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domingo, 16 de março de 2025
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domingo, 26 de janeiro de 2025
O INEFÁVEL SIGNIFICADO DE UM F
quarta-feira, 15 de janeiro de 2025
MARIA NINGUÉM (5): (A)TRAÍDA POR UMA MACIEIRA
os cães acabaram por decidir o curso dos acontecimentos. tomados de uma impaciência crescente, puxavam violentamente as trelas, por entre latidos vigorosos, em tal nível de exigência e urgência que o afonso acabou por ceder.
aparentando certo desconforto, enfatizado por um encolher de ombros, olhou-me em modo de pedir desculpa e disse, "olha, tenho de os levar ao passeio nocturno, são muito indisciplinados e, quando atingem este grau de desatino, não consigo dar conta deles; podes acompanhar-me ou, se preferires, esperas-me aqui em casa e falamos quando eu voltar, aí em meia hora."
hesitei, pois o cansaço era demasiado para o acompanhar no passeio e, por outro lado, não sabia bem que conversa poderíamos vir a ter nem, tão pouco, se me atreveria a esperá-lo em casa, não fosse isso ser ou parecer abusivo. acabei por responder que o aguardava ali mesmo, no patamar da entrada, onde me deixei escorregar até ficar sentada de encosto à porta. "como queiras", disse ele, partindo atrás dos cães, arrastado por fortes puxões das trelas.
confesso que, ao vê-lo desaparecer do meu campo de visão, senti um misto de alívio e decepção, afinal não sabia bem o que me tinha levado de volta àquele lugar e, muito menos, o que procurava encontrar lá, já para não dizer que semelhante encontro escapara completamente às minhas previsões, aliás, inexistentes.
foi assim que, após ter descansado uns minutos, me levantei, a custo mas com determinação, e zarpei dali, tendo o cuidado de o fazer na direcção oposta à que ele tomara com os seus galgos, não fosse cruzar-me com ele.
ao fim de um tempo impossível de calcular e após ter calcorreado uma vasta extensão de estrada deserta, dei comigo a aproximar-me de uma zona habitada por moradias, a princípio dispersas e depois mais próximas umas das outras. a noite estava cerrada, apenas se vislumbrava o brilho tímido de uma ou outra estrela, bem lá no alto, e das janelas daquelas casas não se escapulia réstia de luz, como se mergulhadas em sono profundo.
por essa altura, ao cansaço juntava-se-me uma fome rabugenta, assim uns dentes a roerem-me o vazio do estômago, e foi quando vi, pendendo do muro que rodeava uma das casas, alguns ramos de macieira, ornados de promissoras frutas. estiquei um braço e deitei a mão a uma maçã, que, apesar da escuridão, percebi bem vermelha e madura, exalando um cheiro delicioso. ferrei-lhe os dentes com quanta fome tinha e o sumo escorreu-me pelo queixo, enquanto o sabor, fresco e doce, me escorregava pela garganta abaixo, acalmando os dentes ávidos que antes me devoravam o vácuo estomacal. em menos de nada, apanhei outra maçã e outra, que mastiguei com gosto e pressa, sentindo um prazer indizível. depois, acabaram as maçãs ao meu alcance e ousei subir o muro, para aceder aos ramos mais altos. fiquei suspensa num equilíbrio instável, quando uma luz forte, vinda da janela frontal, em que nem sequer reparara, iluminou vivamente a minha desgraçada pessoa. embora encandeada, consegui pressentir uma forma humana, por trás do vidro da janela e, logo de seguida, aberta esta, ouvir a voz esganiçada e idosa de um ser encurvado, exclamar: "mas que vem a ser isto, pensas que estou sozinha e não me posso defender? salta já daí que a polícia está a chegar!"
obedeci de uma forma tão cega e atarantada que fui parar ao interior e não ao exterior do muro. ainda tinha um pedaço de maçã na boca, mas não foi por isso que não consegui falar, era medo e estupefacção o que me paralisava as cordas vocais e, já agora, as pernas. os olhos entretanto habituados à luz, vislumbrei a frágil figura de uma velhota, que, todavia, não revelava qualquer fraqueza ao segurar uma caçadeira apontada na minha direcção sem sombra de hesitação ou tremura.
