Aconchego Inquieto
De repente dei comigo enfiado num saco mole. Vim a saber que se chamava pele. Um par de joelhos dobrados sob o queixo, um par de cotovelos dobrados junto ao tronco, uma cabeça inclinada sobre os ditos joelhos, como se lhes quisesse contar os ossinhos menores, ainda tão feitos cartilagens. Navegava num espaço pouco, que, de vantagem, tinha ser aconchegante e, sobretudo, ser só meu, pelo menos ninguém me acotovelava ou dava pontapés. Passei a ouvir uns sons vindos de fora, mas agora não me lembro o que diziam. Passei a sentir umas pancadinhas, não doíam, eram devagarinho, circulares, calmantes. Achei por bem responder, mandei um pontapé, à experiência. Senti um alvoroço do lado de lá, cá dentro continuava tudo calmo, quente, líquido. Pareceu-me um alvoroço bom e resolvi repetir. Daí em diante, quando me apetecia sentir aquele alvoroço, mandava um pontapé. Dava sempre resultado. Eram esses os momentos em que me sentia mais desperto, menos propenso a mergulhar na ausência. Verdadeiramente, não queria pensar no que me esperava. Tinha ouvido tantos relatos pavorosos sobre vidas futuras que preferia fingir-me de morto, ressalvados os pontapés. Tempo de pontapés era tempo de alvoroço bom, logo, tempo de esperança. Talvez as coisas não viessem a ser tão más como ouvira dizer, já não me lembro a quem, nem onde, nem como, nem quando. Comecei a mentalizar-me, viesse o que viesse, o melhor era sair o quanto antes. Já tinha a noção de que não vale a pena adiar o que tem de acontecer. Bem, acabei de dizer uma idiotice, eu sei! Obviamente, não está nas nossas mãos adiar o que tem de acontecer.
Passar por aquele túnel desiluminado, estreito, pegajoso de viscosidades estranhamente coloridas e opressor como um corredor de tenazes, foi uma experiência e tanto! Quero dizer, foi doloroso, apavorante e claustrofóbico. Vá lá que, por fim, se fez luz, aliás, uma luz deveras forte, que me forçou a abrir os olhos ramelosos num espanto de desconhecido. Mãos enormes prendiam-me, como para me impedirem de ir a algum lado (algo que, de toda a maneira, não conseguiria). Olhos enormes e sorridentes vasculhavam o meu corpo desvalido e nu, apenas envolto num muco nojento e ligado ao sítio donde acabara de sair por uma estranha corda de cor esquisita. Vozes altas e animadas diziam coisas várias que eu não estava com cabeça para entender, coisas dirigidas em várias direções, mas, sobretudo, na minha - como se eu pudesse responder! - e na do corpo donde eu acabara de sair e que jazia, de barriga inchada, cabelos colados à testa e um ar apalermado, estendendo os braços na minha direção. Estava super assustado, sem perceber bem onde acabara de aportar e o que se seguiria, de modo que resolvi explodir em gritos. Pareceu-me terem ficado todos muito contentes, o que me fez berrar ainda mais alto, pois acabara de me aperceber de como aqueles seres podiam ser perversos (sim, a rirem-se da desgraça alheia!).
Mais tarde, vim a perceber que não se tinham rido por maldade, antes pelo contrário. Infelizmente, também vim a constatar que aquele meu julgamento inicial, enquanto avaliação dos meus pares, não andava nada longe da realidade. Pior para mim.
De repente dei comigo enfiado neste saco mole, enrugado e descaído, que é a minha pele feita serapilheira de amparar restos. Não que o tempo tenha passado de repente. Sinto, aliás, que o tempo demorou muito tempo a passar, tive momentos em que lhe perdi a conta, derreado que andava de lhe sobreviver. Só que chegou um momento, assim um súbito, em que me olhei ao espelho e vi, de atacado, os seus efeitos, a marca do longo tempo que me passara por cima. Intensificou-se-me a vontade de partir, mas o tempo insistiu em me habitar, em me empurrar para diante, em vez de me deixar para trás, de desistir de mim.
Agora sabia-me bem o aconchego morno em que me balançava antes de ter sido largado por cá - já falei disso, aí acima. Falta-me esse aconchego ou outro qualquer. Prometo que não darei pontapés, já não careço de alvoroço, do alvoroço alheio. Já não sou ingénuo, não levo a sério nenhuma das versões correntes sobre o que me espera, o próximo desaguar. Sei que nenhum dos autores dessas versões sabe do que fala, ninguém lá esteve para poder testemunhar. Não que isso me deixe substancialmente mais tranquilo do que na transição anterior. Mas uma certeza eu tenho, desta vez será um ponto final para este tempo que me dura tanto. Isto é, por si só, uma boa notícia.
