sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

UMA MENINA ESTÁ PARADA NO TEMPO

uma menina está parada no tempo ou será no meio do tempo?, não se trata da mesma coisa e talvez não, porque o tempo não há-de ter meio (ou, se tiver, fica sempre lá, ou seja, quem está parado é ele), mas, para o caso, não interessa
o facto é que uma velhota se cruza com a menina, vem de longe, agigantando-se à medida que se aproxima, até se tornar do seu exacto tamanho, quando lhe fica mesmo à frente, por um nanossegundo do tempo em que (ou no meio do qual) a menina está parada
a velhota prossegue, sem se deter, e vai diminuindo de tamanho à medida que se afasta da menina, até ficar reduzida ao tamanho de uma formiga e, depois, ao mínimo de uma pulga
a menina limitou-se a mover a cabeça para a acompanhar desde a distância inicial, em que começou a vê-la, até à distância final, a que deixou de a ver
então a sua cabeça voltou-se para a frente e a menina, quer dizer, a sua cabeça – o resto já estava –, ficou parada no espaço ou no meio do espaço, ignoro se é a mesma coisa, em qualquer caso, ficou parada no (ou no meio do, vá-se lá saber) tempo e do espaço e teve de começar a pensar em coisas para se distrair daquela imensa monotonia, diria mesmo, pasmaceira
vai daí a menina pensou no que lhe estava mais à mão, por assim dizer, a velhota que lhe passara à frente, ou melhor, a menina pensa na velhota que lhe passa à frente – porque, é bem sabido e convém não esquecer, a menina está parada – e vê-se a si mesma, mas como posso ver-me a mim mesma na outra, que já vai longe, à minha frente ou atrás de mim, no tempo e no espaço em que (ou no meio do qual) estou parada, pegunta-se
ao mesmo tempo, sente uma tontura, de tal forma que o seu corpo perde o equilíbrio, inclina-se para a frente, cai, bate com a cabeça numa pedra da paisagem e sente uma dor aguda
sem ousar levantar-se, porque ainda está tonta e receia não se equilibrar, ganha a consciência súbita de que já não está parada no (ou no meio do) tempo e do espaço – não que, anteriormente, possuísse a consciência inversa – e interroga-se, perplexa, afinal, é o tempo que passa por mim ou eu pelo tempo e, é o espaço que existe à minha volta ou sou eu que projecto o espaço para fora de mim
agora, mais do que tonta, sente-se baralhada, mas quer-lhe parecer que já restabeleceu o equilíbrio das pernas e, com determinação, levanta-se e fecha os olhos, à espera que se faça luz, enquanto, ao longe, uma pulga dá lugar a uma formiga e depois a uma, ainda não se percebe bem…
e a menina lá fica, parada no tempo e no espaço... ou talvez não






domingo, 3 de janeiro de 2021

OS ESPELHOS NÃO MENTEM

 
Aí pelos trinta e tal anos, dei em comprar a revista espanhola ¡HOLA!, que, como é sabido, plasma o mundo de fantasia dos famosos, realeza incluída. 
Viria a aditar a POINT DE VUE – mais dedicada à aristocracia europeia e com a vantagem de incluir algumas referências de ordem cultural –, a PARIS MATCH – sobretudo de actualidade, política e não só – e, também, uma ou outra revista de moda (ou feminina), como a MARIE CLAIRE, a ELLE ou a MADAME FIGARO, todas elas francesas. Mais tarde, aditaria a TELVA, espanhola, como a primeira mencionada, e que, versando, principalmente, a moda, inclui um leque de rubricas interessantes, v.g., em matéria de actualidade literária, artística e cinematográfica ou decoração e viagens.

Leitora apaixonada de bons livros e pensadora impenitente sobre o lado sério da vida, não deixava, eu própria, de considerar estranha aquela cedência à espuma parva dos dias, à frivolidade patega de mergulhar no brilho das imagens de papier couché e, pasme-se, nas linhas escritas que as ilustravam.
Verdade seja dita e ressalvado o paradoxo, tal estranheza sempre conviveu com a plena compreensão do fenómeno: tratava-se duma concessão (envergonhada) à superficialidade, num tempo em que vivia assoberbada por intensa e pesada actividade profissional. Eu sei, isto pode soar a desculpa para um desperdício de tempo estúpido, mas a questão é saber: não constituirá a futilidade, no extremo, a resposta que a complexidade da vida requer ou merece?

