavia, o efeito de me espevitar a imaginação, levando-me a admitir que a sibila tivesse saído após a minha anterior incursão pela casa e, com sorte (muita sorte, na verdade!), talvez tivesse deixado a porta destrancada. 
munida de todos os cuidados, peguei na minha carteira, e aventurei-me, novamente, até à porta de entrada, agora numa directa, sem escala na casa de banho, visto não se me afigurar provável que, entretanto, a sibila houvesse regressado a casa. e, como se num desmentido da minha maré de azares, eis que deparei com a porta, não só destrancada, mas semi-aberta, pelo que, de imediato, aproveitando aquela sorte inesperada e antes que os desígnios do universo de virassem de novo contra mim, esgueirei-me sorrateiramente pelo pequeno espaço disponível, deslizando, em silêncio – em passos que (passou-me pela cabeça, vá-se lá saber porquê) emulavam uma dança do michael jackson desacompanhada de música; em menos de nada, tempo que, todavia, me pesou como séculos, atingi a macieira por onde tinha trepado em direcção àquele tenebroso destino de prisioneira (como me parecia ser a retenção naquela casa de bruxa). subindo à árvore, refiz o percurso inverso, de dentro do jardim para fora, até ter pisado a terra firme da estrada que me conduzira até ali, nem eu sabia se há um dia, dois dias, dois meses ou dois séculos.
ainda não refeita do salto, apercebi-me de um alvoroço vindo do interior do jardim, urdido de passos apressados e da voz de sibila que, entre o desespero e a raiva, gritava, "corbin, acho que ela fugiu, procura-a na rua enquanto vou ver dentro de casa".
quando ouvi a chiadeira do portão a abrir-se, já tinha dobrado a curva que, felizmente, a rua não tardava a desenhar, e ofegante da correria desvairada, parei um breve momento para recuperar o fôlego e ainda consegui ouvir uma praga proferida pelo tal corbin, ao constatar a minha ausência, seguida da pergunta, dirigida à sibila, "está aí dentro?", e a desesperada e ameaçadora resposta dela, "não, aquela maldita, devíamos ter tratado dela enquanto a tínhamos à mão, está tudo perdido! onde vamos, agora, encontrar o adubo para as trepadeiras?"
gelada com a ameaça contida naquelas palavras e a certeza de que, ao menos a minha intuição e, pela primeira vez na vida, a sorte estavam a bafejar-me, retomei a fuga com quantas forças tinha, sempre a direito, até me distanciar tanto daquela maldita casa, que a noite escura já dera lugar a um auspicioso – pensava eu – clarear e deparei comigo mesmo em frente da minha anterior paragem, a casa onde em tempos trabalhara para o casal de idosos.
os cães, talvez reconhecendo-me pelo faro, abstiveram-se de rosnar, mas não de latir animadamente, no que o dono deve ter interpretado como um anúncio de visitas, pois, logo de seguida, ainda em pijama e com ar ensonado, abriu a porta da rua e, notando a minha presença, sorriu alegremente e exclamou, "afinal regressaste, eu sabia que havia de voltar a ver-te! anda cá, entra e diz-me o que te aconteceu para estares com esse ar ainda mais assustado e exausto do que quando, há meses, passaste por aqui."
há meses? – eis a minha interrogação muda, enquanto, não sem receio, mas completamente exaurida pelo desamparo, me dirigia a ele, ignorando o que se seguiria, mas consciente de que há momentos em que a falta de forças nos deixa tão de rastos que, mesmo após sucessivas experiências traumáticas, nos vemos forçados a ceder às circunstâncias que se nos deparam, não obstante cientes da incerteza e do perigo, mas insistindo em agarrar-nos a uma (talvez vã) esperança num futuro melhor ou, no mínimo, menos mau.

P.S. : este texto é continuação do (post) de 29 de Julho p.p. e, com sorte, irá prosseguir. 




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