sábado, 29 de outubro de 2016

BIOGRAFIA DUM FETO FEITO VELHO



Aconchego Inquieto

De repente dei comigo enfiado num saco mole. Vim a saber que se chamava pele. Um par de joelhos dobrados sob o queixo, um par de cotovelos dobrados junto ao tronco, uma cabeça inclinada sobre os ditos joelhos, como se lhes quisesse contar os ossinhos menores, ainda tão feitos cartilagens. Navegava num espaço pouco, que, de vantagem, tinha ser aconchegante e, sobretudo, ser só meu, pelo menos ninguém me acotovelava ou dava pontapés. Passei a ouvir uns sons vindos de fora, mas agora não me lembro o que diziam. Passei a sentir umas pancadinhas, não doíam, eram devagarinho, circulares, calmantes. Achei por bem responder, mandei um pontapé, à experiência. Senti um alvoroço do lado de lá, cá dentro continuava tudo calmo, quente, líquido. Pareceu-me um alvoroço bom e resolvi repetir. Daí em diante, quando me apetecia sentir aquele alvoroço, mandava um pontapé. Dava sempre resultado. Eram esses os momentos em que me sentia mais desperto, menos propenso a mergulhar na ausência. Verdadeiramente, não queria pensar no que me esperava. Tinha ouvido tantos relatos pavorosos sobre vidas futuras que preferia fingir-me de morto, ressalvados os pontapés. Tempo de pontapés era tempo de alvoroço bom, logo, tempo de esperança. Talvez as coisas não viessem a ser tão más como ouvira dizer, já não me lembro a quem, nem onde, nem como, nem quando. Comecei a mentalizar-me, viesse o que viesse, o melhor era sair o quanto antes. Já tinha a noção de que não vale a pena adiar o que tem de acontecer. Bem, acabei de dizer uma idiotice, eu sei! Obviamente, não está nas nossas mãos adiar o que tem de acontecer. 

Aterragem Turbulenta

Passar por aquele túnel desiluminado, estreito, pegajoso de viscosidades estranhamente coloridas e opressor como um corredor de tenazes, foi uma experiência e tanto! Quero dizer, foi doloroso, apavorante e claustrofóbico. Vá lá que, por fim, se fez luz, aliás, uma luz deveras forte, que me forçou a abrir os olhos ramelosos num espanto de desconhecido. Mãos enormes prendiam-me, como para me impedirem de ir a algum lado (algo que, de toda a maneira, não conseguiria). Olhos enormes e sorridentes vasculhavam o meu corpo desvalido e nu, apenas envolto num muco nojento e ligado ao sítio donde acabara de sair por uma estranha corda de cor esquisita. Vozes altas e animadas diziam coisas várias que eu não estava com cabeça para entender, coisas dirigidas em várias direções, mas, sobretudo, na minha - como se eu pudesse responder! - e na do corpo donde eu acabara de sair e que jazia, de barriga inchada, cabelos colados à testa e um ar apalermado, estendendo os braços na minha direção. Estava super assustado, sem perceber bem onde acabara de aportar e o que se seguiria, de modo que resolvi explodir em gritos. Pareceu-me terem ficado todos muito contentes, o que me fez berrar ainda mais alto, pois acabara de me aperceber de como aqueles seres podiam ser perversos (sim, a rirem-se da desgraça alheia!). 


Sobrevivência

Mais tarde, vim a perceber que não se tinham rido por maldade, antes pelo contrário. Infelizmente, também vim a constatar que aquele meu julgamento inicial, enquanto avaliação dos meus pares, não andava nada longe da realidade. Pior para mim.

De repente dei comigo enfiado neste saco mole, enrugado e descaído, que é a minha pele feita serapilheira de amparar restos. Não que o tempo tenha passado de repente. Sinto, aliás, que o tempo demorou muito tempo a passar, tive momentos em que lhe perdi a conta, derreado que andava de lhe sobreviver. Só que chegou um momento, assim um súbito, em que me olhei ao espelho e vi, de atacado, os seus efeitos, a marca do longo tempo que me passara por cima. Intensificou-se-me a vontade de partir, mas o tempo insistiu em me habitar, em me empurrar para diante, em vez de me deixar para trás, de desistir de mim.