Seja como for, eu estava – como continuo a estar – a par das tendências de moda e decoração, que, como é sabido, mudam de estação para estação, mas não param de se repetir –, da identidade das modelos da actualidade e, o mais parvo, da vida revelada – a verdadeira só eles sabem e está bem assim – da Isabel Prysler e de outras figuras menores da sociedade, maxime, espanhola e francesa (mesmo que só por acompanhamento das imagens e respectivas legendas).
Deixando de parte o (residual) benefício informativo colhido deste manancial de publicações, ou de apenas algumas delas, a verdade é que, em geral, os respectivos conteúdos se resumem a nada, um nada de falsas glórias ou de reais desgraças repetido à exaustão.
 
Chego, assim, ao ponto que me conduziu ao seguinte tema: o da felicidade como objectivo de vida.
A dada altura, comecei a observar que, no repetido guião das entrevistas publicadas na generalidade desses meios, uma das perguntas sagradas é: – O que mais deseja na vida ou qual o seu verdadeiro objectivo na vida?
Acontece que o guião das respostas, parecendo mimetizar o das perguntas, lhes assume o carácter de repetição, quer dizer, quase sempre a resposta à questão do objectivo de vida coincide: – O que mais desejo na vida (ou o meu objectivo de vida) é ser feliz!
Confesso que este tipo de resposta ou esta resposta-tipo – reproduzida ao infinito por tanta gente gira e célebre... – sempre me deixou intrigada e perplexa.
É que, certamente por inépcia minha, nunca atinei a entender o que é isso de ter por objectivo de vida ser feliz! Ser feliz, ser feliz na vida, durante a vida? Tipo, agora estou aqui a pensar que quero ser feliz, a seguir vem a vida e, bingo!, consigo alcançar a felicidade, sento-me na felicidade para não a deixar escapar e assim sou, assim fico, até que a morte me ceife, feliz, sempre feliz, forever.
Confesso que tenho tido uma vida um bocado (bastante), como dizer?, acidentada, de luta, feita de batalhas sucessivas, algumas tão violentas que mal deixam fôlego para saborear as ocasionais vitórias e recuperar forças para a próxima refrega. Por outro lado, desde cedo me convenci que não sou caso único, todos temos (tivemos ou teremos) a nossa dose de desgraça. De resto, ainda que não pela nossa quota, sempre permanecerá difícil o alheamento das desgraças alheias, basta pensar nos sem-abrigo que connosco convivem no dia a dia das avenidas nacionais.

Tenho o privilégio de aprender a cada momento, sempre mais, de conservar a mente desperta, atenta e, sobretudo, curiosa. No percurso, uma das coisas que aprendi foi a identificar os momentos de felicidade e, a partir daí, a saber estar-lhes atenta, agarrá-los e desfrutar deles, conservando-os pelo tempo por que é possível conservá-los. Bem sabendo que se trata de momentos, não de um estado definitivo, que, de resto, a existir, perderia por completo o sentido. Até porque tais momentos não passam de pontos de chegada e/ou de partida, ao invés de constituirem bancos estofados de damasco cor de rosa onde possamos sentar-nos para sempre.

Penso sobre isso, agora, creio que por efeito da passagem do tempo, esse traidor, que nos apanha sem nos apercebermos. É certo que os sinais não faltam, os espelhos não mentem (de resto, são os únicos a não mentir). Todavia, não são esses sinais que nos convencem. Trata-se de outros fenómenos. Por exemplo, certo dia, dás por ti a fazer anos, um número redondo, um daqueles que já não permite voltar atrás, sim, é isso, a certeza de que agora é sempre em frente, numa vertigem de rapidez, até ao fecho do ciclo, porque agora é isso que nos espera, o fecho do ciclo. E isto não te assusta, não é isto que te assusta, agora até já atingiste aquele ponto de serenidade que te permite identificar e desfrutar dos momentos de felicidade; é outra a interrogação que se te coloca, a ti, que apesar do número redondo e do fim à vista, continuas com a cabeça cheia de ideias e, como sempre foste (e continuas a ser) uma mente dispersa e multidireccionada, atrapalhas-te na ideia de falta de tempo, não porque te faça confusão que o tempo acabe, mas porque te faz confusão não poderes concretizar tudo o que te ferve na cabeça. E há, ainda, uma pequena nuance, mais perturbadora, a de saber se ainda valerá a pena cumprir certos projectos (se para tão pouco tempo...).