"és muda?", perguntou. num esforço desumano, lá consegui sair do meu estado de paralisia e articular, embora a custo, uma resposta: "desculpe, senhora, não pretendo fazer mal nenhum, só comi umas maçãs, porque estava com fome e sem rumo."
"sem rumo?, ai isso não duvido! ora chega-te aqui, mas vem com calma e sem ideias, que não me custa nada carregar no gatilho."
aproximei-me, ridiculamente com as mãos no ar, como vira em algum filme, e, fixando um olhar penetrante em mim, a velhota desatou a rir às gargalhadas, baixou a arma e, indicando-me a porta, com um gesto de cabeça, mandou-me entrar.
a medo, sem saber muito bem o que fazer às mãos, cumpri a sua ordem e assim me vi dentro duma casa tão estranha quanto a sua dona. parecia saída dum conto de outros tempos, daquelas em que as mobílias estão cobertas de lençóis empoeirados e, de velhos candelabros, pendem rendas de teias de aranha, não esquecendo o vislumbre de umas cabecinhas de rato a farejarem das paredes esburacadas. se a mulher tinha o nariz adunco, uma verruga no nariz e um carrapito mal alinhado e esfiapado no alto da cabeça esguia, um queixo em forma de cunha e os nós dos dedos salientes como berlindes mal amanhados, pois claro que sim! não, não é verdade, tratava-se de uma velhinha graciosa, de face arredondada – tão arredondada quanto o descair das carnes ainda permitia –, olhos de um azul já desmaiado, a escapulir-se por entre uma tessitura de pregas e rugas que mais parecia o leito ressequido dum rio, mãos delicadas e uns fios de cabelo esparsos, mas bem alinhados.
por entre um sorriso doce, tão doce quanto desdentado, disse-me: "vejo que estás um bocado maltratada e, pelos vistos, com fome, e acredito que não te movem más intenções, assim mo dizem os teus olhos e nem preciso de to perguntar, como aquele da televisão que acaba sempre as entrevistas a inquirir aos entrevistados: o que dizem os teus olhos?", e riu-se, achando-se graça. aliás, teve graça e, eu própria ri, aliás, sorri, apesar de estar tranzida de medo, de espanto e de não sei quantos mais estados emocionais negativos.
acabámos as duas sentadas à mesa duma grande e acolhedora cozinha, onde ela me serviu uma deliciosa ceia de torradas com compota, bolinhos caseiros e uma enorme caneca de chocolate quente, sob a promessa de, em troca, eu lhe contar a minha história e lhe prometer que ficaria um tempo com ela para a ajudar a dar um jeito à casa.
naquele momento, pareceu-me perfeito, bem vistas as coisas, não tinha qualquer alternativa, nem para onde ir, nem o que fazer.
quando me conduziu ao quarto, anunciou duas coisas, uma, que se chamava sibila, a outra, que dormisse descansada, pois ela se encarregaria de me despertar. não me dando tempo a retorquir fosse o que fosse, sequer um agradecimento, saiu do quarto, murmurou boa noite e fechou a porta. confesso que estava aparvalhada, estado de que saí, como se de um salto, ao ouvir a chave rodar na fechadura. o que mais me pode acontecer?, pensei, mas depois rendi-me ao cansaço e às circunstâncias e tombei na cama macia e empoeirada, deixando-me embrenhar rapidamente num sono quase comatoso, apenas animado pela correria desvairada de uma matilha de galgos, em direcção a um homem refugiado no cimo de uma árvore, de onde pendiam armas no lugar de frutos.
P.S. : este texto é continuação do (post) de 19 de Agosto p.p. e, com sorte, irá prosseguir. (falta o desenho-ilustração, porque continuo sem conseguir carregar fotos para o blog)