Agora sabia-me bem o aconchego morno em que me balançava antes de ter sido largado por cá - já falei disso, aí acima. Falta-me esse aconchego ou outro qualquer. Prometo que não darei pontapés, já não careço de alvoroço, do alvoroço alheio. Já não sou ingénuo, não levo a sério nenhuma das versões correntes sobre o que me espera, o próximo desaguar. Sei que nenhum dos autores dessas versões sabe do que fala, ninguém lá esteve para poder testemunhar. Não que isso me deixe substancialmente mais tranquilo do que na transição anterior. Mas uma certeza eu tenho, desta vez será um ponto final para este tempo que me dura tanto. Isto é, por si só, uma boa notícia. 


Abandono

Enrolo-me na cama, joelhos dobrados junto ao peito, quase a tocarem a cabeça descaída, braços dobrados junto ao tronco. Alguém me ajeita um edredão com mãos suaves, movimentos calmantes, circulares, sobre a minha cabeça, agora despojada de cabelos. Como outrora, pese embora tratar-se duma mão alheia, uma mão ao acaso, talvez mera ilusão. Penso, divertido, que a pele à volta do crânio foi a única que não esmoreceu, esticada que nem uma pista de aterragem, pronta a receber o voo rasante das moscas. Sorrio. Um sorriso que se apaga. Devagar, nada daquela agitação da chegada. Não voltarei para contar se tive de atravessar mais um túnel.








segunda-feira, 24 de outubro de 2016

OLHAR, SORRIR, PARTIR!



Esta história - de que, aliás, já falei por aqui - podia chamar-se, Olhar, Sorrir, Partir (ou, simplesmente, O Enigma). Começou com uma troca de olhares, acompanhada duma troca de sorrisos.

Mas vou começar pelo princípio.

Aconteceu já lá vão uns vinte e tal anos, não sei exactamente quantos.

O amplo espaço começou a encher-se de pessoas, mal as portas se abriram, como se todas ansiassem por um pouco de conversa, um café, esticar as pernas, tossir à vontade ou qualquer outra coisa igualmente simples e previsível, dada a natureza do espaço e do acontecimento.

Numa mínima fracção de segundo - que estas coisas acontecem sempre nesse espaço de tempo -, o meu olhar, distraído da conversa com os amigos que me acompanhavam, cruzou-se com o de um homem, não muito alto, que também convergia para o átrio. Sorrimos ambos, com a franqueza, a simpatia e a cumplicidade dum conhecimento antigo, protegido da distância, de qualquer espécie de distância (espacial, temporal ou qualquer outra).

Ele prosseguiu, com a senhora que o acompanhava, eu continuei com os meus amigos, e - como viria a descobrir pouco depois - ambos ficámos um pouco abstraídos, na resolução do enigma criado (bem, eu fiquei). As portas voltaram a chamar-nos para dentro, retomámos os nossos lugares, desfrutámos o que tínhamos a desfrutar e, no tempo próprio, voltámos a rumar ao átrio ou salão-átrio.

Quis o acaso, ou outro qualquer fenómeno insondável, que os nossos olhares voltassem a cruzar-se, que os nossos sorrisos se trocassem de novo, espontânea a abertamente. Estávamos, agora, mais perto, e ele avançou para cumprimentar e apresentar a mulher. Não podíamos adiar mais,  tornava-se imperioso adiantar os nomes. Tomei a iniciativa da confissão. Exibindo um à vontade conquistado à custa sabe-se lá de quantas penas, encarei-o, sorridente, e disse, - peço desculpa, mas não estou a lembrar-me donde nos conhecemos! Também mantendo o sorriso, respondeu-me que o mesmo sucedia com ele. Começámos a enumerar as terras de nascimento, os locais de estudo, de morada e de trabalho, e tudo o mais de que nos lembrámos, para mutuamente concluirmos não nos conhecermos de lado nenhum… Não garanto que, por essa altura, não tenhamos experimentado um certo incómodo ou falta de à vontade, mas, se assim foi, disfarçámos airosamente com o sorriso - esse nunca se esbateu - e com uma frase do tipo, - bem, então muito prazer em conhecê-lo(la). Fiquei a imaginar a cena que a mulher lhe deve ter feito, - estás parvo ou a fazer-te de parvo?, deve ter sido o mínimo que o desgraçado há de ter ouvido ao longo do resto da noite, quem sabe se com direito a prolongamento por mais alguns dias!

Cada um seguiu o seu caminho, e, talvez porque não houve mais nenhum intervalo - no espectáculo, já nem me lembro qual, a que assistíamos, na Fundação Calouste Gulbenkian - não nos voltámos a cruzar, o que é dizer, não voltámos a sorrir um para o outro. 

Nunca mais o vi. Por mais que me tivesse obcecado na exploração de todas as circunstâncias em que o pudesse ter conhecido, nunca cheguei a desvendar tal enigma. Curiosamente, apesar do tempo decorrido, mantenho uma memória - breve e difusa, é certo - do seu rosto e, sobretudo, do seu sorriso. Se fosse dada a creditar em fenómenos dessa natureza, iria concluir que nos tínhamos conhecido e sido próximos - amigos, familiares... - numa vida anterior. 






sábado, 22 de outubro de 2016

UMA TARDE, UMA PRAIA


Eis-me aqui sentada, costas levemente inclinadas para trás, pernas estendidas adiante, descontraídas, como quem acabou de se espreguiçar. Gosto sempre de chegar aqui. Há anos que chego aqui, fico e depois parto. Assim será até ao dia que for o último, aquele em que já não irei ou já não regressarei, mas isso é da vida,  como se sabe.

Foco-me na distância, na linha de separação ou de junção, consoante o ponto de vista - curiosamente, também é da vida, isto da distância coincidir sempre com um ou outro dos extremos -, diviso movimentos leves, lentos, esbatidos, talvez assim pareçam, apenas porque longínquos. Retraio o olhar, mais perto, de longe para perto, e surpreendo-me, surpreendo-me sempre. A cadência nunca se repete, a cor nunca se repete, o som nunca se repete e todavia... Também a vida nunca se repete, embora, por vezes, manifeste uma irritante tendência de repetição.

Através dos vidros entreabertos, não tolhidos pelo empecilho de cortinas impensáveis, apercebo-me, quase sem os ver, da passagem de um ou outro carro. Dispensável, penso. Volto a focar-me na distância, não quero deixar distrair-me pela ocorrência de banalidades. Todavia, as banalidades acontecem, mais um facto da vida. Movimentos de pessoas, vozes de pessoas, risos de pessoas. Não quero saber para onde vão, o que dizem e, muito menos, do que riem. Pelo vidro despido de cortinas desnecessárias, vejo-as, sou forçada a vê-las, estão quase à minha frente, bem, um pouco ao lado.

Volto a mergulhar na distância. Elevo o olhar, como se quisesse planar acima das banalidades. Camadas de cinzento, de vários graus de cinzento, deslizam lentamente, sem pressa nem destino, debruçadas sobre vários graus de verde, azul, cinzento, todas as cores em matizes foscos e cambiantes. Cores que se desdobram, encimadas por cristas brancas, como se manejadas pela hábil e caprichosa mão dum pintor de repetições, todavia, inovadoras - se é que existe tal coisa, repetições...inovadoras!

Esqueci o movimento dos carros, mas não o ruído dos palradores. Procuro concentrar-me no murmúrio de fundo, em cujos braços, outrora, me deixava adormecer. Agora não. Ignoro porquê. Bem, faço uma ideia, mas não é para aqui.

Levo os olhos para a meia distância e avisto um homem em luta, serena mas determinada, com a falta de vento. Curioso, isto de lutar com uma ausência, mas também é da vida, há ausências assim, mais poderosas e determinantes do que mil presenças! Os seus movimentos, a sua insistência na repetição esforçada, têm algo de desafiador. Talvez não queira render-se ao destino ou sei lá a que outra imposição. Por isso insiste no seu ballet falhado.

Uma ave atravessa, por instantes, o meu campo de visão.

O tecto cinzento ameaça romper-se, descarrilar em miríades de gotas, primeiro lentas, talvez, depois, vertiginosas.

Antes de partir - sei lá se pela última vez, não que isso interesse alguma coisa - ocorrem-me dois pensamentos, aparentemente, não conexionados: - este lugar devia ser só meu (talvez assim pudesse voltar a adormecer)!; - tomara que chova!


















quinta-feira, 1 de setembro de 2016

SAUDADE DE TER SAUDADES


A partir de certa altura, estás sempre à espera, o sobressalto integra o teu dia-a-dia. Não que dele faças depender o curso da vida - ao menos na medida em que depende de ti... -, mas ele está lá, dissimulado de mil maneiras, roendo-te por dentro, estoirando a cada toque de telefone inesperado. Afinal, é a ordem natural das coisas, eles não são eternos! Eles, os que te precederam, te chamaram para este lado - sem consulta prévia, é certo, mas não pode deixar de ser assim! - e, no caso, te marcaram com o ferrão do sobressalto. Os Pais.

Simultaneamente, mesmo a partir de certa altura, não estás à espera, simplesmente porque recusas que possa acontecer, simplesmente porque não queres que aconteça, simplesmente porque não vislumbras como vais poder sobreviver (-lhes). A caixinha do pensamento mágico a abrir-se em toda a sua magnificência e (sabida) estultice. Quem sabe, um qualquer reduto, soterrado na tua maturidade precoce, se tenha recusado a crescer!

Cada vez que os abraças e beijas - não que, por essa altura, sejas muito dada a abraços e beijos - e constatas que estão bem, dás graças a entidades celestiais, cuja existência a razão te recusa aceitar.

Um dia, um maldito 26 de Julho, o telefone toca. Não, não vais entrar em pormenores, excepto os que o título reclama. Não se trata disso, nem o pudor to permitiria. Foi a Mãe. Morreu. Ias escrever, partiu, mas não, isso não passa de eufemismo cobarde, palavreado para enfeitar a realidade - e não és dada a enfeites, ao menos desse tipo.

Passas a escrever-lhe uma carta por noite, embrulhada em lágrimas contidas longos anos. O dia é outra coisa, é o tempo da normalidade, do trabalho, da resolução de problemas (e que problemas sobrevêm!), da resistência à quebra de afectos adquiridos (calha, circunstâncias da vida!), do apoio dos amigos (uma delas frequenta este blog, sabe do que falas e nunca te cansarás de lhe agradecer o apoio!). Enfim, é a vida, em toda a sua dimensão, do lógico ao absurdo. Também a força e o espírito guerreiro... Quer dizer, garante-se o equilíbrio no fio da navalha, caso para afirmar que a sobrevivência sobrevive!

O hábito das cartas nocturnas desvanece-se, a lembrança continua presente, em cada pormenor, o desgosto é enorme.

Desenrola-se um doloroso ano e meio e chega o outro telefonema,  não tão inesperado, outro dia maldito, um 30 de Janeiro. O Pai morreu (e não, não ias escrever partiu).

Renova-se a escrita das cartas nocturnas, embrulhadas em lágrimas, menos líquidas, que há pesos que até o choro turvam. As cartas acabam por cessar, a memória persiste. A recordação magoada reune o que a morte separou e, agora, voltou a unir. Sempre os conheceste juntos. Talvez seja um luto único. Magoa. Muito. Em qualquer pequeno pormenor está impressa a presença da ausência. Dos dois, feitos um. Um luto. Muita mágoa. Demasiada, vivida por dentro, sem deixar transparecer. Sobretudo sem deixar transparecer. Esconder o sofrimento, sempre. Por pudor. Porque não te interessa a solidariedade na miséria. Dispensas. Porque não aguentas a insensibilidade face à miséria. Ou, talvez pior, a agressão. Evitas. Porque já conheces da vida o suficiente para saberes que cada um tem  as suas dores.

O tempo passa. A vida impõe-se, em todo o seu despropósito, quer dizer, na soma de rotinas, incongruências, esperados e inesperados, nada de especial interesse. Impões-te à vida, quer dizer, aguentas e segues. E desfrutas do que podes. Eles, os mortos feitos um, Mãe e Pai feitos Pais,  continuam a acompanhar-te em mil recordações e vazios diários. Compreendes, na pele, o que é a vida para além da morte ou, por outras palavras, a eternidade das almas: a permanência na memória dos vivos, ainda que dum só vivo. Não passa disso.

A vida alegra-se com a (tão desejada) chegada duma nova geração à família. Pouco a pouco, voltas a sentir o Natal - que já deras por morto e enterrado - na plenitude do entusiasmo infantil. Dádiva inesperada e agradecida. Mas a memória, a recordação, persiste, insiste. Continuam e continuarão a viver enquanto assim for. A nova geração vai florescendo e é junto dela que perdes o pudor de os recordar em voz alta. Falas-lhe neles, sempre a sorrir, queres perpetuar-lhes a lembrança para que sejam eternos. As crianças são atentas e maravilhosas, gostam de ouvir histórias de família. Interessam-se. Fazem perguntas.

O tempo passa. As lágrimas vão-se perdendo na corrente do tempo. Continuas a lembrá-los diariamente. Continua a custar-te revisitar os cenários de partilha das vidas cortadas. Invadem-te pesadelos, em vez de sonhos belos, excepto um, numa madrugada dum teu aniversário: ela, a Mãe, debruça-se sobre ti, com toda a ternura dum sorriso resplandecente e estende-te uma rosa. O melhor presente de aniversário. Referes-te a presentes sonhados e não àqueles que costumas receber. 

