(Continuação)
O
sussurro esvaiu-se, lentamente, cedendo lugar a um espaço em branco, liso e
calmo, mas de curta duração, pois, em breve, ascendeu um contínuo bruaá, proveniente
duma espécie de ventoinha de tipo colonial, suspensa do tecto, mesmo sobre a
cabeça de Francisco. Estranhamente, em vez de frio, dispersava calor e, em vez
de pás metálicas, era constituída por folhas de papel branco, rabiscadas com
inúmeros desenhos, que, na castanha escuridão envolvente, não se deixavam
decifrar.
A
ventoinha ou fosse lá o que fosse, girava cada vez mais depressa, produzia cada
vez mais ruído, distribuía cada vez mais calor e descia assustadoramente,
ameaçando perfurar o corpo de Francisco, cujo coração batia em desmedido
alvoroço, estrangulando-lhe a cabeça numa tontura vertiginosa.
Na
urgência de escapar, precipitou-se pela abertura que, subitamente, se desenhou
no soalho, indo parar, com estrondo, à divisão inferior, nada mais nada menos
que o quarto da vizinha de baixo. Sentiu algum alívio ao estatelar-se em cama
alheia, vendo que esta estava vazia, mas foi alívio de pouca duração, porquanto, assim
como ele, também a ventoinha se precipitara em alucinante descida, à medida que
as enormes folhas servindo de pás se desprendiam, revelando, na proximidade dum
remoinho, o desenho de Rita, liberto do Moleskine e, como por artes mágicas, ganhando forma e corpo de
mulher, aterrando sobre o agitado e
estupefacto corpo de Francisco.
O
desespero tem suas formas próprias de trazer até nós aquilo que desejamos, repetia alguém, ao longe, à medida
que a ventoinha se transmutava em Rita, se não de alma, pelo menos de corpo.
Tudo
isto veio à memória de Francisco, enquanto, olhando as fundas e escuras olheiras
frente ao espelho, lavava meticulosamente os dentes, após ter engolido, à
pressa, uma torrada barrada com compota de frutos silvestres e um café Nespresso. Era tudo tão irreal,
sentia-se tão cansado e frustrado, que, num repente de indignação, decidiu
agir. Telefonaria aos amigos João e Diogo, para combinar uma noitada, era isso. Estava na altura de
se deixar de divagações - qual Moleskine,
qual Janete, qual pintor, Ricardo da Luz ou da Sombra, qual Rita, sobretudo,
qual Rita - e de voltar a pôr-se em campo. O espírito reclamava e o corpo
não lhe ficava atrás.
Bem vistas as coisas, nem sei o que
tenho andado para aqui a fazer, durante este tempo todo, estes malditos três últimos meses. Se me pedissem para
escrever uma autobiografia, seguramente, este capítulo ficava em branco – disse para consigo
próprio.
Era
sexta-feira, os amigos estavam disponíveis e, por volta das 22H, lá se
encontraram para jantar no Haruki,
restaurante japonês da moda, donde seguiram até uma discoteca super fashion, onde Francisco (e quem o
acompanhasse) gozava de tratamento preferencial, visto ter sido o mentor da
respectiva campanha publicitária de lançamento.
Por
volta das 02H, estavam encostados ao balcão, comentando desatentamente a
última corrida de fórmula 1 – de que eram os três adeptos – e observando, com
indisfarçada atenção, o que se passava em redor.
Numa
mesa próxima, acabavam de se instalar três jovens mulheres, aí pelos 30 anos, como
eles, qualquer delas a mais produzida, uma delas a mais sexy, outra, a mais
atrevida, sempre com os olhos brilhantes a navegar pelos horizontes próximos e
longínquos, e a terceira, a mais recatada, por sinal, a mais bonita.
Diogo,
o típico extrovertido, começou a
faiscar olhares na direcção da segunda, e, sem perder tempo, pegou no seu copo
de gin tónico e dirigiu-se à mesa delas, seguido dos outros dois, que
desafiara, em surdina.
