domingo, 16 de março de 2025

SENHOR #GULBENKIAN "VERSUS" NEM-SEI-COMO-LHE-CHAME #TRUMP

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Sempre me dei bem com a gratidão, talvez por serem tão parcas as vezes que tive justificação para a manifestar. Bem, não é por isso, mas por representar um valor em si, o do reconhecimento face à dádiva, o da manifestação do reconhecimento sentido face à dádiva.

Dádiva e gratidão, generosidade e reconhecimento, enfim, VALORES! A essência reside nos valores, ou seja, nos princípios conformadores de uma sã, pacífica e feliz convivência entre os humanos, tão mais necessária e benéfica quanto é pesada a carga inerente à nossa natureza, o enigma angustiante de ignorarmos – e estarmos conscientes da impossibilidade de desvendar – de onde vimos, para onde vamos – se é que iremos para algum lado! – e, não menos importante, porquê (porquê a existência ou isto que tomamos – sofremos ou desfrutamos – como tal?).

2

Falo, agora, de uma particular gratidão que jamais me canso de expressar, sobretudo nos meus diálogos interiores; o destinatário já não está connosco (viveu entre 1869 e 1955). Refiro-me a #Calouste Sarkis Gulbenkian (CSG), criador da Fundação com o seu nome, dádiva maravilhosa ao nosso País, mas não só, pois abrangendo vários domínios temáticos – beneficência, arte, educação e ciência – e geográficos, alcança um amplo leque de destinatários/beneficiários.

Criada numa altura em que Portugal vivia mergulhado em obscurantismo tacanho e opressor, também no plano cultural, a #Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) veio escancarar luminosas janelas, através das quais muitos puderam descobrir mundos que, até então, lhes estavam completamente vedados. Centro-me, aqui e em particular, na divulgação cultural, nas suas mais diversas vertentes, v.g., exposições de arte, espectáculos de dança (tantas saudades do Ballet Gulbenkian, em tão má hora extinto!), concertos, conferências e um vasto etc., de que, todavia, se não podem esquecer as carrinhas biblioteca, portadoras da leitura aos mais recônditos pontos do País, assim criando condições para romper com o nosso proverbial atraso (quantos leitores se forjaram, mercê desta generosa iniciativa, sem a qual permaneceriam na triste ignorância do maravilhoso mundo do conhecimento, em geral, e da literatura, em particular!).

Portanto, nunca me cansarei de proclamar: OBRIGADA, SR. GULBENKIAN!

3

Certamente por isso, trata-se de uma personalidade sobre a qual nutro enorme curiosidade, sobretudo do tocante a desvendar o que se situa para além da mítica alcunha de "Senhor 5%", que sempre me pareceu  assaz redutora, senão de mau gosto, para um Homem cujo requinte, generosidade e largueza de vistas são bem patentes, desde logo, no seu legado humanitário e cultural.

No intuito de satisfazer tal curiosidade, tenho lido algumas publicações, uma delas, um interessantíssimo diário de viagem, da autoria do mesmo, onde é relatada a sua viagem ao Egipto, Palestina e Síria e onde é dado interessante testemunho, entre outros aspectos, da sua relação com a arte e, inclusivamente, dos (informados e criteriosos) processos de escolha das peças que adquiria e que integram, hoje, o magnífico acervo do pertinente legado: trata-se de "VOYAGE EN EGYPTE, PALESTINE ET SYRIE (JANVIER-FÉVRIER 1934)", edição da FCB, no âmbito e enquanto espécie de catálogo da exposição "Calouste, uma vida, não uma exposição", promovida pela Fundação em 2019, quando da celebração dos 150 anos do mesmo, justamente com o objectivo de dar a conhecer a sua vida e obra. 

Todavia, o livro (também publicado no contexto daquela celebração, com o apoio da FCB) de que, agora, me proponho falar é outro: "A Educação do Delfim", constituído por uma selecção de cartas maioritariamente trocadas entre CSG e o seu (único) neto, #Mikhael Essayanno decurso da II Guerra Mundial, numa altura em que o primeiro vivia em Lisboa e o segundo, jovem adolescente, estudava em Londres

Com autorização da sua filha e genro – Rita e kevork Essayan –, pais de Mikhael, então residentes em Paris, CSG, assumiu a direcção educativa do neto, de que tais missivas constituem o veículo (tenham-se presentes as restrições à circulação impostas pela guerra).

Constam as mesmas de um património de conselhos (de avô para neto)  relativos aos planos académico e comportamental, através dos quais fica patente a elevada qualidade intelectual e moral de CSG.

Disso são exemplo, no domínio da orientação académica, as recomendações sobre critérios de escolha de leituras e do próprio currículo escolar, e, quanto ao comportamento pessoal, um permanente incentivo ao autoconhecimento e à auto-responsabilização, sempre norteados por elevados critérios de exigência, visando como padrão, dar o melhor de si próprio e manter a humildade e o respeito pelo próximo; em suma, propondo nada menos do que um comportamento exemplar, na relação consigo próprio e com os outros, enquanto modelo de ética de trabalho e de vida.
 
Neste contexto, são frequentes as chamadas à responsabilização pelas falhas de comportamento e/ou insatisfatórios resultados escolares do neto, por vezes, em termos que podem parecer um tanto excessivos, sobretudo se tivermos em atenção a idade deste (o início da correspondência ocorre por volta dos seus quinze anos) e, sobretudo, as circunstâncias em que vivia, afastado da família, e em plena guerra.

Porém, logo este (eventualmente excessivo) rigor é temperado pelo afecto demonstrado e, talvez não menos relevante, pela lembrança constante de que os conselhos emanam da experiência de vida do emitente e visam a preparação para a vida do destinatário, sendo motivados pelo amor e preocupação que este lhe merece.

Também de assinalar que, a partir de determinada altura, CSG, apercebendo-se desse rigor, revela a sabedoria e humildade necessárias para abrandar o grau de certas exigências e, sempre, para celebrar as conquistas do neto, assim o incentivando a prosseguir e progredir, no  intuito de dar sempre o seu melhor.

