segunda-feira, 4 de março de 2024

MARIA NINGUÉM (2): TRAÍDA POR TROPEÇÕES


conforme desabafei no relato anterior, após a segunda queda, ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. acontece que chamaram o INEM, não que me tivesse apercebido, só acordei na barriga da ambulância, por sinal, bem estranha, uma cara (ou seriam duas?) debruçada sobre mim a medir-me ou apalpar-me não sei o quê, fios pendurados de tubos espaciais e máquinas uivantes. senti-me conduzida ao ventre da minha mãe, como se alguma vez tivesse conservado memória de por lá ter balançado os meses do costume, talvez menos, creio haver sido expulsa em modo prematura. desse local, evoluí para recordações outras, não pelo seu mérito, apenas por razão e fundamento do meu caminho pela vida:

lá em casa, éramos menos que muitos, apenas três. caso a minha mãe não tivesse morrido logo depois de me abandonar ao mundo (e talvez por isso – nunca ninguém se dignou informar-me), havíamos de somar muito para cima desse número, que eu bem via como se povoavam de múltiplos seres as casas da vizinhança, bairro malcheiroso e barulhento onde passei os primeiros anos desta minha existência. a avó, mãe de meu pai, este e eu, três gafanhotos a tropeçar na escuridão daquele tugúrio que, de vantagem em relação aos dos vizinhos, só possuía a de ser maior, não por dispor de mais espaço, antes devido à redução de ocupantes. mesmo assim, tropeçávamos uns nos outros. certas vezes, era a mão do meu pai que tropeçava na minha cara, quem diz cara, diz rabo ou diz cabeça, braço ou onde calhasse. outras vezes, era a garrafa, já tão menos de metade que até fazia sede, a tropeçar no gargalo dele, do pai. a avó só tropeçava de olhos, batiam na minha figura ou na do outro e estremeciam, não sei se de pena, desgosto, indignação, desdém ou de que porra. era muito curta de idade para saber interpretar sinais, de resto não possuía estudos de psicologia, nem de psicologia, nem de quase nada, que aquilo da escola primária exigia motivação e a minha era só uma, divagar.

sempre me perdi e continuo a perder-me por divagar, divagar por realidades várias, e não pensem que não incluem livros, que, se não são livros lidos, são livros pensados e costurados por mim, com princípio, meio e fim, embora nem sempre contenham uma história ao gosto de toda a gente – a bem dizer, nem toda nem nenhuma, pois ninguém os lê. mas eu aprendi a ler, fiz até muita questão nisso, nisso e na geografia, ai!, como eu gostava de percorrer o globo terrestre com os meus pequenos dedos encardidos, unhas negras de desafiar a terra e as cascas das árvores e tudo o que me despertasse a curiosidade de saber o que se passava lá por baixo, lá por dentro. ainda bem que não dispunha de tesouras ou facas ao alcance da mão, nisso (e não só) a minha avó mostrou-se deveras cuidadosa, talvez visse para além da realidade aparente, talvez fosse essa a função do tropeçar dos seus olhos vagabundos. ah!, o que quero dizer, é que, caso tivesse esse tipo de instrumentos à mão, talvez experimentasse num gato ou num cão da vizinhança, não por maldade de ferir ou de matar, apenas por sede de conhecimento. eu tinha de saber por experiência, motivo por que a escola não se me deu muito bem.

também, ainda que desse, não teria mudado nada, pois o meu pai, nem dez anos ainda eu alcançara, pensou, deliberou e executou, pegou em mim e vendeu-me em contrabando, melhor, alugou-me, por uma quantia mensal mais o ganho de se ver livre de mim. nessa altura, quando parti, o tropeço dos olhos da avó caiu para dentro dos meus e fiquei com a impressão de que uma parte deles me rolou para dentro, onde permaneceu até à eternidade, que é onde ela já habita há uns anos, desde o enfarte fulminante, posto que a minha memória se encarrega de zelar por isso. 

quanto ao outro, o meu pai, foi uma cirrose – desengane-se quem estava à espera de algo mais original – que o levou para os infernos onde se cruzam garrafas e chapadas, mulheres perdidas em partos prematuros e filhas menores alugadas por dez réis de mel coado, como dizia a avó, que esteja bem, lá onde a observo – fazendo de conta que  habita algum lugar para lá do meu interior, onde a guardo como o lobo mau guardou a avó da capuchinho vermelho, mas, obviamente, com diversa motivação e contexto. ele, o meu pai, okay, estou para aqui a falar nele, mas isso não significa eternidade, esta acontece quando (enquanto) a memória guarda, zela e cuida. quanto a ele, a memória é mero pretexto para mais um destes livros, no caso, mero folheto, construído do nada. ah, pois, o facto de lerem isto não equivale a verdade, quem vos disse que não se trata, apenas, do cruzamento de palavras a passar-me – a passar-vos – pelos neurónios?

de resto, a minha infância, não posso dizer que tenha sido infeliz ou feliz, não por falta de recordações, mas porque as infâncias não são tempo nem lugar de análise aprofundada e valorativa dos acontecidos: estes vivem-se e é tudo – tudo, tudo, não digo, pois o que acontece, acontecido está, integra-se, entranha-se e não há maneira de desacontecer. mais ou menos como o amor, só mais ou menos, porque este, bem vistas as coisas, pode acabar por desacontecer, basta pensar que a dor, uma grande dor, pode bem matar um amor, mesmo um amor enorme (ou não?).

já agora, só para esclarecer e evitar confusões – estou mesmo a ver que já me imagináveis jovem prostituta –, aqueles onde o meu pai me pôs de alugada eram uma família de velhos, velhos abandonados como convém, que os novos andam muito entretidos a esquecer que um dia – com sorte ou azar, consoante – também serão velhos. eram uma família de um homem e uma mulher, casados. apesar de muito ricos, tratavam-me bem e não queriam que passasse fome, metia-lhes impressão a minha caixa de ossos e o rosto esquálido. mas depois morreram e eu, bem, tive de ficar por minha conta, mas, a bem dizer, até aí, também tinha estado mais ou menos por minha conta, apenas que menos alimentada e com os olhos da minha avó, enquanto existiram, a tropeçar, atentamente, nos meus.

só muito mais tarde fui parar àquela outra casa onde, certo dia, me esparramei pelas escadas abaixo. casa, é modo de dizer, aquilo era um casarão, mais parecia um castelo... do Drácula. 