O tempo passa. Já lá vão dezasseis anos. A recordação começa a interromper a sua rotina diária. Os pesadelos seguem-lhe o abrandar. Todavia, de vez em quando, a dor, agora morna, assalta-te, com toda a crueza do desespero profundo, em sonhos esparsos e vívidos. Acordas com a certeza de que, ao abrigo da noite, algum duende maligno abriu a caixinha para onde, afinal, empurraste o sofrimento. Sentes um enorme alívio. Agora é dia, o duende maldito ficou preso nas malhas da escuridão. Com sorte, não se lembra de ti tão depressa. Terá outras caixinhas a desinquietar, espalhadas pela arrumação doutras vidas. 

O tempo passa. Já lá vão dezoito anos. Constatas que a recordação perdeu a cor. Achas estranho. Muito estranho. Se o tivesses que descrever numa palavra dirias, longínquo. Acrescentarias, talvez, desfocado. Ocorre-te a asserção gasta, o tempo tudo cura! Não, não te parece que se trate de cura. Apenas um - como dizer? - evoluir. Não se trata de ter feito o luto, que, de resto, não é nenhuma doença. Muito menos de o ter ultrapassado. Sucede, apenas, que te encontras numa nova fase. A ausência magoa duma forma diferente, porque, agora, se aproxima do esquecimento. Não, não é bem isso, talvez seja uma espécie de afastamento, um longe. Uma ameaça de vazio, velada por um manto de absurdo. Até as lágrimas  manifestam uma recusa surda, presas que ficaram num qualquer nó do tempo. 

Assim como não rejeitaste a dor - não por masoquismo, mas porque não houve maneira - não rejeitas esta espécie de desafiadora ausência de dor. O teu lema é enfrentar. O orgulho e o espírito guerreiro encarregam-se do resto.

O tempo passa. Ainda não encaixas bem esta nova fase. E resumes, (como sempre) sem dramas: sinto saudade de ter saudades! Alguém comenta que a frase daria um bom título para um livro. Respondes que a tens pensada para título dum post do teu blog.





sexta-feira, 19 de agosto de 2016

DEPOIS FOI AQUILO QUE SE SABE!


foi assim
do nada rasgou-se uma alameda de promessas

desfilaram sorrisos e imaginações
cumplicidades irmanadas, de braço dado
narizes no ar, orelhas arrebitadas, olhos desfocados

tudo era atração
bocas entreabertas em forma de beijo
ainda só consumado no desejo

soou música alegre e divertida
guardou-se o pensamento para o desengano
(ingénuo fingimento!)

tudo era encanto
perfumes inebriantes
passadeiras de flores sem espinhos
expressão de promessas incumpridas
(não o são, todas as promessas?)

no fim, afogou-se em vinho
(afoga-se a mágoa em doce vinho?)

tudo era luz, vibração, fantasia, desejo, alucinação
cintilação suspensa no infinito

foi bom, enquanto durou

depois... 

ora!