E creio que fica explicado (não que fosse necessário!) o motivo por que, a dado passo do meu percurso, perdi tempo (e, esporadicamente, continuo a perder) com a !HOLA! e outras publicações que tal...







domingo, 6 de dezembro de 2020

MENINA PARADA NAS ESCADAS


estava uma menina parada, imóvel, em equilíbrio eterno...

a menina está parada, absolutamente imóvel, nos degraus da mínima loja da menina judite – esta já nada tem de menina, cabelos brancos apanhados atrás e óculos de vidros grossos de ver o mundo a medo; vende, a par de não sei que mais, uns rebuçados feitos em casa, de chocolate aguado, cúbicos, embrulhados em papel vegetal branco, ainda não existe a asae, nem tão pouco se imagina que possa vir a existir
a menina parada tem duas tranças de cabelo castanho, a aclarar nas pontas aprisionadas por laços de seda ou de cetim coloridos, os braços enlaçados sobre o estômago, uma camisola de lã e uma saia de tecido grosso, talvez de lã, desenhada em xadrez de tons predominantemente castanhos, tudo a indicar outono
a saia é elemento deveras importante, a menina está vaidosa da sua saia, desdobrada em pregas, ligeiramente mais curta na parte da frente, só aparência, apenas porque a menina empinou um pouco a barriga para a frente
os olhos da menina são castanhos, como o cabelo e o xadrez da saia, e desenham-se em bico, esticados nos lados, qual chinesinha. estão colados na distância do céu imenso, nas nuvens escuras semeadas no cinzento lá de cima, talvez mais logo venham a despenhar-se em fitas aquáticas, mas, por agora, permanecem fixas, como fixos se imobilizam os olhos, a saia, os braços da menina e esta própria
está parada, os pés nas escadas, as mãos no estômago, a saia ao redor das pernas, os olhos no céu
a menina está vaidosa da sua saia, talvez se tenha detido para poder ser observada, admirada, há de ser saia nova, todavia entregou os olhos ao longe, em reflexão profunda
a menina reflecte muito, agora será no mistério do céu e da sua água armazenada em barrigas ambulantes, chamadas nuvens, ou será em mistérios outros, quem sabe se o sentido daquela incomensurável lonjura do para lá daquele tecto cinzento, quem sabe se a simples beleza da estação anunciada…
assuntos tão importantes como a sua saia nova
a menina é reflexiva e vaidosa, tão uma quanto outra
há lugar para muitas caixas na cabeça da menina
em que pensará a menina para além da beleza da sua saia nova?

👤

Ignoro se acontece a outras pessoas, mas eu, mais do que recordar episódios da infância, visualizo imagens fixas, contadoras de histórias que nem sempre entendo, como a imagem acima, de uma menina, eu, com sete ou oito anos, parada numas escadas, em pose de mostrar saia nova e olhos pregados no céu de nuvens em misteriosa (ou encantada?) cogitação
gosto da menina presa naquela imagem e adorava poder resgatar o seu pensamento/sentimento...