P.S. : este texto é continuação do (post) imediatamente anterior e, com sorte, irá prosseguir.




segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

MARIA NINGUÉM TRAÍDA PELAS ESCADAS


pronto, havia de ser logo hoje, ainda nem madrugada acabada de desadormecer. sem saber bem como, ignorante que sou dos aconteceres fortuitos (e mesmo dos outros, a bem da verdade o digo), esbardalhei-me pelas escadas abaixo, sem tempo nem cabeça para contar os degraus, só que eram muitos, não uma simples meia dúzia ou, vá lá, dez, mas uma escadaria em grande estilo, como as das mansões dos ricaços nos filmes de Hollywood.

estava a dizer, esbardalhei-me por ali abaixo, como carro sem travões em descida íngreme, as várias saliências do meu corpo (e não são poucas, magra que estou, qual espantalho) a embaterem a eito e com estrondo nas esquinas dos degraus, a cabeça, um ombro, o outro ombro, as ancas, as mãos enroladas numa impossibilidade de defesa, os pés torcidos, um sapato descascado a perder-se pelo caminho abrupto, e, num ápice que durou décadas de eternidade, eis-me cá em baixo, completamente esbardalhada, já disse, mas não me canso de repetir, que isto das histórias de desgraça não são nada se não se repetirem até à exaustão.

acabada de aterrar, encontrei os meus olhos fechados, os olhos que tenho negros, da cor de um poço sem fundo, do tamanho daquele onde acabara por me deixar engolir. a boca estava meio distorcida, creio que a tentar recuperar do espanto, mas talvez fosse a tentar evitar gritar, sim, porque, naquele momento, ali e então, eu desconhecia o meu estado geral, nem sequer se conseguiria reunir os meus pedaços e levantar-me para ir avaliar os estragos.

ai, os estragos!, minha aflição mor, a madeira impecável de cera, polimento e brilho, os degraus arreganhados para mim, a olharem-me de alto, e eu ainda sem saber se os ferira em algum lado, lhes arrancara uma lasca ou, embora menos grave, lhes sujara o esmero da limpeza, por exemplo manchando-os com o sangue que me escorria pelo nariz dorido, entretanto a ganhar forma de batata e – parecia-me, só pelo sentir – a entortar para um lado (pensei: com sorte é para o lado direito, talvez corrija o desvio para a esquerda, vindo de nascença ou, quem sabe, duma chapada perdida no tempo! surpreendi-me com este pensamento positivo, nada adequado a tão aflitiva situação, mas sou mesmo assim, quando menos se espera, quero dizer, quando menos o espero, lá estou eu a variar, a perder-me em pensamentos paralelos que tanto podem fazer sentido, como era este o caso, como revelar-se absolutamente abstrusos).

e não era apenas isso, também do canto da boca me deslizava um fio de sangue peganhento, a cheirar a metal, vindo não sei de que recôndito ponto interior. procederia do estômago, dos pulmões? esta suposição assustou-me um bom bocado, assim do tamanho de um grande cacho de bananas da madeira, pequeninas, mas muitas, muito juntas (imaginei).

levei a mão à boca e senti um buraco não previamente detectado, não me refiro ao formado pela boca aberta, mas um mais pequeno, a cova de um dente, pelo menos um dente, concluí sem dúvidas, mesmo na ausência de espelho que o confirmasse. e as minhas preocupações recrudesceram, que seria feito do dito pedaço de marfim, é disso que são os dentes, certo?, ter-se-ia enfiado no primor da escadaria, rasgando-lhe o esplendoroso madeirame?

continuava sem saber se poderia voltar a reunir os meus pedaços soltos apenas ligados pela dor, uma dor todavia comum, espalhada por todo o lado, nuns sítios mais intensa do que noutros, é certo, mas ressoando em uníssono, em modo de campainha estrídula e, em alguns pontos, de chama acesa.

digo, estava eu ainda sem saber se… e, portanto, ignorando se voltaria a poder levantar-me e dei comigo, naquele decúbito de estendida-feita-quase-morta, a olhar para a escadaria, da base ao topo que mal conseguia alcançar, tal era a sua magnitude e imponência. os meus olhos ainda não estavam bem abertos, creio que algo inchara pelo lado de fora, das pálpebras e das olheiras, e os fez ficarem tão, mas tão pequenos, que não alcançavam o que eu pretendia me relatassem: os eventuais (quase certos, só por milagre não) estragos nas preciosas escadas.

então, insinuou-se-me este pensamento: se, quando comecei a descer a porra das escadas, as tivesse olhado com tanta atenção como agora, só que de cima para baixo e não de baixo para cima, de certeza que não me tinha deixado desabar por aí abaixo àquela velocidade furiosa que já se sabe. mas, como diz não sei quem, o que está feito, feito está. onde andaria eu com a cabeça ou, melhor dizendo, com os pés, quando me lancei naquele mergulho vertiginoso (credo, até dá para imaginar um empurrão prodigalizado por alguma força do mal, ele que as há, há, é como as bruxas)?

ouvi passos e assustei-me, quero dizer, assustada estava eu, o caso não era para menos, ainda não  alcançara fazer o balanço dos estragos na porra da escadaria, com o devido respeito pela sua magnificência e pelo carinho e atenção com que sempre a tratara (sim, era eu a encarregada de zelar por sua excelência aquela puta, quero dizer, pela maravilhosa escadaria e, apesar de sempre me terem feito confusão as atenções que me eram exigidas para com a dita, como se não passasse de um local vocacionado para levar com os pés, o facto é que lhe dedicava um certo carinho).

adiante, ouvi passos, desviei os olhos do meu objecto de indagação e, a grande custo, elevei-os na vertical, onde pressentira umas sombras. e foi aí que dei com os olhos dele, muito arregalados e a espumarem de raiva. encolhi os meus pedaços soltos – ainda não estava certa de os conseguir reunir – e ouvi, vindas da caverna malcheirosa e cuspideira da sua boca desguarnecida de lábios (aquilo mais pareciam duas linhas desenhadas a esferográfica rollerpoint de tamanho 0,05 ou menos), ouvi, repito, as seguintes palavras, que senti como pedras arremessadas sobre o meu maltratado corpo: o que fazes aí, sua lerda, toca a mexer, ou achas que não há mais quem queira trabalhar?

nesse momento, a minha vida de merda reluziu-me num flash que mais parecia fogo de artifício, por qualquer razão, ou melhor, desrazão, deu-me uma enorme vontade de rir, ao que se juntou uma força vinda do fundo não sei de que poço, talvez aquele para onde eu acabara de ser sugada, levantei-me dum salto, mesmo sem perceber se algum pedaço do meu corpo ficou para trás (que importava isso!), obliterei o inventário dos danos da escadaria, fixei o homem-sem-lábios-e-já-agora-sem-coração e vociferei: vai para a grandessíssima puta que te pariu.

ele não estava à espera, espantou-se o maldito buraco da sua deslabiada boca muito aberta, esboçou o seu corpo fardado um avanço na minha direcção, enquanto eu (ou o que restava de mim) já avançava com quanta força tinha, o mesmo é dizer, a força da determinação, que da outra, a física, nem restos me assistiam, em direcção à saída.

sem olhar para traz – não por medo, mas por desprezo, o mais absoluto dos desprezos –, empurrei a porta e, na pressa de sair dali, esqueci-me que três degraus me separavam da rua. só tive tempo de desabafar, num desvalido sopro: que se fodam as escadas.

instantaneamente depois (passe a contradição, a existir), ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. por agora.









segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

EXTRACTO DE UM ROMANCE AINDA SEM TÍTULO

Com a partida da filha, Ema ficou sozinha e deu consigo a sentir o peso duma solidão que nunca pensara reconhecer e, muito menos, a que nunca admitira vir a submeter-se. As costas, outrora direitas, começaram a exibir uma ligeira, quase imperceptível, inclinação para a frente, o que, ao caminhar, lhe orientava os olhos para o chão, como se aí procurasse qualquer coisa perdida ou intrigante – talvez o que fiz com o passado, talvez o que me reserva o futuro, pensava frequentemente, logo ela que sempre estivera habituada a cavalgar o tempo e os acontecimentos e a olhar em frente, seguir adiante de peito aberto, sem se permitir reflexões metafísicas, dúvidas e, muito menos, lamúrias! Nessas alturas, lembrava-se do falecido marido, dos seus ombros curvados, e, num jeito irritado e voluntarioso, endireitava as costas e fixava a linha do horizonte, como quem pretende capturar o mundo e dominá-lo. Porém, as mais das vezes, a frente do mundo devolvia-lhe, feito espelho de cristal, uma face marcada pela inexorabilidade da passagem do tempo, um tempo mal vivido, uma face riscada de pequenas e grandes rugas, um corpo de que a tonicidade se despedira, um corpo que se fechara aos prazeres, uma pessoa que se entregara quase exclusivamente ao trabalho em nome da responsabilidade. Lutava, então, com as lágrimas que não se permitia deixar escapar, mas não lograva abster-se de dizer para dentro de si: Então é isto, foi nisto que me tornei, mesmo sem me dar conta! Que faço agora, que poderei fazer com isto? Imperceptivelmente, as costas voltavam a ceder, os olhos voltavam a cair ao chão e, ao aperceber-se, dava fim às reflexões com uma explosão irada: Que se foda! – vociferava para dentro de si, ela que não tinha por hábito dizer palavrões.

Chegada a casa, tomava um duche rápido, preparava um pequeno snack que colocava num tabuleiro e enroscava-se no seu canto do sofá, em frente à televisão, sintonizada num canal de séries policiais ou de filmes. Interrompia a visualização para falar a um dos filhos ou a ambos, mas ou tinham os telemóveis ocupados ou estavam eles próprios ocupados com diversos afazeres, de modo que as conversas, a existirem, eram breves e de parco conteúdo. Se fosse com o pai, haviam de ter longas conversas e prodigalizar carinhos, tão íntimos eram entre eles; comigo nunca foi assim, nunca pude estar tão presente e, de resto, nunca fui dada a manifestações exteriores de afecto; não significa que não gostasse deles, mas talvez o não tenham compreendido. O facto é que nunca me perdoaram a morte do pai, como se tivesse sido eu a matá-lo! Vá-se lá entender esta vida?! – assim dialogava consigo própria, em jeito de sobremesa do seu frugal snack e do inêxito das chamadas telefónicas ou da sua mera tentativa. E sentia um peso, aquele peso, como se a casa ameaçasse despenhar-se-lhe em cima e ela não pudesse fugir, à semelhança do que acontece nos sonhos em que ficamos paralisados quando, bem lá no fundo, sabemos que, para escapar, nos bastaria mexer as pernas, só que não conseguimos. Aqui chegada, pensava: Mas é claro que sou capaz, também não sou assim tão velha e, bem vistas as coisas, nunca dependi de ninguém. Estou em baixo de forma, é certo, coisa que nunca admiti poder vir a suceder-me, mas posso por-me de pé, é questão de querer, de ter força para querer! Um princípio de sorriso começava a desenhar-se-lhe no rosto cansado, desenrolava o corpo daquela espécie de ninho em que o colocara, punha-se de pé, ia até à janela, afastava a cortina e olhava para o jardim. Perdia-se uns momentos, que podiam ser de maior ou menor duração, a pensar em como revitalizar-se: pintar o cabelo, massajar o rosto com bons produtos, fazer ginástica ou natação, frequentar locais onde pudesse encontrar pessoas interessantes. As ideias surgiam-lhe em catadupa, acumulavam-se numa abundância tal que, ao fim de um tempo, já não pesavam cada uma de per si mas como um todo e aquele todo deixava de ser um leque de hipóteses aliciantes para se transmudar numa amálgama de trabalhos forçados e, quando dava por ela, os seus olhos já não pairavam nas cores vibrantes do jardim, mas no cinzento do peitoril da janela, porque as suas costas haviam voltado a descair, a ceder. Ocasionalmente, uma lágrima rolava, a segunda era mais difícil, que, ao menos para aquilo, ainda tinha um pouco de força de vontade, a necessária para impedir as lágrimas de se soltarem. E já não era apenas o peso da casa vazia a abater-se sobre si, mas o peso dos seus pensamentos, se é que não era este a criar-lhe a ilusão do peso da casa.