domingo, 7 de agosto de 2016

O SÉTIMO DIA


Entrou em casa como quem se limita a cumprir mais uma rotina. Atirou-se para o sofá cor de pedra e só encontrou forças para estender as pernas sobre o tampo de vidro da mesa de apoio, que, com o sofá e pouco mais, compunha a decoração da sala. Fixou as pálpebras fechadas, olhos vazios, por dentro, no écran vazio da televisão desligada (mesmo quando ligadas, os écrans são sempre vazios, pensou). Apetecia-lhe uma bebida gelada, mas a inércia e um cansaço pesado impediram-no de se mover. Um calor asfixiante gatinhava pelas paredes, reverberando em ondas opressivas. Fechara o bar pouco antes, após mais um dia, longas horas, a servir álcool aos clientes habituais e aos outros, os que apareciam e desapareciam como se andassem a cumprir a volta ao mundo, com o desígnio exclusivo de experimentar incessantemente locais novos. Era o sexto dia da semana. Seguia-se o sétimo, para descansar. Até Deus tinha descansado ao sétimo dia, depois de se ter dado à invenção do mundo. E, por definição, ninguém o obrigara, nem tivera de aturar o que ele aturava. Horas a fio a encher copos, uns duma coisa outros doutra, a controlar a clientela, gente que, de vez em quando, levantava reboliço, umas chapadas, uns socos, umas cadeiras pelo ar. E ele de intervir, de os acalmar, de restabelecer a calma, aquilo não era nenhuma espelunca, quer dizer, ele sempre se empenhara em que aquilo não fosse nenhuma espelunca. Até tinha contratado um pianista. Nada mau, por sinal. Afundava-se na música (Jazz) com uma entrega semelhante a desespero, talvez fosse mesmo desespero. Pelo menos, tinha a força que só este é capaz de exercer sobre as pobres almas de que se alimenta. Todavia, os sons emanavam com a leveza de breves aves a deambular por céus límpidos, ao sabor de aragens ligeiras e refrescantes. Ela, a mulher alta, esguia, de cabelo dourado a rasar as omoplatas, nunca parava de o olhar, embora com o olhar indecifrável dos míopes. Ocupava sempre a mesma mesa, nem a mais próxima nem a mais distante do piano, como quem pretende escudar-se em terreno neutro. Consoante o ouvia e fitava, fazia deslizar os dedos compridos, de ossos salientes, talvez um pouco masculinos, numa deambulação permanente, ora sobre as pernas, alisando o pano da saia justa, ora à volta duma madeixa de cabelo, como quem precisa de domar ou controlar alguma coisa. Alguma coisa ou alguém, podendo ser ela própria - pensava ele, agora abandonado no sofá cor de pedra. Vinha sempre acompanhada, nem sempre do mesmo homem, com o qual, fosse um ou outro, mal trocava meia dúzia de palavras. E, quando o fazia, mal o olhava, permanecia fixada no pianista, como se hipnotizada pelos sons que ele libertava do piano com uma fluidez de encantamento e uma força de guerreiro. Eles, os acompanhantes, pareciam desempenhar o papel de meros passaportes para a sua entrada no país da contemplação do pianista. Talvez não gostasse de entrar sozinha no bar. Por vezes, tocavam-lhe com os dedos. Eram gestos de ternura, de afirmação ou promessa de posse, ou de mera provocação. Ela não reagia ou, então, revelava enfado ou retribuía mecanicamente, sem olhar, sem sequer olhar. Uma ou outra vez, eles levantavam-se e saiam. Ela permanecia, como quem já se encontra a coberto das fronteiras transpostas, podendo dar-se ao luxo de dispensar o passaporte. Mas, pouco depois, saía também. O pianista, que, na abstração do seu mundo tecido de sons, costumava perder os olhos semicerrados no infinito, não se apercebendo de nada nem de ninguém à sua volta, foi captado pela insistência daquele olhar. Desde a primeira vez, quando a viu entrar num movimento longo e tenso. Retribuiu. Os seus olhos abriram-se para ela. A sua imaginação abriu-se para ela. O seu desejo abriu-se para ela. O coração, não se sabe. Afinal o coração tinha-se-lhe perdido há muito tempo e talvez fosse difícil de encontrar. Talvez já nem existisse. Não que isso devesse fazer qualquer diferença, pois nada no olhar, no corpo ou nos gestos dela sugeria a retaguarda dum coração. Um dia, ele resolveu ousar. Interrompeu a música, agradeceu os aplausos que sobrevoaram o bulício geral, levantou-se e dirigiu-se ao balcão, passando rente à mesa dela e acenando-lhe um sorriso tão cauteloso quanto convidativo. Ela, que, mal ele parara de tocar, baixara a cabeça e mostrara uma inquietação como se fosse urgente partir, retribuiu-lhe o sorriso. Sem cautela, sem a intimidade dum convite, com naturalidade e, sobretudo, com distância. O homem que calhava acompanhá-la naquela noite perguntou-lhe:
- Conheces o tipo?
- Qual tipo?
- Ora, não te faças de parva, o pianista?
- Ah! o pianista, que me lembre não. Porquê, tu conheces? Obviamente, o acompanhante não gostou, sentiu-se feito parvo, ninguém gosta de se sentir feito parvo, fixou-a com olhos afogueados e disse,
- Olha, estou no ir. Vens?
- Não, fico mais um pouco.
Mas só fingiu ficar, como se apenas quisesse desafiá-lo ou desfeitiá-lo. Deu-lhe uma vantagem de cinco minutos, levantou-se e saiu. Antes, porém, dirigiu-se ao pianista, que acabara de beber um gin, encostado ao balcão. Falou-lhe como se o conhecesse de sempre, só para dizer, enquanto lhe passava um papel para a mão, - telefona-me, se quiseres. Ele gaguejou qualquer coisa, não se percebeu bem o quê, e, antes de se ter tornado perceptível, já ela desaparecera pela porta, deixando atrás de si uma sombra de cabelos esvoaçantes e um rasto de perfume duma frescura cortante, com uma nota ácida, tal qual o timbre da voz com que proferira aquelas parcas palavras.  Com o papel amarrotado nas mãos trémulas, ele correu para a porta. Demasiado tarde. Já nem o rasto de perfume permanecia. Ficou especado sob o néon que desenhava o nome do bar, O Sétimo Dia, e só então se fixou no papel. Estremeceu, com um arrepio gelado. Estava liso, tão vazio como o seu copo acabado de beber. 

