quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O MENINO QUE PERDEU AS BOTAS

certo dia, um menino, aproveitando a distracção do pai, com quem passeava à beira do paredão, correu com quantas pernas tinha e só parou bem lá ao fundo, onde já não podia ser alcançado pelo olhar daquele, perdido que ficara à conversa com uns amigos
ficou a observar o horizonte, muito ao longe, mal adivinhado, devido à espessa cortina de névoa que tornava a paisagem translúcida
deixou-se fascinar pelo imenso manto ondulante por sobre o chão, que brilhava aqui e ali, tal qual respingos de diamante ou de simples zircão
Invadido por tanto de fascínio quanto de curiosidade pelo que suspeitava esconder-se mais além, esqueceu-se de pensar ou sequer de recordar as costumeiras advertências dos pais e descalçou as botas e as meias, colocando estas dentro daquelas e ambas sobre o paredão
descendo a rampa, logo sentiu os pés afundarem-se em areia, agora dourada à proximidade do olhar, experimentando uma engraçada sensação de cócegas que o fez sorrir
caminhou, caminhou e, à medida que avançava, começou a ouvir um murmúrio, logo transformado em rugido, e a sentir sobre a pele e os cabelos uma humidade, logo transformada em gotas de água
pensou que alguém o recebia com brincadeiras malandras e prosseguiu, animado com a perspectiva de descobrir quem seria, ao mesmo tempo que o seu sorriso se ampliou de contentamento
logo a seguir, assustou-se, porque um pé se lhe afundou na areia e, de desequilíbrio em desequilíbrio, viu-se empurrado a mergulhar de cabeça numa superfície fria e molhada 
e, sem ter tempo para se levantar, levou com o que lhe pareceu ser um grande balde de água fria pela cabeça abaixo, que o voltou a amarrar ao chão, deixando-o, por momentos, impossibilitado de respirar, para, de imediato, se lhe dissolver em cima numa espécie de efervescência
o certo é que a névoa estava cada vez mais densa e o menino não conseguia ver bem o que se passava, mas, por essa altura, podia concluir que se tratava de água, uma água barulhenta e borbulhante, que tirara o dia para se meter com ele (ou assim parecia)
já com o sorriso um pouco apagado, pois se sentia deveras a congelar, decidiu, contudo, prosseguir e indagar quem poderia estar para além daquela névoa cada vez mais cinzenta a pregar-lhe semelhante partida – sim, agora já pensava em partida e não em mera brincadeira
equilibrou-se como pôde e continuou, mas logo sentiu um braço forte puxá-lo para dentro-não-sabia-de-quê com muita força e, mesmo – pareceu-lhe – certa dose de violência
conforme pôde, lá conseguiu manter a cabeça de fora e esbracejar, apesar do que não alcançou a saída daquele não-sabia-o-quê 
foi, então, que ouviu um riso vindo bem lá do fundo e a voz desse riso perguntou-lhe, obviamente divertida: "que fazes aqui, rapazinho?" e ele, que não via ninguém e procurava respirar a custo, disse: "onde estás e quem és?" "eu sou o mar e estou à tua volta, mas não respondeste à minha pergunta" "Ah! – gaguejou o menino, aflito com a água que o rodeava e lhe sabia a sal – chamo-me manel e, e  e vim para desvendar o que a névoa esconde, mas, mas..." e não terminou a frase, porque já um jacto de água lhe entrava pela boca e nariz adentro, enquanto um braço poderoso o arrastava para dentro do agora-já-fazia-uma-ideia-de-quê
foi ao fundo daquela barriga imensa e, para seu enorme espanto, deixou de sentir quer o frio quer a aflição por respirar
em vez disso, deu consigo a oscilar, com ligeiros movimentos de pernas e braços, enquanto, de olhos muitíssimo abertos, contemplava, deslumbrado, um mundo maravilhosamente colorido por toda a sorte de plantas e animais, que nunca havia visto ou sonhara ver (descontados alguns, poucos, conhecidos dos livros)
entabulou conversa com vários desses seres misteriosos e, em particular, com um, de belíssima e transparente figura, que lhe disse chamar-se cavalo marinho, lhe explicou que mundo era aquele e lhe perguntou a que mundo pertencia
o menino explicou-lhe que pertencia à terra e que tinha ido à descoberta do mais-além-da-névoa, que estava muito feliz por o ter conhecido, a ele e aos outros fascinantes seres, mas que não podia ficar ali para sempre, embora ignorando como havia de regressar ao seu mundo...
prontamente, o cavalo marinho disse, "eu levo-te" e, sem esperar resposta ou agradecimento, aumentou de tamanho até se tornar o dobro do menino e mandou-o saltar-lhe para o dorso e agarrar-se a ele, o que o menino, mudo de deslumbramento, cumpriu, mal conseguindo articular um "obrigado"
e começava, fascinado, a viagem de regresso, por novas e fantásticas paragens que o cavalo marinho decidira mostrar-lhe, quando...
– manel, o que fazes aí deitado na areia, com o mar quase a chegar-te aos pés? mexe-te, temos de regressar a casa, já é tarde e está a refrescar muito, ainda te constipas!
dizia-lhe o pai, abanando-lhe um ombro, ao aperceber-se de que ele dormitava.
ao fim de uns momentos, o menino, atarantado e a contragosto, levantou-se e disse:
– ora, pai, logo agora que o cavalo marinho...
mas a sua frase – e, pior, a sua viagem – perdeu-se, porque o pai, já a ficar mais zangado do que impaciente, lhe perguntava:
– e as botas, manel, onde estão as tuas botas e, já agora, as meias?




Nota: este história surgiu-me de um par de botas infantis, com as meias dentro, com que me deparei sobre o paredão da Praia Grande, momento que registei na fotografia supra.


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