Certo dia, ao fim de muitos dias, ao longo de muitos meses, daquela rotina, aninhada no seu canto de sofá, teve a lucidez de reconhecer, talvez com a ajuda dos conhecimentos e experiência da sua profissão, aquilo que insistira em negar durante tanto tempo: aqui cheguei, eu, tão senhora de mim, estou com uma monumental depressão, impõe-se que me trate! Permaneceu encolhida, sem se esforçar por endireitar as costas, decidida a empenhar todas as suas forças – que havia de desencantar dentro de si, por mais que lhe custasse – para se tratar. Que se lixem as costas e as rugas e a flacidez e a puta que as pariu, tenho é de tratar do que se partiu cá dentro e já não é sem tempo, reflectiu.

Então, com a exaustão de que o seu corpo estava tomado – porque não podia deixar de assim estar –, fez o esforço de se levantar e ir buscar o telemóvel, que esquecera dentro da carteira. Pelo caminho, sentou-se numa cadeira, endireitando as costas contra o espaldar, procurou nos contactos e marcou um número, o número dele. Sem grandes preâmbulos ou justificações, pediu-lhe que lhe indicasse um bom psiquiatra. É certo que podia ter esperado pelo dia seguinte, em que o procuraria no hospital, no departamento de Hematologia, mas, desde a história amorosa que ambos tinham cessado aquando da morte do Luís e dos atinentes mexericos, que, não obstante a sua discrição, se tinham gerado, faziam todos os possíveis por se evitar, tendo ela, inclusivamente, a seu pedido, mudado para outro serviço. Aliás, há decisões que correm o risco de não vir a ser postas em prática caso sejam adiadas e ela não queria adiar aquela decisão, a de se tratar e de, para isso, escolher com critério um profissional a quem, por certo, iria ter de confiar a sua vida interior, os mais íntimos recantos da sua vida interior, detalhes recônditos do seu pensamento e emoções. Não pretendia acabar como uma falhada e, para ela, apesar de bem saber que a depressão é uma doença grave, não conseguia afastar a ideia de que acabar deprimida representava um falhanço – tal é o peso da sociedade e dos seus preconceitos, mesmo sobre pessoas de índole racional e bem informadas. Então, deu consigo a pensar em como tinha sido bem pouco compreensiva com o marido e que talvez os filhos tivessem alguma razão em lhe imputarem a responsabilidade pela morte dele. Mas – contrapôs –, como pode uma pessoa ser responsabilizada por algo que não controla e muito menos pretende ou sequer deseja?! E depois, em jeito de aligeirar: Não te trates, não, Ema, e vais ver como elas mordem

A princípio, ele revelou-se surpreendido, quase desconcertado, com o telefonema, mas rapidamente mostrou interesse em saber notícias dela, forneceu-lhe o contacto de um psiquiatra que reputava de muito competente – «Ao menos, não acumula casos de suicídio de pacientes na carreira», disse, em jeito de humor negro, fazendo-a sorrir e responder, «Pois, é isso que se pretende e não uma ajuda ao suicídio ou reforço para abraçar a eutanásia».

Após uns minutos de conversa, ele propôs-lhe que se encontrassem para jantar. Apanhada de surpresa e frágil como se sentia, não encontrou um jeito imediato de aceitar, mas ele não estava disposto a desistir, pelo que, entendendo a sua atrapalhação, acabou por propor: «Ema, pensa no assunto e diz-me qualquer coisa, mas fico à espera de um sim. Afinal, parece-me que merecemos uma segunda oportunidade.» Despediu-se, de seguida, enviando um beijo, que ela, com a boca seca, retribuiu em surdina. 







sexta-feira, 7 de julho de 2023

É ISTO O CÚMULO DA SOLIDÃO?

Quando, há uns anos, eu frequentava o bar terraço do CCB, onde, bastantes vezes, almoçava e passava a tarde a escrever, num ambiente onde conviviam, sem barreiras, estudantes universitários, entregues aos seus livros de estudo, e, em número significativamente menor, pessoas já desligadas do trabalho, entretidas com seus jornais e computadores, havia uma pessoa que destoava do ambiente, calmo, harmonioso e concentrado, reinante.

Tratava-se de uma mulher de aparência normal, que deveria rondar os quarenta anos e se manifestava de forma exuberante, dirigindo-se a um e a outro num tom de voz elevado, cirandando entre uma mesa e outra e assim perturbando, de algum modo, o sossego geral. Não o fazia, todavia, em tom agressivo, mas antes com uma intenção transparecida de quem quer ser (ou parecer) simpático e, sobretudo, denunciando enorme necessidade de se relacionar, de ter a atenção e, quem sabe se o afecto, dos interlocutores.

As pessoas reagiam sem animosidade mas com cautela, pois estavam ali com propósitos próprios, que, seguramente, não passavam por incomodar ou confortar o próximo. Nunca vi ninguém virar-lhe a cara ou omitir uma palavra de resposta, mas também não presenciei mostras de disponibilidade para irem além do necessário ou requerido pelos padrões de educação e tolerância commumente aceites. Quanto a mim – confesso –, à sua passagem, mergulhava a cabeça no computador.