segunda-feira, 23 de novembro de 2020

PÓ DAS ESTRELAS


lembro-me que estava escuro, talvez noite ou zona crepuscular, e, de dentro do quarto, através da nesga incerta das cortinas mal fechadas, fui surpreendida por uma incandescência deveras estranha, luz fortíssima, vinda do céu em movimento vertical, para cá e para lá, como se empenhada em varrer aquele negrume
desenhava um círculo redondo, possível base de cilindro, assim uma luz gorda, intensa, muito amarelo-dourada, contendo ameaça de calor, e não se fixava, percorria o horizonte celeste do lado de fora da janela, de um lado para o outro
provinha de um objecto voador de corpo arredondado e cheio, que se movia como um avião, mas não parecia ser um avião
eu assistia àquela visão com um misto de fascínio e terror, pela força do brilho, o inusitado do objecto e, mais, do conjunto formado por ambos
surgiu, então, por detrás do objecto-voador-não-se-sabia-qual, outro objecto voador, este mais conforme ao formato de avião, embora parecesse um helicóptero incorporado numa estrutura um pouco mais comprida e de asas mais próprias de avião, aparentando um aparelho militar
o meu espanto e medo exponenciaram-se, aquilo parecia episódio de uma guerra de mundos, o meu e outros, quem sabe se protagonizada por seres desconhecidos, talvez de outra galáxia
mal tive tempo de dar largas ao espanto e nem sequer de formular perguntas – aliás, que perguntas, se nem um mínimo estava esclarecido?! –, comecei a ouvir um som de altifalante, proveniente da altura daqueles aparelhos e com todo o ar de comunicado marcial
a princípio, não percebi a mensagem daquela voz – ou vozes, mais pareciam vozes, como se um coro de imposições –, apenas que falavam em turco, língua para mim desconhecida, o que me induziu a pensar que o comunicado era dirigido a eventuais residentes turcos no país
depois, a voz (ou vozes) passou a expressar-se na minha própria língua e anunciava: "um terrível e indomável incêndio devastou istambul, alastrando, agora, por toda a turquia, de onde se dirige para espanha; prevê-se que, de seguida, atinja lisboa, portugal"
eu habitava lisboa, portugal
o movimento aéreo aumentou substancialmente, o objecto-voador-não-se-sabia-qual continuava a jorrar sua luz intensa e circular, que ameaçava queimar-me os olhos vigilantes por trás das cortinas mal fechadas (não batiam uma na outra, qual se num dos lados ou nos dois minguasse uma tira de tecido); curiosamente, não conseguia desviar os olhos da luz, como se para ela fosse atraída por inversa lei da gravidade, mas franzia-os, a fim de os proteger daquela ameaça de fogo)
também a espécie de helicóptero/avião; agora, não um mas vários, voando de um lado para o outro, numa azáfama de urgência e prevenção, acrescentavam à mensagem do fogo a chegar um alerta: "mantenham-se em casa, janelas e portas fechadas, estão em curso trabalhos destinados a sustar o fogo, se vier, quando vier, que é o esperado"
divisava-se já uma neblina cinzenta, fumo vindo de céus outros, e cheiro a queimado
interroguei-me se, no seu caminho de caprichosa geografia – directo da turquia para espanha?! –, o fogo teria passado por paris, frança
é que os meus pais encontravam-se em paris, assunto de um congresso ou algo do género
troquei impressões com a avó e outros familiares, entretanto chegados ao quarto, partilhei a preocupação sobre os pais, que era um mais em relação à treva que já tomava conta do céu
e a notícia, largada dos altifalantes lá de cima: "o fogo acaba de devastar paris"
a minha angústia, uma aflição de que apenas guardo memória enquanto tal, não tanto se chorei ou gritei ou torci as mãos
os helicópteros/aviões/militares – já não cabia dúvida, no meio de toda a estranheza por esclarecer, de que se tratava de uma operação militar – desdobravam-se em actividade frenética, transportando materiais semelhantes a toros de madeira, que faziam descer com a ajuda de cordas
adiante da minha janela alta de vários andares havia um rio ou riacho (não era muito largo), em cujas margens vários homens trabalhavam afanosamente no que parecia ser a construção de uma barreira
aí eram despejados os enormes toros de madeira, verdadeiros troncos de árvores
numa das descargas, um dos toros atingiu um magote de trabalhadores, alguém alertou e, como ninguém parecesse dar atenção, essa pessoa, uma mulher, avisou que um deles estava morto e, para o demonstrar, pegou-lhe na ponta de um pé, levantando-lhe a perna e largando-a, de seguida, ao que tombou como se pertença de boneco de trapos
aí, sim, ficou claro o acidente e a sua funesta consequência
entretanto, eu, a avó e as outras pessoas – duas, três, uma delas o meu irmão? –, começámos a andar pela casa e, vá-se lá saber porquê, em menos de nada, estávamos fora da porta
ansiosa, pedi aos outros que voltassem a entrar, que atendessem aos avisos de que deveriam manter-se dentro de casa, de portas trancadas, mas a avó disse: "tenho de ir ao fundo das escadas buscar algo que, inadvertidamente, deixei cair"
explicou tratar-se de um embrulho com as jóias de sua filha – minha mãe –, que havia recolhido por precaução, para o caso de ser necessário fugir
mas fugir como, para onde, se a ameaça paira no ar – aliás, veio do ar! – e as ordens são para permanecer em casa e não sair?!, perguntei a mim mesma, tão perplexa quanto angustiada, enquanto avistava, lá em baixo, bem ao fundo das escadas, um embrulho de pano enrolado
eventualmente, acordei
💥
decorridos uns dias, fiquei a saber que, naquela noite, uma bola de fogo em tons de azul esverdeado tinha cruzado os céus da andaluzia, espanha, e desaparecido algures sobre o alentejo, portugal
se bem que a outra luz, a que eu própria presenciara nessa mesma noite, fosse de um amarelo intenso, não consegui deixar de pensar se, de alguma maneira, não se tratava da mesma luz...
e concluí: ele tem razão, não passamos de "pó  das estrelas com vida..."