Sentiu a transpiração a escorrer pelas costas abaixo, desencostou-se do sofá cor de pedra, desceu os pés do tampo de vidro da mesa de apoio e monologou, por que raio me vem sempre à ideia esta história, de todas as que testemunhei no bar? Podia escrever um romance pelo menos do tamanho de Guerra e Paz, só com as histórias que uma data de bêbedos solitários e lamechas me vomitaram para cima, como se tivesse alguma obrigação de os aturar. E sem pagarem mais por isso, às vezes, até as bebidas ficaram a dever. Todavia, é desta história que me lembro sempre. A história do pianista que nunca cheguei a saber se nem sequer tinha coração, se o tinha perdido ou se o chegou a encontrar. E da gaja, daquela estranha gaja.

Naquela noite decidiu fechar definitivamente o bar. Todos os dias passariam a ser o sétimo dia. Aliás, o sétimo dia passaria a ser a ausência de dias. Apetecia-lhe devorar qualquer coisa. Até não haver sobras. Contemplou os dedos. Começou pelo polegar da mão direita. 

Passados três dias, quando a empregada abriu a porta, deparou-se com uma mancha estranha no sofá cor de pedra. E um bilhete amarrotado. Desdobrou-o, cautelosamente. Em branco, nem uma letra ou um vestígio de cor. Vazio.  

(Nota: Escrevi este texto parcialmente sob influência do livro O Inverno em Lisboa, de Antonio Muñoz Molina, que estou a ler com uma espécie de encantamento pelo cariz poético da narrativa duma história de desencanto.)   







domingo, 24 de julho de 2016

FEELING SO FUCKING SILLY!