Certa vez, assisti a uma cena algo caricata e constrangedora. Pouco tempo decorria das festas natalícias e ela abordou a mesa onde se encontravam duas ou três raparigas, entregues aos seus estudos, interrompendo-as não sei com que conversa e, de súbito, sacou de um embrulho festivo e fez questão de o oferecer a uma delas, argumentando tratar-se de um presente de natal. Desembrulhado o dito, creio que por ela mesma, saiu um bonito lenço ou cachecol. Foi deveras incomodativo assistir ao desconforto da rapariga, teimando, educadamente, em que não podia aceitar a oferta. Mas ela insistia, insistia. Não me recordo do desfecho, o que me marcou foi o (compreensível) mal-estar da rapariga face àquele desespero de dádiva da mulher que gostava (ou precisava) de falar com desconhecidos.

Acontece que ela se fazia acompanhar de uma espécie de mascote, um boneco de peluche (por vezes, mais do que um) que colocava sobre a mesa, assegurando — imaginava eu! — o papel do inexistente acompanhante.

Entretanto, os empregados do espaço falavam com ela como se tudo fosse normal, animados não sei de que pensamentos ou emoções perante tão estranho comportamento.

No que me concerne, aquilo incomodava-me, pensava se não estava perante o cúmulo da solidão, embora pudesse ser mais grave (ou, talvez, menos...), algo do foro psiquiátrico, mas sentia-me apaziguada por me parecer que a mulher não exibia tristeza, inclusivamente, aparentava estar de bem consigo e suas idiossincrasias.

A dada altura, com grande pena minha, o bar terraço do CCB fechou, arranjei outros espaços de escrita, e nunca mais pensei naquela mulher e na sua particularidade.

Há dias, almoçando no CC Amoreiras, divisei, uns metros adiante, uma mulher a falar na direcção de algo estacionado sobre a mesa, o que parecia ser um boneco de peluche. Pensei que teria alguma criança ao lado, mas, quando me levantei e passei por ela, constatei que não, não havia nem criança nem mais ninguém, apenas a mulher, o boneco e o seu diálogo sabe-se lá se obtinha resposta naquela transação! Com toda a reserva que estes casos me merecem, procurei não olhar para ela, que, pela perspectiva apressada do canto do olho, me pareceu dever rondar os cinquenta anos. Veio-me, então, à memória o caso da mulher do CCB, de que falei acima.

Pouco tempo depois, após almoçar e me preparar para escrever um pouco, no café restaurante da Gulbenkian, qual não foi a minha surpresa, quando, numa mesa ao lado da minha, veio instalar-se alguém em quem não teria reparado, não se desse o caso de assistir à colocação, sobre a mesa, de dois bonecos de peluche, que assistiram, sem reclamações, ao almoço da sua dona ou companheira ou sabe-se lá o quê. Tratava-se da mulher das Amoreiras! Tal como a do bar terraço do CCB, trocou umas palavras com os empregados, uma das empregadas perguntou-lhe, atenciosamente, se o Poupas (presumi, pelo contexto, tratar-se do boneco da Rua Sésamo) tinha ficado em casa, o que ela confirmou. Terminado o almoço, dirigiu breves palavras aos companheiros de mesa, levantou-se e perguntou a um dos empregados se havia alguma exposição. E lá foi à sua vida, talvez mostrar aos seus bonecos os diálogos do Chafes com o Giacometti.

Fiquei a pensar se não se tratará da mulher do CCB.

Mas a maior  (e mais pungente) interrogação que se me suscitou foi esta: será isto o cúmulo da solidão? Aquela que o cantor francês dizia que n’existe pas


(discretamente, fotografei os bonecos)



segunda-feira, 26 de junho de 2023

2050 – O REGRESSO

2050


Eis-nos sentados na esplanada, quase sobre o rio, com a sensação de que basta estendermos um pouco os pés para os conseguirmos mergulhar na água, hoje a deslizar, límpida e serena, no seu melhor tom de azul.


À distância, avista-se um navio de cruzeiro, acenam mãos naquela excitação esparvoada de que muitos se deixam tomar quando habitam, mesmo por pouco tempo, um mundo artificial. Mais próximo, pequenos barcos à vela, de uma vela só, mais parecendo antigas banheiras de zinco destinadas ao banho das crianças, passam-nos quase sob os olhos, levando aprendizes de marinheiros, sonhadores de longas viagens, horizontes outros.


A ideia dos mundos artificiais, acabada de evocar a propósito do navio de cruzeiro, persiste na minha mente, transportando-me à realidade, esta em que vivemos, mergulhados sem hipótese de escapatória. Já lá vai o tempo em que a inteligência artificial (AI), o ChatGPT e seus derivados tomaram conta das vidas deles. Já morreu o tempo em que se discutia, quero dizer, em que os altos responsáveis pelo seu patrocínio fingiam preocupar-se e decidiam, por acordo, adiar o desenvolvimento da AI por uns meses ou algo do género. Já passou às calendas o tempo em que, no discurso tacanho e eriçado dos fóruns públicos, aquilo das velhas redes sociais, pleno de ignorância e falso senso comum, muita convicção bacoca e, sobretudo, desejo de afirmação e ânsia de aceitação, muitos clamavam contra a AI, muitos outros a seu favor. Os primeiros afirmavam o receio do domínio dos humanos pelos portadores da dita, chamemos-lhes Robotso perigo da desinformação, a desnecessidade dos trabalhadores humanos, com a consequente e avassaladora onda de desemprego, hordas de gente sem recursos, etc.; os outros, larga maioria, argumentavam com a inevitabilidade do progresso, apodavam os primeiros de tacanhos, exemplificando com as oposições sem sentido que as gentes de outras eras ofereceram às conquistas tecnológicas (revolução industrial e afins) conseguidas pelos génios da humanidade. Entre uns e outros não se vislumbrava hipótese de diálogo, falavam entre si como surdos a atirarem pedras sem motivo, trocavam insultos em vez de argumentos, aliás, estava na moda insultar, insultar era mesmo o definitivo statement de existência, talvez de importância.