"Somos pó das estrelas com vida, dotado pelo Universo com o poder de decidir o que fazer – e só agora começámos."
in, ASTROFÍSICA PARA GENTE COM PRESSA
Neil deGrasse Tyson  





quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O MENINO QUE PERDEU AS BOTAS

certo dia, um menino, aproveitando a distracção do pai, com quem passeava à beira do paredão, correu com quantas pernas tinha e só parou bem lá ao fundo, onde já não podia ser alcançado pelo olhar daquele, perdido que ficara à conversa com uns amigos
ficou a observar o horizonte, muito ao longe, mal adivinhado, devido à espessa cortina de névoa que tornava a paisagem translúcida
deixou-se fascinar pelo imenso manto ondulante por sobre o chão, que brilhava aqui e ali, tal qual respingos de diamante ou de simples zircão
Invadido por tanto de fascínio quanto de curiosidade pelo que suspeitava esconder-se mais além, esqueceu-se de pensar ou sequer de recordar as costumeiras advertências dos pais e descalçou as botas e as meias, colocando estas dentro daquelas e ambas sobre o paredão
descendo a rampa, logo sentiu os pés afundarem-se em areia, agora dourada à proximidade do olhar, experimentando uma engraçada sensação de cócegas que o fez sorrir
caminhou, caminhou e, à medida que avançava, começou a ouvir um murmúrio, logo transformado em rugido, e a sentir sobre a pele e os cabelos uma humidade, logo transformada em gotas de água
pensou que alguém o recebia com brincadeiras malandras e prosseguiu, animado com a perspectiva de descobrir quem seria, ao mesmo tempo que o seu sorriso se ampliou de contentamento
logo a seguir, assustou-se, porque um pé se lhe afundou na areia e, de desequilíbrio em desequilíbrio, viu-se empurrado a mergulhar de cabeça numa superfície fria e molhada 
e, sem ter tempo para se levantar, levou com o que lhe pareceu ser um grande balde de água fria pela cabeça abaixo, que o voltou a amarrar ao chão, deixando-o, por momentos, impossibilitado de respirar, para, de imediato, se lhe dissolver em cima numa espécie de efervescência
o certo é que a névoa estava cada vez mais densa e o menino não conseguia ver bem o que se passava, mas, por essa altura, podia concluir que se tratava de água, uma água barulhenta e borbulhante, que tirara o dia para se meter com ele (ou assim parecia)
já com o sorriso um pouco apagado, pois se sentia deveras a congelar, decidiu, contudo, prosseguir e indagar quem poderia estar para além daquela névoa cada vez mais cinzenta a pregar-lhe semelhante partida – sim, agora já pensava em partida e não em mera brincadeira
equilibrou-se como pôde e continuou, mas logo sentiu um braço forte puxá-lo para dentro-não-sabia-de-quê com muita força e, mesmo – pareceu-lhe – certa dose de violência
conforme pôde, lá conseguiu manter a cabeça de fora e esbracejar, apesar do que não alcançou a saída daquele não-sabia-o-quê 
foi, então, que ouviu um riso vindo bem lá do fundo e a voz desse riso perguntou-lhe, obviamente divertida: "que fazes aqui, rapazinho?" e ele, que não via ninguém e procurava respirar a custo, disse: "onde estás e quem és?" "eu sou o mar e estou à tua volta, mas não respondeste à minha pergunta" "Ah! – gaguejou o menino, aflito com a água que o rodeava e lhe sabia a sal – chamo-me manel e, e  e vim para desvendar o que a névoa esconde, mas, mas..." e não terminou a frase, porque já um jacto de água lhe entrava pela boca e nariz adentro, enquanto um braço poderoso o arrastava para dentro do agora-já-fazia-uma-ideia-de-quê
foi ao fundo daquela barriga imensa e, para seu enorme espanto, deixou de sentir quer o frio quer a aflição por respirar
em vez disso, deu consigo a oscilar, com ligeiros movimentos de pernas e braços, enquanto, de olhos muitíssimo abertos, contemplava, deslumbrado, um mundo maravilhosamente colorido por toda a sorte de plantas e animais, que nunca havia visto ou sonhara ver (descontados alguns, poucos, conhecidos dos livros)
entabulou conversa com vários desses seres misteriosos e, em particular, com um, de belíssima e transparente figura, que lhe disse chamar-se cavalo marinho, lhe explicou que mundo era aquele e lhe perguntou a que mundo pertencia
o menino explicou-lhe que pertencia à terra e que tinha ido à descoberta do mais-além-da-névoa, que estava muito feliz por o ter conhecido, a ele e aos outros fascinantes seres, mas que não podia ficar ali para sempre, embora ignorando como havia de regressar ao seu mundo...
prontamente, o cavalo marinho disse, "eu levo-te" e, sem esperar resposta ou agradecimento, aumentou de tamanho até se tornar o dobro do menino e mandou-o saltar-lhe para o dorso e agarrar-se a ele, o que o menino, mudo de deslumbramento, cumpriu, mal conseguindo articular um "obrigado"
e começava, fascinado, a viagem de regresso, por novas e fantásticas paragens que o cavalo marinho decidira mostrar-lhe, quando...
– manel, o que fazes aí deitado na areia, com o mar quase a chegar-te aos pés? mexe-te, temos de regressar a casa, já é tarde e está a refrescar muito, ainda te constipas!
dizia-lhe o pai, abanando-lhe um ombro, ao aperceber-se de que ele dormitava.
ao fim de uns momentos, o menino, atarantado e a contragosto, levantou-se e disse:
– ora, pai, logo agora que o cavalo marinho...
mas a sua frase – e, pior, a sua viagem – perdeu-se, porque o pai, já a ficar mais zangado do que impaciente, lhe perguntava:
– e as botas, manel, onde estão as tuas botas e, já agora, as meias?




