quinta-feira, 10 de abril de 2014

OXALÁ!


Movia-se tal um corpo descaído, o pescoço dobrado em semiarco, olhos arrastados pelo chão, lavando desperdícios alheios. Não era um cão, era um homem, pelo menos, tinha sido, quem diz homem diz mulher. Não precisa ter idade definida, não pode é ser criança, adolescente ou muito jovem, não seria justo. Não seria justo?, coisa mais idiota, mas alguma vez poderá reclamar-se de justiça o que não passa do puro domínio do agravo, da ofensa gratuita, do riso desalmado dum qualquer pesadelo sem nome nem matéria nem alma?
O espírito vagueou-lhe, foi o que foi. Partiu para o destino sem regresso dos vencidos, não necessariamente os que se deixam vencer, mas aqueles que a vida vence, apesar de tudo, sobretudo apesar deles próprios, é bem possível, que isso do livre arbítrio e da força do pensamento positivo ainda está a anos luz de cabal demonstração.
Será que tinha um cão para tomar conta dele e escrever os farrapos da sua biografia, como no Timbuktu, do Paul Auster? Será que, em criança, tinha conseguido planar, como Mr. Vertigo, do mesmo Paul Auster?
Não sei, só sei que lhe chamavam sem-abrigo, ignoro se era nome ou condição. Ou, mesmo, se era, tecnicamente, sem-abrigo ou um qualquer sem-abrigo de luxo. Ou, até, se foi apenas um dia ruim e se, no dia seguinte ou umas semanas depois, se movia qual passo destemido, com os olhos erguidos para lá do pensamento. Oxalá!
 
 
 
 
 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

OS BRILHOS DO DIA


Por hoje, já estou abastecida de ideias brilhantes, não minhas, infelizmente, que eu nem sequer tenho ideias, quanto mais brilhantes!
 
Primeira, do governador do Banco de Portugal: passar de 8 para 10 (dez, sim!) anos, o prazo de prescrição dos processos contra-ordenacionais no âmbito do sistema financeiro.
Cá por mim, apenas aditaria uma coisita: mudar a designação de prescrição para esquecimento.
 
Segunda, do governo de Portugal: permitir que as IPSS realizem funerais.
Não entendo como ainda ninguém se tinha lembrado duma medida tão acertada!
Todavia, parece-me que deveria, a) ser dada preferência aos lares da 3ª idade; b) estender a medida às instituições do Serviço Nacional de Saúde, mediante a criação dum novo serviço - de preferência grátis e, se pago, nunca de preço superior a 50% do preço das colonoscopias com sedação - designado, v.g., entrada por saída; c) associar a medida a uma outra, a eutanásia por decreto.
 
Fico, então, a aguardar mais ideias brilhantes, caso em que prometo transformar o título deste post em rubrica assídua. 
 
PS: Lembrei-me, entretanto, que os Tribunais poderiam ser encarregados da cremação dos processos esquecidos, e que as agências funerárias poderiam acumular, por exemplo, com a prestação de serviços estéticos e a organização de banquetes. Está bem, talvez não...
 
 
 
 
  
 
 


segunda-feira, 7 de abril de 2014

ALMALFAZEMA

 
Mas a paisagem era tão bela e longínqua como as alturas para onde a tua alma se evadia, a tua alma desprendida, sem horizontes por limite, sem destinos marcados por fronteira. Tudo era dum azul difuso, esfumado em nuvens leves e transparentes, podendo uma cor ser transparente, como nessas distâncias podia. Aliás, tudo era possível, para essa tua alma vadia, vagabunda, subtil, etérea, desvinculada, livre. Uma alma que não prestava contas, não necessitava prestar contas, qual mar em seus alvoroços ou calmarias, qual vento em seus segredos ou gritos, que ninguém domina nem é da natureza das coisas dominar. Essa tua alma era tão alta, tão luz, tão leve, e, todavia, tu.
 
Tu eras outra coisa, aliás, na interposição do espírito, da emoção e da mente, realidades outras, descolavas da lonjura da tua alma, planavas baixo, um rumo certo, é bem verdade, mas não isento de colisões, sobretudo contigo, poor thing, amarguravas-te e espalhavas amargura à volta.

No entanto, não se podem negar as alturas e a pureza da tua alma de alfazema.

Lembrei-me disto, desta parte de ti, tão comovente, ao ouvir uma canção, mas não me lembro qual, só que, enquanto a ouvia, não parava de pensar em ti. É quanto basta, para um encontro de almas - pensei.







 

PERGUNTAS-ME?