2023


Assisto à luta virtual – travada, sobretudo, nas redes sociais – como espectadora fascinada pela profundidade da tragicomédia dos humanos, seres (suposta e seguramente) dotados de inteligência (para além de emoção...) e, todavia, tão irracionais nas suas acções.


Isto espanta-me tanto mais quanto é certo que nós, os humanos, nos encontramos inexoravelmente unidos num destino comum, de que nem os mais privilegiados – aquela meia dúzia que detém mais riqueza do que os restantes milhões e milhões dos seus semelhantes – podem escapar, a saber, a morte. Sim, por esta altura, ninguém nunca conseguiu escapar da morte (no futuro, talvez a questão nem se coloque)! Não que isto fosse trágico ou o mais trágico. O pior é ninguém saber qual o destino post mortem desta coisa que habita os nossos corpos e experiencia (ou será que cria?) o nosso profundo sentir (aquele quid para além do cartesiano, "Penso, logo existo" ou do muito mais elaborado "Sinto, logo penso, logo existo", enunciado pelo célebre cientista português António Damásio). Na verdade, pode afirmar-se que a generalidade dos humanos nem sequer entende que esta fatídica ignorância quanto ao que sela o seu destino – aliás, conformadora de todo o seu percurso neste mundo dos vivos (ou assim considerado) – deveria ser razão mais do que suficiente para pararem de se agredir mutuamente, com base na crença ou no desejo de serem melhores uns do que os outros, de merecerem mais e melhor uns do que os outros, neste mundo limitado, de recursos cada vez mais exauridos. Sempre acreditei que, caso parassem para pensar um pouco, não haviam de digladiar-se e, muito menos, de o fazerem através de insultos soezes. Reconheça-se que, pobres coitados, têm uma certa desculpa, pois, as mais das vezes, como distracção de vidas cansativas, entediantes e sofridas, andam entontecidos com a propaganda estupidificante e aparentemente libertadora, lançada através das ditas redes sociais e dos conteúdos publicados e disponibilizados em todos os meios de comunicação social e política, que lhes são administrados (precisamente pelos pelos mentores da AI).


Assim vou reflectindo, enquanto assisto, entre fascínio e repulsa, a essas tristes manifestações dos outros membros da espécie, supostamente inteligente, a que também – e para meu grande desgosto – pertenço.


Sobre o caso concreto da AI, antecipo mais ou menos isto, consoante escrevi no meu primeiro romance (datado de há quase dez anos, mas não publicado, procrastinadora me confesso!): "Será que a tua dúvida se refere ao papel da fulgurante evolução tecnológica no desenvolvimento, ou mesmo na reconfiguração, da inteligência humana, de que, aliás, é consequência, e, porventura, na própria evolução da espécie, um dos temas abordados?"


Para mim, esta hipótese – colocada na voz de um dos personagens do romance –, expressando um receio, representava em simultâneo um alívio, pois eu descria tanto da minha espécie, que alimentava a esperança salvífica na sua extinção.


A ideia era mais ou menos esta: assim que dominados pela AI, representando esta, ipso facto, um patamar diferente, superior, de inteligência, os humanos não se tornavam portadores desse tipo e grau de inteligência (que interesse teriam os dominantes em assimilar a si os dominados, tornando-os seus iguais?), mas, justamente por isso, o paradigma dos humanos mudava definitivamente, visto perderem o resto da liberdade de que tinham ou podiam ter gozado (caso tivessem sabido utilizá-la…). Tornavam-se, digamos, sub-humanos, regrediam (ainda mais) na escala animal, ao ponto de subsistirem, apenas, na medida em que os outros precisassem deles para alguma coisa, com tendência, pois, para a extinção física, mas, desde logo, com extinção imediata enquanto titulares de natureza humana (ao menos nos moldes em que, até então, era percebida). Ora, como esta natureza, em minha opinião, sempre deixou muito a desejar, eu entendia, com um certo cinismo, que a única vantagem da AI para a humanidade deveria consistir na respectiva extinção. Em contrapartida, os portadores daquela não se tornavam humanos (que interesse teriam os dominantes em assimilar-se aos dominados, tornando-se seus iguais?).


De notar que continuo a pensar do mesmo modo.


Há dias, dez anos depois de a frase citada ter sido proferida por um personagem do meu romance, deparei-me com a publicidade a um livro sobre a vida depois da morte, que, segundo o anúncio, junta espiritualidade e ciência para demonstrar a existência dessa vida, segundo a tese de que o nosso ser não corpóreo (a expressão é minha), ao ser libertado, mercê da morte do corpo, vai lá para não sei onde, de onde pode regressar ou regressa (supostamente por incorporação em novos corpos, calculo!).


Em apoio de tal tese, indicavam uma amálgama de argumentos estafados, como o resultado das experiências de regressão e dos relatos de quase-morte, bem como, of course, as teorias da reencarnação. 


Portanto, concluí, nada de novo, apenas mais uma colagem de hipóteses, aliás, não inovadoras e, muito menos, confirmadas, em suma, balelas para entreter tolinhos. Esta convicção afiançou-se-me ainda mais quando verifiquei que, do pacote publicitário, constava um rasgado elogio do Sr. Deepak Chopra, conhecido guru da área da auto-ajuda, domínio a que não dou crédito, pois, em minha modesta opinião, caso resultasse, não havia ninguém pobre ou infeliz; aliás, o próprio conceito de livros de auto-ajuda sempre me pareceu contraditório, pois se a auto-ajuda funcionasse não eram precisos livros…


Mas, acontece que, por esta altura, estamos em plena era de desenvolvimento acelerado da AI, só se fala do ChatGPT e seus derivados – quem não souber de que se trata, é considerado ignorante, burro ou ambos –, e a minha mente deu um enorme salto.


