sexta-feira, 14 de junho de 2024

MARIA NINGUÉM (3): SURPREENDIDA POR UM ACHADO

a bem dizer, nem me lembro de como fui parar àquela cama, onde acordei bastante atordoada e com o corpo, aqui e ali, enfaixado em tiras brancas, presas com adesivos. por mais que puxasse pela cabeça, apenas me vinha à ideia um som, ti-nó-ni, ti-nó-ni, e a recordação longínqua de um alucinante desbobinar de degraus, como se tivessem vida própria. de resto, a minha vida apenas se manifestava pelas dores que, à medida que ficava mais desperta, me fustigavam sem sombra de consideração e destituídas de justificação de causa e, muito menos, de afinco. também não possuía noção exacta do sítio onde jazia esticada que nem um carapau congelado. a custo, rodei a cabeça e atinei a descobrir que se tratava de uma sequência de camas ocupadas por mulheres, de cujas bocas, volta e meia, se desprendiam suspiros, queixumes ou mesmo gritos. preparava-me para interrogar a da cama mais próxima, quando irrompeu pelo espaço um gajo de bata branca e auscultador pendurado ao pescoço, a modos de colar, embora não condizente com o brinco que lhe pendia duma orelha, seguido de mais meia dúzia ou por aí – na verdade, eu ainda não estava em condições de acertar nas contas. apesar do meu estado de debilidade e transtorno, tomei nota de que o homem era bom como o milho, alto, aí a rondar os quarenta anos, corpo a deixar adivinhar músculos bem exercitados e não sei que outros atractivos, pois vi o meu devaneio interrompido, quando ele se me dirigiu e, com um ar entre o altivo e o trocista, e para gáudio dos que o acompanhavam, disse: "então, tu és aquela que se andou a atirar das escadas abaixo e a ficar com a cabeça quase debaixo da roda dum autocarro? que ideia foi a tua?", enquanto me segurava o pulso e dava uma vista de olhos aos valores revelados por uma maquineta presa a um dos meus braços. sinceramente, não entendi nada do que ele dizia, embora tivesse começado a suspeitar que se tratava de um médico, seguido dos seus aprendizes, e que aquele meu poiso seria uma qualquer enfermaria. de tão aparvalhada, nem abri boca, quando muito os olhos, num arregalar de espanto, e ele prosseguiu, "como te chamas?", e eu nada, impossibilitada de comunicar, sabe-se lá porquê. ele insistiu, e eu acabei por responder, "não sei", não porque não soubesse, mas para ganhar tempo, até conseguir perceber o que me seria mais vantajoso, se revelar ou ocultar a minha identidade, pois, na realidade, não me lembrava do acontecido e de eventuais responsabilidades que pudesse carregar – se a minha vida de merda me servira para alguma coisa, fora justamente para pressentir o perigo e desencadear uma boa capacidade de defesa, de preferência, por antecipação. 

enfim, não importando os pormenores, passo a resumir: nos dias seguintes, insisti na versão amnésia, ao mesmo tempo que conquistava a compaixão da minha vizinha de cama, pela qual vim a saber o ocorrido, o que me proporcionou algum sossego, afinal não tinha feito nada de censurável, limitara-me a cair por umas escadas abaixo duas vezes seguidas, mas, que eu soubesse, cair não constituía crime. mesmo assim, quando, ao fim de quinze dias, tive alta, já devidamente esclarecida e adequadamente tratada, mantive-me na afirmação do esquecimento da identidade. entregaram-me um endereço dum qualquer abrigo da segurança social ou dalguma ong, não percebi bem, enfiaram-me uma nota de vinte e outra de dez euros nas mãos e mandaram-me embora.

pronta para a vida, com trinta euros e uma morada à disposição, nem sabia por onde reiniciar. fui andando até ao metro mais próximo e, antes de embarcar, enfiei-me num café, pedi um galão e uma sanduíche de fiambre, ocupei uma mesa junto ao vidro embaciado de sujidade da montra e saboreei cada golo e cada pedaço como se festejasse a minha ressurreição e a minha liberdade. depois, veio-me um calor às faces – não, não era da menopausa, eu ainda nem aos vinte e cinco anos chegara –, e caí na realidade: que faria agora? não podia regressar ao castelo do drácula, onde exercera de empregada de limpeza, com direito a um quartinho no sótão, não tinha ninguém a quem recorrer e, acima de tudo, não fazia tenção de me apresentar à instituição para onde a senhora do hospital, assistente social ou lá como se chama, me encaminhara, não, não confiava em instituições, bem me bastava ter passado por algumas, ainda menor, quando, devido à morte dos velhotes onde, anos atrás, o meu pai me pusera a trabalhar, fiquei só no mundo.

a bem da verdade, aquele calor nas faces era medo, mas habituara-me a desprezar o medo, pelo que rapidamente reagi, decidi galgar um patamar, passar do desprezo ao desafio, desafiar o medo.

e foi assim que dei início a uma nova etapa da minha vida, resolvi caminhar, apenas caminhar e ver o que acontecia, só que, desta vez, concentrei a atenção nos pés, as minhas pernas ainda estavam um pouco fracas e, tão cedo, não queria voltar a estatelar-me no chão.

encaminhei-me para um jardim e embrenhei-me na folhagem que ladeava uma alameda, por onde, àquela hora, não circulava muita gente. aliás, no momento em que aconteceu, não se via rigorosamente ninguém. fixos como levava os olhos no chão, apercebi-me de um súbito brilho a faiscar da base duns arbustos. curiosa, abaixei-me, afastei as ramagens e vi uma peça de metal que sobressaía duma superfície rectangular preta. debrucei-me mais e apanhei o achado, uma pasta de cabedal, aliás, bem pesada. com atenção minuciosa, olhei em volta, onde continuava a circular ninguém. rapidamente, envolvi a pasta no casaco que levava pendurado num braço e afastei-me dali o mais depressa que pude, agora com os olhos bem vivos em redor, substituído o medo de cair pelo de que me caíssem em cima. mas não, nem vivalma. quase corri para o metro, comprei um bilhete e fui até ao fim da linha, nem sabia que sítio era aquele. calhou ser um bairro agradável, embora modesto. caminhei até à zona mais central, entrei numa pastelaria e encaminhei-me directamente para a casa de banho. com o coração aos saltos, abri a pasta, ansiosa por descobrir que peso era aquele que carregava. senti-me tonta quando deparei com a quantidade de rolos de notas de cem euros oferecidos à minha vista – e à minha ganância, acabada de revelar. voltei a fechar a pasta, dissimulei-a o melhor possível no interior do casaco e saí dali, na pressa desvairada de encontrar um local seguro. ao fim de curta deambulação, deparei com um hotel de três estrelas, onde, apesar do olhar renitente do empregado, fui aceite, após ter pago antecipadamente duas noites, com recurso a notas que retirei do bolso das calças (depois de, ainda na casa de banho da pastelaria, as ter surripiado ao interior da mala).

a insegurança que sentia em nada se comparava à excitação, às gloriosas e nunca antes sonhadas perspectivas que aquele achado acabava de me oferecer. e não, não experimentei qualquer incómodo moral, percebi imediatamente que aquela pasta de notas ali tão manhosamente escondida só podia provir de algo ilícito e, como tal, mais valia estar nas minhas inocentes mãos, de resto tão penalizadas por uma vida miserável, do que retornarem à posse de quem, sabe-se lá por que aperto, ali a escondera, certamente com a intenção de voltar para a reaver. 



P.S. : este texto é continuação do (post) de 4 de Março p.p. e, com sorte, irá prosseguir.



1 comentário: