(Continuação)
Sorrindo, Rita pediu uma pausa e isso foi o suficiente
para aquela harmonia, tão desesperadamente construída, se desmoronar. Bastou
desviarem os olhares do foco da sua recíproca atenção e tudo pareceu explodir.
Miríades de intensos néons iluminavam as fachadas dos altíssimos edifícios duma fantástica
cidade, conferindo variadíssimas cores metálicas às pedras da construção, que,
nos intervalos das luzes, se afundavam na opacidade da noite.
Miguel, Janete e Rita permaneciam, atónitos, no
telhado dum prédio de 1015 andares, sobre o qual flutuava uma estrela e velavam
milhares de luas, dispostas em círculos, abertos uns sobre os outros,
desenhando uma espécie de majestosa tampa do mundo.
De tão estupefactos, faltou-lhes coragem para
expressarem os seus medos, como se a omissão fosse suficiente para os exorcizar,
e, não pela primeira vez, agiram de forma diferente. Miguel, sempre prático ou
tentando sê-lo, talvez, parecê-lo, dirigiu-se à porta que – supunha - conduziria ao interior do prédio;
Janete, aterrorizada, em lágrimas, fincou os dedos, até se tornarem cal, no muro que
separava o telhado do abismo, aí se fixando, como quem se cola numa indecisa
suspensão; e Rita, dona do medo que a realidade impunha, dirigiu-se, sob
controlo, ao muro, olhou, de modo atento, para baixo, o mais baixo que
podia alcançar, e, como só conseguisse vislumbrar o brilho difuso dos néons, recuou, dirigiu-se a Miguel, pelo
caminho disse, - anda, Janete, e perguntou:
- A porta está aberta?
- Não. Conseguiste ver alguma coisa lá para
baixo?
- Só vazio e brilhos difusos, não sei se difusos se
confusos, nem sei o que te diga, não permitiram identificar nada. Temos de
arrombar a porta, Miguel. E para com essa choradeira, Janete, não resolves nada
e já me estás a irritar.
- Calma, Rita – interveio Miguel, ao mesmo tempo que,
sem disponibilidade ou, mesmo, paciência, para confortar Janete, se dirigia ao meio do telhado, onde brilhava,
caída, uma barra de metal.
Empunhando o luzidio objecto com uma fúria até então
ignorada, começou a dar fortes pancadas no que parecia ser a fechadura da
porta, ao mesmo tempo que Janete tapava os ouvidos e Rita, como que tomada por
absurdo fascínio, movia o olhar dum para o outro, dizendo:
- Destapa os ouvidos, não vês que as pancadas da barra não provocam ruído?!
- É verdade, coisa estranha! – Exclamou Miguel.
- Coisa estranha, essa é boa, quem te ouvir vai pensar
que tem sido só normalidade, desde que, ingénua ou parvamente, nos pusemos a
jeito para sermos sugados para este mundo maravilha – ironizou Rita, toda
sarcasmo e sangue frio.
Mas a outra, tendo os ouvidos tapados e estando
tolhida pelo medo, nada ouvia daquela troca de palavras.
A porta cedeu abruptamente, levando consigo Miguel,
empurrado pelo ímpeto das batidas, Rita, que estendeu a mão para o socorrer, e
Janete, que correu, com medo de ficar só.
Foram, assim, atraídos para um poço de vazio sem fundo
à vista, como, aliás, todos os vazios, por onde escorreram em vertiginosa descida, escancarando-se em inaudíveis
gritos e desorbitando-se em aterrados olhares, ao mesmo tempo que as suas
roupas desenhavam inesperados e engenhosos movimentos de ballet,
quando, inesperadamente, as mochilas, ainda suspensas das suas costas, se
abriam em enormes véus, amenizando, mais e mais, a queda, até ficarem a planar
sobre um luar azul, tanto podendo ser de luz como de mar.
Estavam tão, mas tão exaustos, que adormeceram em pleno
voo, pleno e interminável voo, como quem se habituou a navegar por navegar,
desligou os motores, se entregou à maré dos ventos, bons ou maus, deixando o
fluxo, sabe-se lá de quê, de que substância ou energia ou nada, tomar conta, encarregar-se,
comandar.
As lágrimas de Janete cristalizaram, os braços de
Miguel amoleceram e os neurónios de Rita estacionaram.
Calma luz azulada pairava, agora, sobre a macia colina
onde os três acabavam de aterrar, qual paisagem de despedida dum pesadelo.
Dispensaram-se de comentários, conheciam bem de mais o
pensamento uns dos outros, já não era tempo de cerimónias nem, tão pouco, de
reconfortos, todos sabiam que tinham ido parar a um mundo de susto, repleto de
perturbadores mistérios e traiçoeiras partidas.
Mas não era assim o mundo donde provinham? - Interrogaram-se.
Que o
dissesse Francisco e ela própria, pensou Rita.
Que o
dissesse a sua mulher e ele próprio, pensou Miguel.
Janete não pensou nada, porque o medo até (ou
sobretudo) de pensar a tolhia.
(Nota: Prevê-se continuar, de alguma maneira, em algum lugar e em algum tempo)
Muito bem escrito. Boa imaginação. Associa episódios (Francisco)que dão uma imagem que ilustra um estado de espírito muito comum aos simples mortais. No que respeita à Janete Ca. o cenário assemelha-se a um sonho/pesadelo, descrevendo estados de espírito em ambiente surreal.
ResponderEliminarContinua estou a gostar
Muito obrigada, Ana. É muito bom receber a opinião de quem se dá ao trabalho de ler e ... comentar.
ResponderEliminar