Para mim, o retrato emergente da leitura destas missivas é, pois, o de um homem não só extremamente culto e dedicado ao neto, mas, sobretudo, dotado de elevados padrões morais e, não menos importante, de profundo afecto.

Enfim, tal como já suspeitava, esta leitura coloca o Homem (CSG) muito acima da referida alcunha ("Senhor 5%")! E, contra tantas e tão lamentáveis evidências em contrário, permite acreditar que o mundo dos negócios e da alta finança não tem por que ser forçosamente egoísta e eticamente reprovável (nos tempos que correm, não é pequena esperança!).

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Hoje em dia, e muito particularmente, após a (deplorável) eleição de #Donald Trump (DT) para a presidência dos Estados Unidos da América e de tudo a que, na sequência da mesma, se vem assistindo, tenho pensado muito – sempre com a mencionada gratidão e  acrescida admiração –, nas qualidades intelectuais e morais do SENHOR CSG.

Trata-se de um pensamento por contraste, pois DT personifica exactamente o oposto deste modelo; olha-se para ele – desde a expressão corporal às palavras e aos actos – e assiste-se à personificação da vacuidade intelectual e da malignidade, do interesse exclusivo por si próprio, da arrogância, da prepotência, da maldade, da irresponsabilidade, da leviandade, da absoluta falta de respeito pelo próximo, pela justiça e pela dignidade... 

Todavia, o que mais me choca não é o desrespeito pelos valores que tais características denotam, é algo de muito mais assustador: a total ausência, já não da consideração, mas do (re)conhecimento dos mesmos, um nada total na matéria, mas um nada que não traduz mera ausência, mas pura violação.

Daí, ver em DT – e na camarilha de oligarcas que o acompanham e/ou comandam – não só uma pessoa má, mas um verdadeiro ente maligno, só ao nível dos vilões da literatura/filmografia do Super-Homem, Batman e afins.

Se dúvidas pudessem existir, veja-se o impensável episódio de bullying que DT e o vice-presidente J.D. Vance (já para não falar num jornalista servil, cujo nome não retive nem vale a pena pesquisar) protagonizaram, no dia 28 de Fevereiro passado, na Casa Branca, contra o Presidente da Ucrânia, #Volodymyr Zelensky – episódio do qual, todavia e contrariamente ao que alguns afirmaram, foram aqueles a sair humilhados, enquanto este, dada a sua reacção, marcada pela compostura, humildade, sensatez e contenção, deu uma verdadeira lição de dignidade e bom senso.

5

Portanto, CSG, um SENHOR, permanece e permanecerá nos corações humanos (dotados de humanismo) merecedor de admiração e gratidão,  já DT, um vilão entre vilões, nunca penetrará nesses corações e desaparecerá, um dia, no poço do mais profundo desprezo, nojo e, por fim, esquecimento.

Infelizmente, pelo caminho e como já se vê, causará muitas desgraças, mas o sofrimento resultante das mesmas sempre poderá ser mitigado pela lembrança de que existiram e – quero crer! – ainda existem verdadeiros Homens (da craveira de CSG), cuja memória e obra persistirão, para sempre, merecedoras de admiração e gratidão.

Assim e mais uma vez, OBRIGADA, SENHOR GULBENKIAN!

FORÇA, SENHOR ZELENSKY

E, já agora, ESFUME-SE DEPRESSA, nem-sei-como-lhe-chame Trump!)




domingo, 26 de janeiro de 2025

O INEFÁVEL SIGNIFICADO DE UM F

Em minha casa, há uma daquelas escadas de bambu frequentemente usadas como suporte de toalhas ou outra coisa qualquer.
Comprei-a porque sim, ou melhor, porque gosto, gosto de bambu, gosto do design da peça e gosto de a ter simplesmente encostada a uma parede, hoje uma, amanhã outra (pois é leve, ocupa pouco espaço e apraz-me variar a decoração).
Não a uso como toalheiro, aliás, não lhe destinei qualquer propósito definido, a não ser o de estar ali. É certo que, de vez em quando, me sirvo de um dos seus degraus para instalar qualquer coisa, por exemplo, uma peça de roupa à espera de melhor poiso, um boneco de natal a perseguir um fio de luzes coloridas que trepam da base ao topo, ou algo igualmente passageiro, tão transitório como, por exemplo, as estações do ano (quando existiam) ou um estado de espírito (estes existem e, tanto quanto suspeito, assim hão de continuar, ao menos os meus).
Há, todavia, dois habitantes – únicos e permanentes – da minha escada de bambu, a saber, um pequeno macaco castanho, feito de borracha maleável, suspenso do degrau mais alto, mercê do abraço dos seus bracinhos magros,  e uma letra de metal, um F espalmado e colorido de flores, presa por uma cordão à parte de cima duma das barras laterais, mais ou menos ao nível do macaco.

Abro um parêntesis, porque acabam de me assaltar dois pensamentos, aliás, uma recordação e uma dúvida: a primeira é do João, aí pelos cinco anos, a querer subir a escada, aventura que fui a tempo de impedir, com os inerentes benefícios para ambos (ele e a dita); a segunda, é sobre se a empregada se dá ao trabalho de a limpar, o que não tenho averiguado, mas devo fazer, pois, sendo de cor castanha clara, cor de cana, não dá para distinguir, à vista desarmada, se acumula ou não pó; impõe-se avançar para o teste do algodão, por assim dizer.

Prosseguindo, para chegar à razão deste texto, a saber: o significado daquela letra F, em que a frieza do metal contrasta com a calidez do desenho florido.
Comprei-a numa época em que, por vezes, sucumbia ao impulso consumista de adquirir certos objectos, não necessariamente pelo seu valor, mas por qualquer outro critério, maxime, a harmonia estética, a evocação de certas memórias ou o carácter lúdico (o macaco releva deste último).
Ora, a verdadeira razão daquele F não deixa de constituir um mistério. Não há dúvida de que é um bonito efe e que, de resto, corresponde à primeira letra de um dos meus nomes próprios. Mas esconde-se ali qualquer coisa, podendo ir de um desejo de Felicidade à formulação de um desabafo de acentuada zanga, que enuncio em inglês, para não abandalhar este blog; sim refiro-me ao Fuck, aliás tão celebrado na filmografia americana – fuck isto, fuck aquilo, tu ou aquele, esta fucking situação ou outra fucking coisa e um longo etc. de fucks/fuckings
Lamentavelmente, algo me leva a crer que é esta última a identidade escondida da minha letra F, por mais fucked que isso possa ser... ou parecer.