Enrolo-me na cama, joelhos dobrados junto ao peito, quase a tocarem a cabeça descaída, braços dobrados junto ao tronco. Alguém me ajeita um edredão com mãos suaves, movimentos calmantes, circulares, sobre a minha cabeça, agora despojada de cabelos. Como outrora, pese embora tratar-se duma mão alheia, uma mão ao acaso, talvez mera ilusão. Penso, divertido, que a pele à volta do crânio foi a única que não esmoreceu, esticada que nem uma pista de aterragem, pronta a receber o voo rasante das moscas. Sorrio. Um sorriso que se apaga. Devagar, nada daquela agitação da chegada. Não voltarei para contar se tive de atravessar mais um túnel.
Aterragem Turbulenta
Passar por aquele túnel desiluminado, estreito, pegajoso de viscosidades estranhamente coloridas e opressor como um corredor de tenazes, foi uma experiência e tanto! Quero dizer, foi doloroso, apavorante e claustrofóbico. Vá lá que, por fim, se fez luz, aliás, uma luz deveras forte, que me forçou a abrir os olhos ramelosos num espanto de desconhecido. Mãos enormes prendiam-me, como para me impedirem de ir a algum lado (algo que, de toda a maneira, não conseguiria). Olhos enormes e sorridentes vasculhavam o meu corpo desvalido e nu, apenas envolto num muco nojento e ligado ao sítio donde acabara de sair por uma estranha corda de cor esquisita. Vozes altas e animadas diziam coisas várias que eu não estava com cabeça para entender, coisas dirigidas em várias direções, mas, sobretudo, na minha - como se eu pudesse responder! - e na do corpo donde eu acabara de sair e que jazia, de barriga inchada, cabelos colados à testa e um ar apalermado, estendendo os braços na minha direção. Estava super assustado, sem perceber bem onde acabara de aportar e o que se seguiria, de modo que resolvi explodir em gritos. Pareceu-me terem ficado todos muito contentes, o que me fez berrar ainda mais alto, pois acabara de me aperceber de como aqueles seres podiam ser perversos (sim, a rirem-se da desgraça alheia!).
Sobrevivência
Mais tarde, vim a perceber que não se tinham rido por maldade, antes pelo contrário. Infelizmente, também vim a constatar que aquele meu julgamento inicial, enquanto avaliação dos meus pares, não andava nada longe da realidade. Pior para mim.
De repente dei comigo enfiado neste saco mole, enrugado e descaído, que é a minha pele feita serapilheira de amparar restos. Não que o tempo tenha passado de repente. Sinto, aliás, que o tempo demorou muito tempo a passar, tive momentos em que lhe perdi a conta, derreado que andava de lhe sobreviver. Só que chegou um momento, assim um súbito, em que me olhei ao espelho e vi, de atacado, os seus efeitos, a marca do longo tempo que me passara por cima. Intensificou-se-me a vontade de partir, mas o tempo insistiu em me habitar, em me empurrar para diante, em vez de me deixar para trás, de desistir de mim.
Agora sabia-me bem o aconchego morno em que me balançava antes de ter sido largado por cá - já falei disso, aí acima. Falta-me esse aconchego ou outro qualquer. Prometo que não darei pontapés, já não careço de alvoroço, do alvoroço alheio. Já não sou ingénuo, não levo a sério nenhuma das versões correntes sobre o que me espera, o próximo desaguar. Sei que nenhum dos autores dessas versões sabe do que fala, ninguém lá esteve para poder testemunhar. Não que isso me deixe substancialmente mais tranquilo do que na transição anterior. Mas uma certeza eu tenho, desta vez será um ponto final para este tempo que me dura tanto. Isto é, por si só, uma boa notícia.
Abandono
Enrolo-me na cama, joelhos dobrados junto ao peito, quase a tocarem a cabeça descaída, braços dobrados junto ao tronco. Alguém me ajeita um edredão com mãos suaves, movimentos calmantes, circulares, sobre a minha cabeça, agora despojada de cabelos. Como outrora, pese embora tratar-se duma mão alheia, uma mão ao acaso, talvez mera ilusão. Penso, divertido, que a pele à volta do crânio foi a única que não esmoreceu, esticada que nem uma pista de aterragem, pronta a receber o voo rasante das moscas. Sorrio. Um sorriso que se apaga. Devagar, nada daquela agitação da chegada. Não voltarei para contar se tive de atravessar mais um túnel.
Sem comentários:
Enviar um comentário