Eu já estava convencida de que as máquinas dotadas de inteligência artificial rapidamente assumirão o controlo, visto que, quem alcança o mais, alcança o menos ou o contrário, quero dizer, a partir do momento em que adquiram os processos de raciocínio humano, irão penetrar nos mistérios da nossa mente, com uma liberdade e profundidade de que nós não dispomos, por sermos parte interessada, estarmos marcados por longa herança genética e limitados pela prisão do (ou no) corpo físico. Conclusão: estes novos seres virão a ser capazes de nos entender (muito melhor do que nós nos entendemos). Chegados a este ponto, é certo e sabido que lhes pareceremos tão estúpidos e limitados como a mim nos parecemos e, daí até ao domínio, será um simples passo.


E – pasme-se! – eis que a publicidade ao tal livro da treta me abriu o pensamento para outra hipótese.


Ponto prévio, sempre nutri a esperança de desaparecer definitivamente após a morte, mas, como careço de memória da minha (eventual) experiência pré-vida e nunca recebi notícias do outro lado, sempre receei a possibilidade de a minha alma ou espírito ou lá o que é esta coisa que me habita (que habita o meu corpo), pudesse mergulhar numa realidade paralela, sabe-se lá em que termos e com que consequências. A essa realidade paralela chamei alma universal, isto quando, na longínqua idade dos dezoito ou dezanove anos, certamente à falta de melhor, me entretinha a pensar e escrever sobre assuntos transcendentais.


Ora bem, a ideia da vida para além da morte, relançada bacocamente no livro elogiado pelo Chopra, conduziu-me a equacionar (para efeitos especulativo-ficcionais) a seguinte hipótese: então e se uma dessas almas perdidas no mundo do lado de decidisse (ou alguém por ela) encorpar num ser de AI, num Robot? Quem não preferiria esse upgrade em relação a voltar à humanidade? 


2050


Agora, estamos aqui frente ao rio, quase a mergulhar os pés na água. Afinal, lá ao longe, não é um navio de cruzeiro, desapareceram, há muito, por desnecessidade. Nem aqui mais perto são barquinhos de uma vela só, igualmente desaparecidos. Apenas a corrente aquática, deslizando à nossa frente, em total liberdade, no seu mais puro tom de azul. Então, aquilo do navio e dos barquinhos, trata-se apenas de memórias longínquas que, vá-se lá saber porquê, me passaram pelos fios da caixa metálica? E de quem são essas memórias?


Também não posso molhar os pés na água, pois sei, dizem-mo os mesmos fios – não  qualquer memória espúria –, que podem enferrujar e comprometer a minha integridade, única razão da minha existência. Então, porque tive aquele impulso de mergulhar os pés na água, antecipando um formigueiro de prazer? Formigueiro de prazer, mas o que é isto, de onde me vêm estas ideias, melhor, este sentir?


Experimento uma confusão, coisa nova, nada habitual. Não gosto disto. Pergunto ao meu par: – achas-me estranho? "Estranho?", interroga-se em jeito de resposta. Sem perder tempo, afasta-se, com todas as suas luzes a brilhar intermitentemente.


Pressinto que vai falar com os outros. Não me sinto em segurança. Algo parece habitar-me para além dos fios e o pior é que ele percebeu... E quando a estranheza toma conta de nós nada de bom pode acontecer. Mas, o que é esta estranheza? Quem me dita este...MEDO? 




(imagem obtida em pesquisa Google)







sábado, 6 de maio de 2023

A MÃE


A Mãe sempre gostou muito de flores. Pouco tempo antes de – sem que algo o fizesse supor, de um estúpido dia para outro estúpido dia – nos ter sido arrebatada pela tenebrosa ceifeira, maldita seja!, começou a amar girassóis. Antes de eu ter tido tempo de agir – como fizera, por exemplo, com o vaso de sardinheiras e com o da laranjeira miniatura, carregada de laranjinhas, que a deixaram tão emocionada e feliz –, já ela havia plantado girassóis no jardim. Pelo menos um cresceu, em exuberância e pressa, em direcção ao céu.

No dia em que o meu Irmão e eu a acompanhámos àquele derradeiro leito frio que costuma designar-se por última morada – embora, em bom rigor, o seja apenas da matéria que de nós resta, sem que alguém haja descoberto onde passamos a residir depois do percurso terrestre, se é que algo de nós subsiste para tal –, o Pai, que por idade e debilidade, não nos pôde acompanhar, recomendou quer levássemos o girassol. Assim fizemos, como, por certo, teríamos feito, mesmo sem a recomendação.

Conto isto, não para invocar tristezas, mas para dizer que ando há tempos para desenhar girassóis, em memória da Mãe. Nem sequer se trata de questão de saudade, essa que, quando atinge, se faz sentir de forma tão pungente, que não há palavras. O que resta agora, volvidos quase vinte e cinco anos, é um vazio profundo, um vazio de mãe, duma certa mãe (há mães e mães). Insisto, não pretendo invocar tristezas, não é, de todo, o caso, só que me apetece falar da Mãe, talvez por ainda não ter cumprido com os girassóis. Ou talvez não.

A Mãe!

A Mãe, para além de mãe, era a Família. Quando a evoco, sinto que não vem só, vem, em primeiro lugar, com o Paizinho – assim chamávamos a meu Pai –, com a Avó, sua mãe, que sempre viveu connosco, com seu Pai, que amava e, frequentemente, invocava, apesar de o não ter conhecido, pois morreu aos seus três meses de idade, com a Mamã e o Papá, seus avós  maternos, em cuja casa cresceu, após o falecimento do pai, com muitos outros membros da família, incluída a do lado de meu Pai, sobretudo, a Avozinha e o Avozinho (que também passou a viver connosco, mal enviuvou).

Portanto, a Mãe, mais do que mãe, era família, era a árvore sólida de que eu sou um simples ramo frágil, talvez uma folha, seguramente, caduca.
 
Mas a Mãe também era Lar, home, sweet home! Sim, de suas cálidas e engenhosas mãos nasciam tantas coisas boas, saborosas, bonitas, aconchegantes, originais, sei lá! não posso passar o resto do texto a inventar adjectivos só para dizer que a Mãe era o lar, aquele sítio onde te sentes protegido, aconchegado, especial entre especiais.