Se este não-assunto merecia um texto? É claro que não. Mas vou falar de quê, do estado do mundo, sobretudo depois da eleição dos fucking oligarcas americanos para o desgoverno do mundo? Da aplicação do conceito da matrioska enquanto método de dissimulação de roubo de trolleys por um fucking deputado dum fucking partido político (?), cujo lema é a limpeza do país e cuja obsessão é a criminalidade dos imigrantes? Da mais recente fucking idiota proposta do sr. Trump para recambiar os Palestinianos para a Jordânia e o Egipto?

Enfim, que se fuck this, também só lê quem quer, embora eu goste que leiam. Caso contrário que fucking idea justificaria o trabalho de o publicar?


  

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

MARIA NINGUÉM (5): (A)TRAÍDA POR UMA MACIEIRA


os cães acabaram por decidir o curso dos acontecimentos. tomados de uma impaciência crescente, puxavam violentamente as trelas, por entre latidos vigorosos, em tal nível de exigência e urgência que o afonso acabou por ceder.

aparentando certo desconforto, enfatizado por um encolher de ombros, olhou-me em modo de pedir desculpa e disse, "olha, tenho de os levar ao passeio nocturno, são muito indisciplinados e, quando atingem este grau de desatino, não consigo dar conta deles; podes acompanhar-me ou, se preferires, esperas-me aqui em casa e falamos quando eu voltar, aí em meia hora." 

hesitei, pois o cansaço era demasiado para o acompanhar no passeio e, por outro lado, não sabia bem que conversa poderíamos vir a ter nem, tão pouco, se me atreveria a esperá-lo em casa, não fosse isso ser ou parecer abusivo. acabei por responder que o aguardava ali mesmo, no patamar da entrada, onde me deixei escorregar até ficar sentada de encosto à porta. "como queiras", disse ele, partindo atrás dos cães, arrastado por fortes puxões das trelas.

confesso que, ao vê-lo desaparecer do meu campo de visão, senti um misto de alívio e decepção, afinal não sabia bem o que me tinha levado de volta àquele lugar e, muito menos, o que procurava encontrar lá, já para não dizer que semelhante encontro escapara completamente às minhas previsões, aliás, inexistentes.

foi assim que, após ter descansado uns minutos, me levantei, a custo mas com determinação, e zarpei dali, tendo o cuidado de o fazer na direcção oposta à que ele tomara com os seus galgos, não fosse cruzar-me com ele.

ao fim de um tempo impossível de calcular e após ter calcorreado uma vasta extensão de estrada deserta, dei comigo a aproximar-me de uma zona habitada por moradias, a princípio dispersas e depois mais próximas umas das outras. a noite estava cerrada, apenas se vislumbrava o brilho tímido de uma ou outra estrela, bem lá no alto, e das janelas daquelas casas não se escapulia réstia de luz, como se mergulhadas em sono profundo. 

por essa altura, ao cansaço juntava-se-me uma fome rabugenta, assim uns dentes a roerem-me o vazio do estômago, e foi quando vi, pendendo do muro que rodeava uma das casas, alguns ramos de macieira, ornados de promissoras frutas. estiquei um braço e deitei a mão a uma maçã, que, apesar da escuridão, percebi bem vermelha e madura, exalando um cheiro delicioso. ferrei-lhe os dentes com quanta fome tinha e o sumo escorreu-me pelo queixo, enquanto o sabor, fresco e doce, me escorregava pela garganta abaixo, acalmando os dentes ávidos que antes me devoravam o vácuo estomacal. em menos de nada, apanhei outra maçã e outra, que mastiguei com gosto e pressa, sentindo um prazer indizível. depois, acabaram as maçãs ao meu alcance e ousei subir o muro, para aceder aos ramos mais altos. fiquei suspensa num equilíbrio instável, quando uma luz forte, vinda da janela frontal, em que nem sequer reparara, iluminou vivamente a minha desgraçada pessoa. embora encandeada, consegui pressentir uma forma humana, por trás do vidro da janela e, logo de seguida, aberta esta, ouvir a voz esganiçada e idosa de um ser encurvado, exclamar: "mas que vem a ser isto, pensas que estou sozinha e não me posso defender? salta já daí que a polícia está a chegar!"

obedeci de uma forma tão cega e atarantada que fui parar ao interior e não ao exterior do muro. ainda tinha um pedaço de maçã na boca, mas não foi por isso que não consegui falar, era medo e estupefacção o que me paralisava as cordas vocais e, já agora, as pernas. os olhos entretanto habituados à luz, vislumbrei a frágil figura de uma velhota, que, todavia, não revelava qualquer fraqueza ao segurar uma caçadeira apontada na minha direcção sem sombra de hesitação ou tremura.

"és muda?", perguntou. num esforço desumano, lá consegui sair do meu estado de paralisia e articular, embora a custo, uma resposta: "desculpe, senhora, não pretendo fazer mal nenhum, só comi umas maçãs, porque estava com fome e sem rumo."

