segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A PRIMEIRA LIÇÃO DE LEITURA DO ESQUIZOFRÉNICO ESPACIAL


Mesmo nos idos de 3055, já poucos se lembravam do que era o prazer da leitura, há muito que o conhecimento, para não falar da simples informação, chegava directamente ao cérebro das criaturas, através de sofisticados interfaces virtuais, parcialmente alimentados pelo manancial do que sobrara - e era considerável - de civilizações extintas, sobretudo, pela ganância e estupidez de antigos habitantes. Tornada obsoleta, por desnecessária, a leitura entrara, todavia, na categoria do luxo, sendo ensinada a peso de ouro lunar, pelos poucos que detinham o conhecimento da arte, sim, porque ler era considerado uma arte.
Fora, precisamente, a obsessão por aprender a ler que o levara a introduzir-se, furtivamente, no último atelier de restauro de livros, bravo resistente à sanha destruidora do Ministério da Homogeneização.
É verdade que a maior parte das criaturas ignorava, sequer, o que fosse um livro, quanto mais a existência duma arte de ler, e, por isso, sufragados pela opinião do médico oficial, tinham-no rotulado de esquizofrénico - apesar do salto genético verificado no último século, este distúrbio mental persistira -, levando à conta de delírio a sua entusiasmada conversa sobre livros, à conta de alucinação, a sua jura de que já segurara um livro e da beleza que encerrava, e à conta de estado depressivo, o seu abatimento por não saber ler. Enfim, diagnóstico incompetente de criaturas formatadas para absorverem passivamente o que os poderes instituídos permitiam que os interfaces virtuais filtrassem para os seus geométricos neurónios.
De resto, esta sua esquizofrenia e respectivos custos já vinham de longe, como a memória da infância se encarregava de lhe lembrar, com persistência e rigor pendular, contando-lhe da valente sessão de reguadas que um dia apanhara do seu cuidador, aquele estúpido robot de lata - como lhe chamava, embora sem rigor, que ele não era de lata -, pelo simples facto de ter feito uma birra monumental porque, em vez da mais recente actualização de software neuronal, entendeu por bem reclamar um livro, um só que fosse, com a particular especificação de falar do mar e conter fotografias deste. Coisa estranha, delírio, verdadeiro alvoroço, onde teria ele ido buscar semelhante ideia?, nunca o cuidador lhe falara em tais coisas, livros, mar… Foi aí que o médico oficial, ainda na Escola de Actualização de Versões, lhe diagnosticou o marcante mal.
Não que ele se tenha importado ou, pelo menos, demovido, da imensa vontade de aprender a ler, de segurar um livro entre as pinças que lhe serviam de dedos, de o cheirar, como sabia que, outrora, as criaturas ditas humanas tinham feito. Essa vontade só tinha uma medida par, a enorme frustração por não saber ler!
E foi assim que entrou furtivamente no atelier de restauro de livros sobrante, escapulindo a sua magreza espalmada pela pequena abertura da porta deixada entreaberta, num descuido desconcentrado de quem já vai precisando de descansar, mas não tem tempo nem para pensar nisso.
Escondeu-se atrás duma estante repleta de livros, e, na proporção em que evitava mover-se ou fazer barulho, abriu muito os berlindes verdes que lhe serviam a visão, e pôs-se a observar com desmedida atenção, como quem não quer perder nem uma vírgula, todos e cada um dos volumes que percorriam as estantes casadas com as paredes da enorme divisão, apreciando-lhes as lombadas, na variedade de cores, tamanhos, estado de conservação, tipo de caracteres inscritos, brilhos e tudo o mais, ao mesmo tempo que imaginava os segredos que aí se encerrariam, os cheiros que se desprenderiam, a aspereza ou o cetim do toque, enfim, todo um mundo que, apesar de lhe ser desconhecido na realidade, lhe era tão familiar numa zona outra que nem ele sabia onde se alojava ou donde poderia provir. Não que isso importasse.
O seu estado de empolgamento atingiu o auge, impelindo-o contra uma das estantes, na pressa de abraçar um daqueles preciosos objectos de intenso desejo, esquecimento momentâneo da sua necessidade de anonimato. A animação foi tal que se estatelou contra o vidro da estante, provocando desabrido susto e espanto no guardador e restaurador de livros, que, afincadamente, reavivava umas belíssimas iluminuras dum exemplar medieval.
Esparramado no chão, balbuciou um apressado e insistente pedido de desculpas, justificado com a sua obsessão por aprender a ler. O outro, reconhecendo a genuinidade da justificação e do desejo expressos, sossegou-o, e prontificou-se a ensiná-lo a ler, afinal, era preciso começar por algum lado, espalhar as palavras para além da zona de luxo a que tinham sido confinadas. Espantado, o esquizofrénico acalmou, enquanto o livreiro, com bonomia, lhe disse,  - não estranhes, por vezes "cair é esperar que nos levantem", como li num desses livros.
O esquizofrénico ousou, então, expressar mais um pedido, uma especificação do anterior, um livro relativo ao mar, - onde aprendeste sobre o mar?, perguntou-lhe o livreiro, - no mesmo sítio onde aprendi sobre livros, - e onde foi isso?, - num sítio que não sei, mas que é fora deste onde habito e donde quero desaparecer, - para quê?, - para fugir deste frio em que habito.
E assim começou a primeira lição de leitura do esquizofrénico espacial.





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