 
Se me lembro? Como poderia não lembrar?
Era de Primavera, vestias o teu pulôver azul escuro sobre a camisa de quadrados miúdos, azuis e brancos, e tiveste de o tirar, pois o calor invadiu. As calças eram as de sempre, jeans coçados, e uns sapatos que não me lembro, sobre umas meias que também não.
Abri a porta, porque antecipei os teus passos, conhecia os teus passos de cor, esperava o som dos teus passos como se a música mais dançável - e eu adorava dançar! Quase te assustaste, embora não fosses dado a sustos, no repente de mim à tua frente, quando te preparavas para tocar à campainha, coisa desnecessária, porque a minha espera ansiosa, alegre e atenta a tornou desnecessária.
E eu, como é que eu estava, no meu exterior, lembras-te?
Também me lembro de mim, do meu exterior, o cabelo escorrido da água do duche e não sei mais. É pouco, para uma descrição, melhor, uma lembrança, mas é preciso não esquecer que estávamos na Primavera, um sol descarado, afastando as últimas chuvas sem cerimónia, flores amarelas a rebentar por tudo quanto era palmo de terra, corações aos saltos, pura sintonia com a exacerbação da natureza desadormecida e galopante.
Dizes-me que não foi por causa do calor que tiraste o pulôver? Dizes-me que todo o meu corpo escorria da água do duche?
Talvez tenhas razão, afinal era de Primavera e a natureza explodia assim, feita arco prometido e caminho conquistado, e o mundo era nosso, inteiramente nosso, e havíamos de o queimar, com gosto e sede, até aos píncaros do Verão.
Ainda nem sonhávamos das cinzas do Outono, quanto mais dos mantos frios do Inverno.
Todavia, hoje é de Primavera, outra, e perguntas-me...
Perguntas-me?
 
 
 
 
 

sábado, 5 de abril de 2014

A VER COM CÃES






 




ENCONTRO MAIS QUE PERFEITO

 (UMA CENA POST QUALQUER COISA, TALVEZ POST SURREALISTA OU POST PARVA)
 
Foi, então, que ele se virou para ela e, da nuvem calma do seu metro e oitenta, perguntou:
-Conhece alguém que arranje cabeças?
-Cabeças, não, só bicicletas - respondeu ela, distraidamente, do alvoroço do seu metro e sessenta e cinco.
-Nesse caso, talvez seja boa ideia irmos tomar um café e você dá-me o contacto do arranjador de biclas.
-Mas não era de cabeças?
-Vai dar ao mesmo.
-Ah! nesse caso, sim, vamos tomar café e trocamos os contactos.
-Trocamos?
-Pois, eu dou-lhe o do arranjador de biclas e você dá-me o do arranjador de cabeças.
-Mas, lembro-me agora, eu nem sequer tenho...
-...uma bicla! Então por que perguntou? Não sabe que quem não sabe não pergunta?
-!!! Olhe, aqui está o Café, gosta de café, não?
-Se gosto, adoro! Sobretudo com biscoitos de chocolate, mergulho-os na chávena até quase se desfazerem, tiro-os mesmo a tempo de levar à boca e acabo a beber aquele puro néctar, que transcende a dupla delícia do café e do chocolate. Nham! Nham!
-Que giro! sabe que partilho inteiramente esse desvario pela mistura ideal café/chocolate?
-Pois, isso é mais um sinal de que não nos encontrámos por acaso.
-Mais um?
-Claro, o outro foi termo-nos encontrado, não é óbvio?
-Pois é, agora que o diz. Sabe, sou um pouco distraído. Já agora, o que estava a fazer ali, na paragem do autocarro?
-Ainda bem que pergunta, estava cheia de pressa para apanhar um táxi, mas agora já passou a hora. E você, o que fazia lá?
-Eu? Bem, estava à sua espera.
-Como assim? eu nem costumo passar por ali...
-Justamente, se costumasse passar por ali, eu estaria ao seu encontro, não à sua espera, está a ver a diferença?
-Assim uma diferença tipo, entre um arranjador de cabeças e um arranjador de biclas?
-Touché!
-Quer, então, dizer que nem sequer precisa dum arranjador de cabeças?
-Pois, nem sei o que isso é.
-Bem, eu sei, sou psiquiatra
-Já tinha adivinhado!
-Já?
-Pois claro, não se vê mesmo que sou uma bicla?
-Você é, realmente, um prodígio de inteligência, pena que, agora, acabou a hora do recreio e tenho de o levar de volta à garagem, mas fica prometido outro café com biscoitos de chocolate.
-Tem mesmo de ser?
-O quê, o café com biscoitos de chocolate?
-Engraçadinha, até parece um triciclo fofinho. Pronto, bora lá!
 
Entenderam-se tão bem, que repetiram os cafezinhos e biscoitos de chocolate até ao dia do casamento, depois foram felizes para sempre e, pelo caminho, tiveram muitos meninos afectados pela síndrome da confusão de identidade, quer dizer, tinham a mania que eram coisas estranhas, um skate, uns patins em linha, uma scooter, etc.