"sem rumo?, ai isso não duvido! ora chega-te aqui, mas vem com calma e sem ideias, que não me custa nada carregar no gatilho."

aproximei-me, ridiculamente com as mãos no ar, como vira em algum filme, e, fixando um olhar penetrante em mim, a velhota desatou a rir às gargalhadas, baixou a arma e, indicando-me a porta, com um gesto de cabeça, mandou-me entrar.

a medo, sem saber muito bem o que fazer às mãos, cumpri a sua ordem e assim me vi dentro duma casa tão estranha quanto a sua dona. parecia saída dum conto de outros tempos, daquelas em que as mobílias estão cobertas de lençóis empoeirados e, de velhos candelabros, pendem rendas de teias de aranha, não esquecendo o vislumbre de umas cabecinhas de rato a farejarem das paredes esburacadas. se a mulher tinha o nariz adunco, uma verruga no nariz e um carrapito mal alinhado e esfiapado no alto da cabeça esguia, um queixo em forma de cunha e os nós dos dedos salientes como berlindes mal amanhados, pois claro que sim! não, não é verdade, tratava-se de uma velhinha graciosa, de face arredondada – tão arredondada quanto o descair das carnes ainda permitia –, olhos de um azul já desmaiado, a escapulir-se por entre uma tessitura de pregas e rugas que mais parecia o leito ressequido dum rio, mãos delicadas e uns fios de cabelo esparsos, mas bem alinhados.

por entre um sorriso doce, tão doce quanto desdentado, disse-me: "vejo que estás um bocado maltratada e, pelos vistos, com fome, e acredito que não te movem más intenções, assim mo dizem os teus olhos e nem preciso de to perguntar, como aquele da televisão que acaba sempre as entrevistas a inquirir aos entrevistados: o que dizem os teus olhos?", e riu-se, achando-se graça. aliás, teve graça e, eu própria ri, aliás, sorri, apesar de estar tranzida de medo, de espanto e de não sei quantos mais estados emocionais negativos.

acabámos as duas sentadas à mesa duma grande e acolhedora cozinha, onde ela me serviu uma deliciosa ceia de torradas com compota, bolinhos caseiros e uma enorme caneca de chocolate quente, sob a promessa de, em troca, eu lhe contar a minha história e lhe prometer que ficaria um tempo com ela para a ajudar a dar um jeito à casa.

naquele momento, pareceu-me perfeito, bem vistas as coisas, não tinha qualquer alternativa, nem para onde ir, nem o que fazer. 

quando me conduziu ao quarto, anunciou duas coisas, uma, que se chamava sibila, a outra, que dormisse descansada, pois ela se encarregaria de me despertar. não me dando tempo a retorquir fosse o que fosse, sequer um agradecimento, saiu do quarto, murmurou boa noite e fechou a porta. confesso que estava aparvalhada, estado de que saí, como se de um salto, ao ouvir a chave rodar na fechadura. o que mais me pode acontecer?, pensei, mas depois rendi-me ao cansaço e às circunstâncias e tombei na cama macia e empoeirada, deixando-me embrenhar rapidamente num sono quase comatoso, apenas animado pela correria desvairada de uma matilha de galgos, em direcção a um homem refugiado no cimo de uma árvore, de onde pendiam armas no lugar de frutos.


P.S. : este texto é continuação do (post) de 19 de Agosto p.p. e, com sorte, irá prosseguir. (falta o desenho-ilustração, porque continuo sem conseguir carregar fotos para o blog)



terça-feira, 14 de janeiro de 2025

HOJE JÁ NÃO TERÁS AMANHÃ


Ignoro o teu nome, se és homem ou mulher, quem sabe se um dos outros inúmeros géneros, entretanto inventados e que nem sequer conheço.
Ignoro o teu nome e tudo o resto, vi-te a uma distância de metros, eu estacionada no carro, a falar ao telemóvel com uma amiga, contando as desventuras de uma recente intervenção cirúrgica malsucedida, apenas por alto e em tom jocoso, detesto pormenorizar desgraças e lamentar o que não tem remédio (ai, como me chateiam aquelas amigas que curtem desgraças como quem curte amores, só falam de doenças e pouco mais, tudo ao pormenor, esmiuçado com detalhes de macramé!).

Mas não é de mim, é de ti que me proponho falar, embora não tenha muito a dizer. Desconheço quem eras, o teu nome, género, idade, profissão ou falta dela, família, amigos, enfim, a moldura do teu corpo e da tua vida é-me completamente estranha.
Digo, estranha, não alheia. É que te vislumbrei a sombra, por sob o fato preto, quando, acompanhado/a por dois homens, também eles de negro vestidos, davas entrada na limusine cinzento prata.
O teu vulto aparentava fragilidade, talvez tivesses perdido peso, ultimamente, talvez nunca tenhas chegado a ganhar um peso assinalável, ao menos, a ser este o caso, não necessitaste de te preocupar com a balança. 

Mas, que sei eu, que nada sei de ti? De que cor os teus olhos, de que doçura ou amargor os teus beijos — se é que beijavas… —, de viajar, gostarias? e de ler, de amar, de ver as estrelas e o mar? Dançar?
A dúvida mais perturbadora que me assaltou, a mim que nada sei de ti nem nunca virei a saber, foi a seguinte: gostarias de viver? E uma outra, mais pungente ainda, estarias assim completamente desacompanhado/a?
É que, repito, nada sei de ti. 

A não ser que hoje, dia 30 de Dezembro de 2024, pelas cinco e pouco da tarde, vi a sombra de teu frágil corpo, sobre um esquife metálico (assim me pareceu), embrulhada num envólucro negro (manta, plástico?), atado à tua volta, ser transportada por dois agentes funerários, sob a vigilância de um terceiro, do interior dum prédio sito na Avenida Cinco de Outubro, em Lisboa, ali ao pé do cinema Nimas (terás gostado de cinema?) para o interior de uma carrinha funerária, de cor cinzenta prata. Ah!, isto sem que ninguém te acompanhasse.

Se conseguisse desenhar o abandono, recorreria às tintas com que acabo de dar forma a estas palavras.

Por qualquer (obscura?) razão, fiz suposições tão abusivas quanto esperançosas, do tipo, talvez estivesses farto/a de viver, talvez não te tenha custado partir. 
Uma coisa é certa, sejas quem fores ou o que tenhas sido, estejas onde estiveres ou em lado nenhum, desejo-te a paz definitiva do esquecimento, ao menos para não recordares que ninguém te acompanhou à porta, ao menos esta última vez.

Será que alguém chegou a saber quem eras?