O
entendimento visual estabelecido aboliu quaisquer fronteiras que pudessem ter
existido e, no segundo seguinte, os seis rodeavam a mesa, distribuindo-se em
apresentações e comentários de circunstância, ao mesmo tempo que se distribuíam
entre si, tendo-se Francisco envolvido em interessante conversa com Filipa, a
mais bonita, produtora de moda, devoradora de livros e outros produtos
culturais, como ele.
Assim,
enquanto Diogo e Paula, a mais atrevida, se movimentavam impiedosamente ao
ritmo da sensacional batida house de C.D. John, o disc jockey de moda, e João e Luísa,
sem qualquer ponto em comum, evoluíam, desirmanados, pela pista de dança,
Francisco e Filipa, rapidamente identificados nos seus comuns interesses,
acharam por bem procurar um sítio mais tranquilo, pelo que partiram, com
fugidios sinais de adeus aos outros.
E
foi assim que, ao cabo de lentas deambulações, acabaram a noite em casa desta, um pequeno mas elegante loft, de decoração minimalista, com
vista para qualquer sítio - para o mar, mas isso Francisco só viria a constatar
no dia seguinte, quando acordou ao som das ondas quase entrando pela parede de
vidro de alto a baixo e com um magnífico pequeno almoço servido em feminino
tabuleiro, todo louça cool e flor
abandonada, como por acaso, que Filipa, sorridente e descontraída, colocava a
seu lado, sobre a cama.
Tomaram,
pois, o seu primeiro pequeno almoço juntos, entre saudosas recordações da noite
anterior, mas que não havia por que devessem ser saudosas, pois podiam sempre
actualizar o estado ou os estados vários pelos quais passaram, sem deverem
satisfações a ninguém. Pelo menos, era o que pensavam e foi, justamente, o que
fizeram e foram fazendo, até o fim de semana terminar e cada um ter de retomar
o seu intenso ritmo de trabalho.
Ao
despedirem-se, pelo fim da tarde de Domingo (Filipa tinha invocado a necessidade
de preparar uma importante reunião para segunda-feira), enlaçaram-se e
beijaram-se demoradamente e Francisco convidou Filipa para almoçar com ele no
dia seguinte, mas ela, desprendendo-se, com lentidão, respondeu:
-
Lamento, mas amanhã parto em viagem de trabalho. Durante uma semana. Quando voltar, telefono-te um mando-te um SMS.
-
Um SMS não, por favor – respondeu Francisco, um pouco fora de tom e de controlo -
telefona-me, aliás, eu telefono-te, posso telefonar-te amanhã?
Filipa,
não querendo ser indiscreta em relação àquela proibição de SMS, engendrou logo
a teoria de que ele era comprometido
e receava ser apanhado por via
dalguma mensagem extraviada, mas, disfarçando a sua inquietação, melhor,
desconfiança, e pretendendo resguardar-se, limitou-se a responder:
-
É melhor não, afinal, vou estar ocupadíssima, milhentas reuniões, depois ligo-te, quando voltar.
-
Está bem, como achares melhor, não quero prejudicar o teu trabalho - respondeu
Francisco, ao mesmo tempo que pensava, ora
bolas, agora que isto parecia estar a correr tão bem, sai-me outra Miss Enigma.
Às tantas é comprometida e é por isso que não quer ser surpreendida pela minha
chamada.
E
assim, aquele aparentemente auspicioso início de cumplicidade, construída em
menos de dois dias, desvaneceu-se em menos de dois minutos!
Ela
ainda lhe acenou um adeus, mas ele nem se voltou para retribuir, pese embora
morresse de vontade de o fazer.
What a fuck! - Exclamou ele para consigo
próprio. Estava já a caminho de casa e, sem querer, veio-lhe á ideia o Moleskine.
O
raio do Moleskine tem suas formas próprias de me atazanar – pensou, ainda, antes de atender o
telemóvel, que, entretanto, desatinara a alardear o seu som desesperadamente.
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