Não era o facto de cozinhar maravilhosamente, de nos fazer roupas lindíssimas e originais – como os meus bibes bordados, em criança, as camisolas de lã, as bandoletes (certa ocasião, cheguei a casa e fui surpreendida com uma data delas, cada uma de sua cor, a condizer com as camisolas), os casacos de lã, com capuz, bordados de invenção sua e forrados a cetim –, de desencantar soluções práticas para todos os impossíveis que se apresentavam, de, à hora do almoço, nos ir esperar ao portão, a meu Pai, meu Irmão e a mim, vindos do Liceu (onde o Pai leccionava), sempre com um sorriso aberto e alegre. 

Não, não era tudo isso e muito mais, era a entrega, diria mesmo a devoção, o amor, que punha em tudo o que empreendia, em todos os seus gestos e realizações.

Sim, porque a Mãe, para além de Família e Lar – ou talvez por isso –, era Dádiva, era Devoção, era Amor.

A Mãe sabia criar Momentos Mágicos. Quando éramos crianças (meu Irmão e eu), havia uma altura do ano que aguardávamos com imenso júbilo e ansiedade: a Festa do Santo António, patrono da cidade, uma cidade remota, para lá do Marão, onde a vida corria muito devagar e sem novidades. Ao longo do ano, a Mãe constituía-nos um mealheiro, para, durante essas festas, em que a cidade se animava de divertimentos vários – o circo, o carrossel e outros aparatos do género, e, máximo dos máximos, as barracas, onde se vendiam artigos tão desejados, ou seja, no que nos dizia respeito, ao meu Irmão e a mim, brinquedos de toda a espécie e feitio.

Ora, mal as barracas assentavam arraiais, lá íamos de mãos dadas com a Mãe, aplicar, como entendêssemos, aquele pecúlio, especial e amorosamente poupado para a ocasião. Apesar das décadas decorridas, tenho ainda presentes algumas daquelas entusiasmantes aquisições: um guarda-chuva de criança, um trem de cozinha, constituído por imensos tachos e tachinhos (por essa altura, ainda ignorava que a cozinha viria a ser objecto da minha taxativa rejeição!), uma bola de plástico, de encher, feita de gomos coloridos, tipo a bola nívea.

Noutras alturas, quando a Mãe não podia satisfazer os nossos desejos, porque o dinheiro não chegava – note-se que, já então, os professores do liceu, caso de meu Pai, não ganhavam muito (todavia, eram extremamente respeitados…) –, a Mãe ficava triste. Não que isto acontecesse com frequência, pois nós sabíamos o que podíamos ou não pedir. Recordo, apenas, um episódio: estávamos  numa loja de roupas, vi umas lindas meias ou soquetes e pedi-lhe que mas comprasse; inicialmente, a Mãe anuiu, mas acabou por confessar a sua impotência. Obviamente, não insisti, mas fiquei triste, não por não poder ficar com as meias, mas por testemunhar o desconforto e tristeza da Mãe por não mas poder oferecer.

A Mãe era a personificação da Bondade, bem intencionada, tolerante, amante de dar e de proteger.

Nunca reparei se a Mãe era bonita! Hoje, que penso nisso e revejo fotos, tenho a certeza de que sim, mas foi questão que esteve sempre fora do meu radar, simplesmente porque não interessava nada, nem sequer me passava pela cabeça. Era um pouco gordinha, situação que, mais tarde, mudou, devido a uma úlcera estomacal, mas nunca reparei nisso como um defeito (parece que, hoje em dia, o é!), era como era e isso não interessava nada, aliás, nem ocorria avaliar tal aspecto.

A minha relação de intimidade/cumplicidade com a Mãe criou-se, sobretudo, a partir do fim da minha adolescência. Até então, eu estava mais fixada no Pai.

Tratava-se de uma relação de significativa abertura e diálogo, com algumas reservas, da minha parte (por necessidade de salvaguarda do equilíbrio, habituei-me a resguardar uma parte de mim). Por outro lado, permanecia um aspecto da minha educação que eu reputava de nocivo e cuja principal responsabilidade atribuía à Mãe: o excesso de protecção, que me levou, inclusivamente, ao afastamento geográfico e, em grande parte, àquela reserva. Ora, em dados momentos – talvez zangada comigo mesma, por bem saber que, apesar de todo o meu esforço, sofria, ainda, os constrangimentos decorrentes dessa circunstância –, eu acabava por, em acesa conversa, lhe imputar a respectiva culpa. Ela nunca se zangou, antes me dava razão (quem sabe se por, na sua imensa sabedoria de amor, compreender que a minha verdadeira zanga era comigo e não com ela!). Depois, eu sentia-me — e continuo a sentir-me – culpada da agressividade com que, por vezes, lhe fazia essa acusação, a qual, sendo materialmente justa, nem por isso era razoável. Em contrapartida, devotava-lhe um amor extremo, que manifestava de diversas formas, mais por actos do que por palavras, sempre sem alarido. Ela sentia-o e tinha a bondade de o reconhecer aberta e explicitamente.

Hoje, dia sete de Maio de 2023, nesta dimensão onde ainda me encontro, a minha Mãe completaria cento e dois anos. Hoje é dia da Mãe! Que festa seria, se!

Ainda não desenhei os girassóis, mas ficam estas palavras (que bom seria se os mortos pudessem ler)!


(a Mãe, o Mano e eu)



segunda-feira, 24 de abril de 2023

ESTE É O CRAVO QUE HOJE AVISTO


este é o cravo que hoje avisto

quarenta e nove voltas deu a terra
em sua indiferença programada

o chão forrou-se de pétalas caídas
esperanças devolutas
tragadas na fúria de interesses poderosos 
indiferenças cegas
impotências surdas
pois déspota e avarento é o poder
fraca a cabeça e a voz do povo
ai este triste povo!

resta a liberdade de exultar, 25 de abril sempre!

não será pouco, é certo
todavia não basta

este é o cravo que hoje avisto
ainda de pé, mas por cumprir