(Este texto – que escrevi e publiquei no Facebook, 30/12/2024 — baseia-se num facto real.)



terça-feira, 15 de outubro de 2024

O HOMEM QUE SE DESINTEGROU DIANTE DE MIM

seguíamos no mesmo autocarro, ignoro se com idêntico destino – parvoíce, ninguém partilha destino com ninguém, apenas natureza, a (dita) natureza humana, estranha criatura, cimento dos males do mundo.
ele aparentava uma calma quase diáfana, como se estivesse em estado de yoga, meditação ou simples introspecção, mas sossegada (por vezes, a introspecção vai tão fundo nas entranhas que desatina qualquer mente, inclusive as mais recatadas ou que assim querem parecer).
não reparou em mim, pois, como acabei de contar, seguia, por assim dizer, na dele, uma suave onda muito própria. e, todavia...
a dado ponto, notei-lhe um brilho inusitado nos olhos, algo a destoar da atitude (ou aparência) anterior. embora ao de leve, mexeu-se no assento, desajeitado, como se a pressentir ou a fugir de um qualquer incómodo, uma dor, comichão, guinada, sei lá, não sou bruxa, como poderia saber?
momentos depois, levantou-se, estendeu a mão para o botão de sinalização de paragem do autocarro – será que ainda existem autocarros com tais botões?, pergunto-me agora, não que interesse alguma coisa para o caso – e deu uns passos em direcção à saída.
obviamente, esta conduta seria algo banal, não se tivesse dado o caso de a sua mão, de dedos finos e elegantes, com um dos quais accionara o botão, se lhe ter desprendido do pulso e descido, desamparada, em direcção ao chão, onde se quedou, imóvel e aparentemente indiferente, sem correr atrás do braço a que, até então, estivera ligada e, curiosamente, o homem não voltou atrás para a recolher, aliás, nem pareceu aperceber-se do sucedido.
eu olhava, atónita, e mais atónita fiquei ao constatar que mais ninguém reparara, apesar de a mão continuar ali deitada no chão e o homem caminhar, indiferente, para fora do autocarro, entretanto parado – agora, ao pensar nisso com maior distanciamento, não estou certa de que houvesse mais pessoas no autocarro, excepto o motorista, claro. 
levantei-me de supetão, sustei com um grito o gesto de recomeço de condução do motorista e, por entre desculpas murmuradas, precipitei-me em direcção ao homem, sem saber muito bem porquê.
como se por magia, ele acabava de se desvanecer não sei onde nem como e, após ter varrido, sem êxito, as proximidades e o horizonte mais longínquo com os olhos febris de curiosidade e impaciência, acabei por os fixar no chão, talvez na esperança de aí encontrar o seu rasto. 
a princípio, não entendi bem, mas rapidamente se tornou claro que aquilo era um pé, envolvido numa meia cinzenta, a sair dum sapato preto.
não conseguia despregar os olhos do chão e do que aí se ia deparando ao meu olhar esgazeado de tamanha e tão inusitada extravagância: a seguir àquele pé ainda calçado, uma mão, a gémea da que ficara no autocarro, os mesmos dedos finos e elegantes, quase delicados, uns metros à frente, o outro pé e, de metro a metro – se é que era esta a medida da distância e não outra –, seguiram-se, primeiro um depois o outro, os joelhos, troços de cima e de baixo das pernas, fatias do tronco, os braços e, por fim, a cabeça, a cabeça do homem do autocarro, com os olhos remetidos à serenidade inicial, como se o seu único momento de perturbação, o longínquo momento em que se levantou para pressionar o botão de paragem do autocarro, mais não fosse do que a pressa de se desintegrar, de se perder em pedaços desligados, para, assim, reencontrar a paz.
senti um sopro nas costas, voltei-me, era apenas o vento daquele princípio de inverno e nada mais, nem os restos desgarrados do corpo do homem que eu, estava certa, acabara de ver. sobressaltada, voltei a olhar em frente, também a cabeça já desaparecera. 
vislumbrei apenas um vasto campo aberto, despido de tudo quanto pudesse imaginar-se e quedei-me sem respostas, suspensa na inquietante angústia de ignorar o que sucedera ao homem, que destino tinha sido o seu, já para não pensar no meu.
depois, dei comigo a deambular não sei bem por onde, por que destino, enquanto me interrogava, qual homem?




segunda-feira, 19 de agosto de 2024

MARIA NINGUÉM (4): TRAÍDA POR UM SONHO


senti uma pancada nas costas, que me fez levantar a cabeça, atarantada, e os meus olhos bateram numa cara vermelhusca, cuja boca de dentes amarelos – nem todos... faltavam-lhe alguns – vociferou: "toca a andar que se faz tarde!"

assim de repente, a minha preocupação concentrou-se na pasta das notas, mas durou breve, pois rapidamente despertei por completo e constatei a triste realidade, acabava de passar pelas brasas e, enquanto isso, inventara aquela história estrambólica do milagre dos rolos das notas de cem euros. o desapontamento não foi maior por não estar habituada a milagres, nem sofrer da esperança de que acontecessem. assim, em vez de tombar num desgosto de decepção ou numa raiva de desacontecido, explodi a rir com quantas forças tinha e de forma um tanto descontrolada.

a cara vermelhusca fixou-me, misto de fúria, curiosidade e receio, e, com gesto de braço esticado, indicou-me a porta da rua. as lágrimas afloraram-me aos olhos, mas foi – ou quiçá tenha sido – de tanto rir, abandonei a mesa onde estivera a degustar a sanduíche de fiambre e o galão ou meia de leite ou já não sei bem o quê – nem estou para voltar atrás, a fim de rever o escrito antes – e saí da pastelaria, passando pelo dono daquele  rosto hediondo sem proferir palavra.  ao contornar a montra suja, divisei a minha figura despenteada, a que dei um jeito, fazendo dos dedos pente, e reconstituí a cena: gaja acabada de sair do hospital alapa-se na primeira espelunca que lhe aparece, no intuito de fazer contas à vida, e acaba a fazer contas a rolos de notas de cem euros, inexistentes. o resumo perfeito, disse para comigo, sem poder evitar novo ataque de riso. já era lusco-fusco e tinha de dar um rumo, senão à vida, pelo menos ao corpo, ainda bem dorido e cansado. resolvi voltar ao quartinho do sótão da mansão do Drácula, sem saber se me receberiam de volta.