Por esta altura, nada me incomoda mais do que a onda (aliás, tsunami) de calor que se faz sentir, prometendo ficar (como diria aquele escritor que já prometeu falhar e perder, coisas que eu, pela minha parte, cumpri, mesmo sem necessidade de promessas). Bem, há mais uma coisinha altamente incomodativa e irritante, a estupidez. Não deve ser por acaso que lhe chamam silly season. O grande problema é que se contagia. Falo por mim, evidentemente. Ainda há pouco, saí do túnel das Amoreiras a caminho de Alcântara e eis-me, sem apelo nem agravo, em cima da Ponte 25 de Abril! Como se o núcleo (mais) parvo do subconsciente pretendesse impor-me o Algarve, para me encontrar com os restantes quinze ou trinta milhões de portugueses que para lá rumaram ou hão de rumar até ao fim de Agosto e mesmo por Setembro dentro. Menos mal que o atravessamento da Ponte é sempre simpático, sob o prisma panorâmico, que o trânsito, apesar de compacto, se desenrolava sem pausas dramáticas, que já tenho a minha dose de imprevistos, com a aquisição do pertinente jogo de cintura, e, finalmente, que o carro tem ar condicionado. E, mais importante, não está avariado (o ar condicionado). Contrariamente à janela do lado do morto, que deixou de funcionar há uns meses, quer dizer, ela funcionar, funciona, mas num estilo que não lhe serve a função. Passo a explicar, abre na perfeição, mas recusa-se a fechar. Quando se encontra lá em cima, no ponto de encerramento, volta a descer e, desaustinada, põe-se a andar para baixo e para cima, qual leviana imune ao desespero do comando. É claro que, munida da minha prática de adaptação a imprevistos, arranjei, de imediato, uma maneira de a tramar. Manobrei o botão cuidadosamente e, no exacto ponto do fecho, desliguei a ignição ou lá como é que se chama (sem me esquecer de começar por parar o carro...). Advirto que (para além de criatividade) é necessária elevada precisão matemática, mas o que é isso para uma pessoa cheia de reflexos! Evidentemente, achei-me deveras esperta, pelo menos mais do que a janela teimosa. E mais do que os senhores da Santogal, que queriam não sei quantos euros - mais de cinquenta - só para identificarem a raiz do problema e apresentarem orçamento para o arranjo. - Ah!, então o orçamento não é gratuito!, exclamei, após informação (deles) em contrário. - Não, minha senhora, o orçamento é gratuito. Ok - pensei - wathever, sempre soube que os senhores deste ramo, para não falar noutros, consideram as mulheres intelectualmente diminuídas. Ok, a janela será arranjada no Dia se S. Nunca. Reforcei a ideia de trocar de carro e, enquanto não, vou avisando os penduras para não darem ordens à janela. Parece-me que ela não gosta, fica chateada de não poder andar para cima e para baixo a gozar comigo. Os da Santogal também não devem ter gostado, mas isso é problema deles.
Continuando com a estupidez, que o calor já se sabe. Uma pessoa sintoniza a rádio (para a televisão não há, mesmo, paciência, por demasiado gráfica e embrutecedora), a fim de se actualizar sobre o número de mortos do dia resultantes de assassinatos perpetrados a soldo (ou  em mera publicidade gratuita) do Estado Islâmico, do Sr. Erdogan ou doutras entidades igualmente respeitáveis, e depara-se com quê? 
Primeiro, com o diabo à solta no hemiciclo de S. Bento (hemiciclo fica sempre bem e dá para fantasiar se as coisas poderiam ser diferentes caso se tratasse duma sala com outra disposição, por exemplo, oval)! Ainda se vestisse Prada! Mas não, trata-se dum diabo rasca, que o Sr. Costa, num dos seus delírios de optimismo com os pés no ar (como diria o outro), jura combater, na mais pura tradição heroica portuguesa (agarrem-me se não…), e que o Sr. Passos Coelho ameaça reeditar, lá para Setembro, numa das suas tristes exibições de mesquinhez, herdadas duma mal digerida tradição judaico-cristã (no seu pior).





Segundo, em reacção ao morticínio de ontem, em Munique - entretanto, já houve, pelo menos, mais um, em Cabul, com para cima de sessenta mortos, que o Estado Islâmico, perante a dúvida sobre se o primeiro lhe é atribuível, não se fica -, o Professor Marcelo vem dar conta do teor da mensagem que enviou à Sr.ª Merkel, expressando horror e solidariedade, e aproveita para esclarecer que os atentados aumentam a sensação de insegurança na Europa. Ora, aí vou eu de ficar pasmada, pois sempre pensei que, numa tal circunstância, fosse caso para manifestar, sei lá?, contentamento e animosidade, e constatar que não parava de aumentar o sentimento de paz e segurança na Europa. Ao mesmo tempo, recordo, com nostalgia, o tempo em que havia a figura de porta-voz da presidência da República. Para não falar de quando o agora presidente expendia comentários na TVI, estação que, de todo, não frequento. E entro em divagações sobre como seria muito mais divertido se o Professor começasse a comunicar coisas menos óbvias, como por exemplo, quando foi a última queca presidencial (grande lata, o corrector ortográfico, esse grande ditador, queria substituir esta palavra por queda!) e que sensações e advertências lhe suscitou.



Terceiro, espanta-me o conhecimento de que hoje é dia de homenagem ao Sr. Cavaco Silva. Não admira, ouvi a notícia pouco depois de acordar, com os neuróticos ainda em ponto morto. À medida que fui despertando para a vida, quer dizer, para o calor e para a estupidez, acabei por perceber, lembrei-me de ele ter sido, em tempos, o imbatível campeão de rodagem de automóveis, na modalidade olímpica de rodagem-que-te-leva-mais-longe-e-por-mais-longo-aliás-demasiado-tempo de que há memória. Acabei, mesmo, por perceber a razão por que os causadores da queda do BPN, grande responsável por andarmos há anos a viver acima das nossas possibilidades, estão em liberdade. Será, certamente, para poderem homenagear o responsável pela sua ascensão política e, pelos vistos, não só.



Enfim, tomara que chova, depressinha!
Se acharem este texto demasiado parvo, por favor não me levem a mal, a culpa é (ao menos em grande parte) do calor! De qualquer das formas, podem sempre procurar melhor, mesmo sem saírem aqui do blog.
Bons banhos!

Nota: fotos obtidas em pesquisa google.