ou então, não! afinal, sempre ouvira dizer que nunca se deve regressar onde se foi feliz, era hora de complementar: e, muito menos, onde se foi infeliz. obviamente, isso levantou-me o problema de não descortinar ponto de retorno.

sem mais, lembrei-me da casa dos velhotes, para onde, anos antes, o meu pai me tinha despachado e concluí duas coisas, primeira, estava a ser injusta, aí até tinha sido feliz, quero dizer, pelo menos não me tratavam mal, segunda, valeria a pena tentar desafiar o estabelecido, regressar lá, de qualquer das formas, não tinha nada a perder, embora pela simples razão de não possuir nada, mesmo.

por razões óbvias – de qualquer modo, não perderei tempo a explicá-las –, recordei a morada. caminhei com a pressa de quem espera encontrar uma mala de cabedal cheia de notas de cem euros – novo ataque de riso – e, uma vez chegada, achei por bem consultar o écran do telemóvel, antes de tocar à campainha. Oh diabo!, exclamei, ao constatar que as onze já caminhavam para a meia noite.

por qualquer acaso do destino, se é que isso existe, a porta abriu-se, dando passagem a uma explosão de luz e, envolto nela, um ser misterioso (anjo?) que, já próximo de mim, se converteu num homem aí dos seus quarenta anos, acompanhado de dois cães, esbeltos galgos, nos quais parecia concentrar-se toda a energia em falta na minha desgastada pessoa. por alguma razão, lembrei-me de um livro, "O Homem Que Gostava de Cães", do Leonardo Padura, e pensei se..., ora, não pensei nada, afinal, sabia lá eu da existência desse livro ou autor!, mas tal não significa que, mais tarde (e por mera hipótese), não o tivesse vindo a ler e a apreciar sumamente.

o homem que parecia gostar de cães – via-se pela maneira como lhes segurava a trela e lhes dava ordens, no caso, para não se lançarem sobre mim, toda encolhida a uma canto, a resguardo da maior exuberância da luz – fixou-me com os olhos semicerrados e, sem mais hesitação, disse: "tu não és a..., aquela rapariga que trabalhava para os meus avós, a..., olha, desculpa, não me lembro do nome, já lá vão uns anos." – e sorriu, como quem pede misericórdia. "não sei se sabes, mas eles gostavam muito de ti, creio que até pediram aos meus pais..." – hesitou por instantes – "bom, isso agora não interessa, eles não..." – interrompeu-se, enquanto me fitava, não sei se a reflectir em algo ou à espera de uma interpelação.

"sim, sou essa", respondi, completamente às escuras sobre a identidade do meu interlocutor, afinal, não me lembrava de ninguém a frequentar a casa dos velhotes, excepto a criadagem, ou seja, os meus colegas. mas, de repente, ocorreu-me uma altura em que uma filha deles, acompanhada do marido e do filho, rapaz uns anos mais velho do que eu, apareceram lá em casa, não sei com que objectivo, mas, a avaliar pela duração da visita, pelas vozes alteradas que as paredes da sala não conseguiram reter e pela tensão das despedidas, concluí que tinham ido apenas fazer a prova de vida e do estado de conservação dos velhos, certamente, para melhor avaliarem o tempo de espera da herança.

algo deve ter transparecido do meu olhar, que levou o homem que parecia gostar de cães a afirmar, "sim, sou eu, o afonso, estive contigo na cozinha enquanto os meus pais falavam com os teus patrões, a quem tinham vindo pedir ajuda para a compra de uma casa nova, com piscina e tudo." – reparei que o dizia com tristeza, como se num desacordo visceral com os progenitores, e adiantou – tal qual se em sequência lógica: "enfim, bem gostava de ter passado mais tempo com eles, com os meus avós". levou o olhar para longe e, após uma pausa, regressou com os seus aos meus olhos e perguntou, em jeito amigável: "e tu, o que fazes aqui?" sem saber muito bem porquê, respondi, "eu também", logo me apercebendo da incongruência da resposta.

e assim ficámos, parados no meio da noite, cada qual embrenhado em seus pensamentos ou anseios.  


P.S. : este texto é continuação do (post) de 14 de Junho p.p. e, com sorte, irá prosseguir. (falta o desenho-ilustração, porque continuo sem conseguir carregar fotos para o blog)



sexta-feira, 2 de agosto de 2024

PORTO, O (MEU) LADO DE LÁ


Vim parar a este mundo numa pequena cidade, lá para trás das montanhas. Mal tomei conhecimento de mim, passei a detestar a cidade tanto quanto amava as montanhas e creio – ou invento? – ter dado em sonhar com o que existiria para além delas, sobretudo do imponente Marão, que, ao tempo, quando ainda havia estações do ano, costumava cobrir-se de branco, no inverno.

Considerava a cidade enfadonha, desinteressante, inclusive, mesquinha, e apenas conseguia apreciar-lhe a deslumbrante paisagem das serras circundantes e a perspectiva de a abandonar, coisa (esta) destituída de facilidade, visto meu Pai não ser dado a viagens, mesmo em tempo de férias. Apesar disto, por razões de ordem vária, algumas profissionais, uma vez ou outra, ele necessitava ir ao Porto, ida e volta no mesmo dia, de carro (não dele, nunca quis), quase aventura, pois ainda não havia IPs e muito menos auto-estradas – nem da existência de semelhantes avanços se suspeitava – e o ziguezaguear pela estrada de ligação entre as duas cidades, maxime, as curvas da serra do Marão, não se afigurava tarefa ligeira ou isenta de perigo e ocupava um tempo que aqueles cento e poucos quilómetros multiplicavam por muitas horas e enjoos quase certos.

A partir de dada altura, creio que por volta dos meus nove anos, foi-nos permitido, ao meu irmão e a mim, acompanharmos os Pais naquelas extraordinárias viagens. É esse o marco temporal do meu estreado deslumbramento: primeiro, sair da mal amada cidade natal, segundo, atravessar o Marão para o lado de lá, o do ignoto promissor, e terceiro, conhecer a cidade do Porto, incluídas as suas praias mais próximas, com relevo para a de Leça da Palmeira (onde visitámos amigos aí em férias).

O Porto ofereceu-se, pois, a meus olhos (entenda-se, coração e mente) com a marca do longe, da porta aberta para o (ainda mais) longe, e foi amor à primeira vista. 

É certo que, a cada visita, o tempo escasseava, mas era o suficiente para compensar do isolamento e pasmaceira em que me decorria a vida e me recarregar as baterias do sonho (feito realidade por breves horas). E se eu sonhava! Desde logo, com aquela ambiência imponente e cinza que tanto me atraía – como, anos mais tarde, a de Londres ou Edimburgo –, não fosse o outono a minha estação preferida. Depois, com os tesouros que aí se podiam encontrar: em  ocasiões anteriores, a Mãe levara-me de lá um grande boneco de plástico – veio a ser baptizado de Toninho e ainda o conservo – e, mais tarde, quando já me era permitido ir,  fui autorizada a comprar um outro boneco, também de plástico e com roupa incluída, no caso, uns calções amarelos e um casaco de capuz, em xadrez castanho e amarelo, culminando nuns sapatinhos brancos – também o mantenho, bem como à respectiva indumentária. Em suma, havia aquele bazar fantástico, de onde vinham esses meus amados filhos de brincar.
 
Mais tarde, já adolescente, passei a interessar-me por outras montras e foi no Porto, nas suas magníficas lojas de artigos de pele, que comprei, em duas ocasiões, duas das minhas primeiras carteiras, uma de cor camel, outra azul escura, com bolsos exteriores, verdadeiro sucesso de modernidade, peças que dava vaidade possuir e usar.

Todavia, melhor que tudo isso, eram os meninos da Foz (como, mentalmente, os apodei), jovens de calças cinzentas e blazers azuis escuros assertoados, que se passeavam em descapotável e me induziam devaneios com um mundo que, nada tendo a ver com o meu, almejava atingir – na verdade, vim a usar saias cinzentas pregueadas e blazers azuis escuros assertoados, mas, descapotável, apenas tive um Citroen Dyane, de cor bege, meu primeiro carro, que troquei de velho e com muita pena.

Por essa altura, a imaginação permitiu-me criar um mundo alternativo, sem o qual me teria sido (ainda) mais penoso aguentar a realidade fechada em que vivia ou a realidade em que vivia fechada, e, para isso, contribuíram significativamente as visitas à cidade do Porto.

Aquando das mesmas, passeávamos e fazíamos compras, na Rua de Santa Catarina e suas adjacentes, como a de Santo António, visitávamos o mercado do Bolhão, e acabávamos a tarde a lanchar num grande café situado na Avenida dos Aliados, cujo nome não recordo.

Ignoro se é a imaginação da memória a pregar-me partidas, mas acredito ter visto as primeiras iluminações de Natal no Porto – à minha cidade só chegaram anos mais tarde, já eu a tinha abandonado.

Aos dezasseis anos, finalmente – e por motivo dos estudos universitários do meu irmão e, um ano depois, dos meus –, emigrámos para Lisboa. Aleluia!, deixei, sem sombra de saudades, a terrinha acanhada em que me fora dado nascer e estiolar, à qual não regressei durante cinco anos e onde apenas voltaria mais tarde e só por ocasião de férias, para visitar meus Pais.

Nunca esqueci o Porto – que, aliás, preenchia o meu recanto de devaneio muito mais do que Lisboa, mesmo sendo esta, sem hesitação, a minha cidade-para-viver, da qual muito gosto. Apesar disso, só esporadicamente lá regressei, em passagens breves, sempre maravilhosas, a caminho ou de regresso da cidade natal – sem contar com duas ocasiões em que fui e vim no mesmo dia, com o objectivo de ver duas exposições, uma da Paula Rego, outra do Francis Bacon (ambas em Serralves e ambas excelentes).

O Porto sempre permaneceu como uma memória preciosa e aparece-me, de tempos a tempos, nos sonhos – refiro-me, agora, aos que ocorrem durante o sono –, como se resista a deixar-se esquecer – ignorante da impossibilidade de tal risco! –, como quem chama por mim.

De há uns tempos para cá, andava com a ideia de o revisitar, quando dois factores aceleraram a passagem à acção: o anúncio da exposição da Yayoi Kusama, no Museu de Serralves, e, posteriormente, a leitura do romance "Morro da Pena Ventosa", de Rui Couceiro, que se desenrola na cidade, aliás, erigida a personagem (v. post de 16 do mês passado).

Assim, há umas semanas, meti-me a caminho, com a intenção de visitar tal exposição, os lugares da minha infância e adolescência – sem esquecer a Foz e as praias até Leça da Palmeira –, e os do citado romance, em particular, a zona da Sé e da Pena Ventosa. Ah! e não olvidando a Livraria Lello.

Chegada ao hotel – situado em Gaia, para fugir à (presumível) confusão do centro do Porto, e com vista para a foz do rio Douro –, larguei a bagagem e segui para o Museu de Serralves, onde pude apreciar a fantástica exposição da YK, não sem antes me ter visto forçada a andar às voltas, no intuito de estacionar o carro, o que, a custo, lá acabei por conseguir, e após levar com ondas de poeirada em cima, devido a obras no local (aproveitei, ainda, para ver uma outra exposição ali em curso, dedicada ao 25 de Abril, por sinal, bem interessante).

No dia seguinte, sob chuva e nevoeiro ou, no mínimo, neblina – tempo que até aprecio, mas não me deu grande jeito – fui à (re)descoberta da Foz e por aí adiante, até Leça da Palmeira. Gostei do passeio (como não?), amei rever aquele mar, mas, dado o estado do tempo, nem cheguei a apear-me.

Retrocedi, então, para o centro, larguei o carro no Silo Auto e avancei para a saudosa Rua de Santa Catarina. Sendo já tarde, a fome a apertar e sem tempo ou paciência para procurar um restaurante decente, decidi almoçar no centro comercial Via Catarina, que, há uns anos, era um local sossegado e agradável, mas agora me pareceu uma espécie de Colombo (em miniatura) – o buliçoso centro comercial de Lisboa onde não entro aí há uns três anos, nem faço tenção de entrar. Mal me despachei, saí a correr, gulosa duma sobremesa e café no Majestic, onde fui muito bem atendida e, de imediato, arquivei a experiência desagradável do almoço. Um parêntesis para referir que não deixei de recordar o maravilhoso café Tortoni, de Buenos Aires, de onde – não digam nada a ninguém – trouxe de empréstimo uma ementa.

O percurso pela rua de Santa Catarina deixou-me triste, não por não antecipar a mudança – sabia que o Porto, à semelhança de Lisboa e de tantas outras cidades, tem sido invadido por turistas e que as lojas antigas (das minhas compras acima mencionadas) deram lugar a comércios de merchandising turístico, logo, desprovidos de qualquer gosto, e a lojas das marcas que habitam todo o mundo, globalização oblige. Sendo certo que ainda se mantêm as belas fachadas de prédios antigos, a rua está (ou apareceu-me) completamente desfigurada e inundada de gente chefiada por guias de bandeirinha em riste (quem sabe se uma destas não seria Beta, a protagonista do supracitado romance...). O prazer de observar e fotografar tropeça nos múltiplos corpos que se nos atravessam à frente e o encanto esvai-se. Ainda procurei a Rua de Santo António (não descortinei placas de identificação das ruas, possível distracção minha), mas a indicação da empregada duma ourivesaria antiga, ainda do tal tempo, onde, vá-se lá saber porquê?, comprei um anel de prata com um coração de zircónia, levou-me à Rua de  Trinta e Um de Janeiro (vim a saber, via internet, tratar-se de rebaptização), que desci a pique até à Estação de S. Bento, no intuito de seguir para a Livraria Lello. Entrei e, na tentativa de fotografar os bonitos painéis de azulejos, capturei uma data de pessoas.

Começava a sentir-me vítima de frustração e cansaço (não por ter andado muito, mas, talvez, porque a decepção também cansa). Empreendi, a custo, a subida da Rua dos Clérigos, com destino à Livraria Lello e, inevitavelmente, deparei-me com uma fila a desenhar curvas e contra-curvas. Dirigi-me ao porteiro e perguntei se os nacionais compradores de livros também tinham de ir para a fila, tendo-me respondido que nacionais ou turistas era igual. Limitei-me a espreitar o interior belo e sombrio, dei meia volta e comecei a descer. Outro parêntesis para recordar Buenos Aires e a sua magnífica Livraria Ateneo, de entrada livre e que, para mim, continua a ser a mais bonita onde estes meus pés que o fogo há de engolir já tiveram a sorte de pisar.

Por essa altura, apenas desejava apanhar um táxi até ao meu carro e regressar ao hotel. Foi difícil, mas lá consegui, perto da estação de S. Bento, onde um acabava de deixar (mais) uma turista. O taxista meteu conversa, gabando o meu "sotaque lisboeta" (assim disse!), dirigindo-se a mim por querida (!) e não se inibindo de expelir um palavrão. Tudo com ar deveras castiço, não levei a mal, tanto mais que, sendo tão curta a distância para o Silo Auto, me dei por muito feliz de haver um taxista disposto a transportar-me. Não que o tivesse feito, pois, a dada altura, avisou, sempre com enorme simpatia, que me deixaria num dado ponto, não longe do destino, pois continuaria para o aeroporto (turistas a sair como fornadas de pãezinhos quentes, pensei) e não lhe dava jeito deixar-me mesmo junto do Silo Auto. Não aceitando pagamento por meio electrónico, estendi-lhe uma nota de dez euros, para a qual alegou não ter troco e ir procurá-lo, pelo que saiu da viatura, mas, de imediato, retrocedeu e apresentou-me uma nota de cinco euros, acompanhada da pergunta/afirmação, "fica assim?" Claro que sim, aliás, o taxímetro nem quatro euros atingia. Lá seguiu, todo sorridente, "é perto, querida, agora vai em frente, vira ali à esquerda e depois à direita e está lá", disse. Era verdade, não tive de andar muito para reencontrar o meu carro. 

Pior foi sair dali, quero dizer, do centro do Porto, para regressar a Gaia. Foram tantas as voltas e tão demoradas – agora, eram carros e mais carros em vez de turistas e mais turistas, a cruzarem-se-me no caminho –, que cheguei a admitir um ataque de doideira do Waze. O regresso só não demorou mais porque cometi umas tropelias automobilísticas pelo caminho, mas lá que foi moroso e labiríntico, foi. Por isso, no dia seguinte, desisti de reentrar na cidade a fim de calcorrear a tal zona do Morro da Pena Ventosa e regressei a Lisboa.

É caso para dizer que, desta vez, não reencontrei o meu Porto, mas não alimento qualquer dúvida de que ele continua lá, sob a camada do bulício e da confusão com que me deparei, e, sobretudo, continua , dentro de mim, intacto, como quando a Rua de Santo António ainda não tinha voltado a ser designada de Trinta e Um de Janeiro. Ignoro se o meu sonho recorrente sobre o Porto insistirá em visitar-me, mas estou certa de que, no que depender de mim, hei de regressar ao Porto, quanto mais não seja para cumprir o desejo de visitar a zona da Pena Ventosa e, sempre, para revisitar o local que constituiu o alimento inicial do meu desejo pelo que está para lá das montanhas, sejam elas quais forem, e que me tem levado por viagens maravilhosas.

O Porto será sempre o (meu) lado de lá!

P.S. Quando preparei esta viagem, consultei um livro que já nem me lembrava de ter, intitulado  "Caminhar pelo Porto/7 percursos pelas histórias e segredos da cidade", da autoria de Germano Silva, autor que, imagine-se!, é citado no romance "Morro da Pena Ventosa". Gostei da coincidência, como gosto sempre deste cruzamento com a (nossa particular) realidade que a literatura (bem como o cinema), tantas vezes e a par de tudo o resto, proporciona. Quem sabe se a decisão de criar este texto não nasceu !

Só mais isto: razões misteriosas, situadas para além da minhas capacidades de compreensão e resolução, não me permitiram ilustrar este post com fotografias, o que muito gostaria de ter feito. Quando, por acção de um qualquer cérebro informático, a questão estiver resolvida, virei suprir esta lacuna.