Nota: este história surgiu-me de um par de botas infantis, com as meias dentro, com que me deparei sobre o paredão da Praia Grande, momento que registei na fotografia supra.


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

EM MEMÓRIA DE UM CIDADÃO DESCONHECIDO


Nota prévia: este post é inspirado num caso verídico. Infelizmente...

O pai, octogenário, telefona, a perguntar se sabe notícias do irmão. A sua voz, frágil e agitada, revela a preocupação e ansiedade de quem, há vários dias, exactamente três, tenta contactar o filho, sem êxito.

Responde-lhe que não e, logo de seguida, liga para o telemóvel do irmão. Também sem êxito.

Já tomada de uma inquietação premonitória, dirige-se, sem demora, a casa dele. Ninguém acode ao toque da campainha. Por sorte – e há sortes que mais parecem azares! –, um morador acaba de estacionar e dirige-se para a entrada do prédio. A medo, mas não sabendo que mais fazer, ela dirige-se-lhe e pergunta-lhe se conhece o António, seu irmão, e se o tem visto ou sabe o que... 

Não, não consegue acabar a frase, é interrompida pela resposta brutal (porque lhe soa brutal) do interpelado: "O António!? O António morreu no sábado passado, mesmo aqui à porta. Caiu para o lado e já não se levantou. O INEM levou o corpo, mas já nada havia a fazer!"

Ela, tomada por um espanto situado para além da dúvida e do terror, fraqueja sobre os joelhos, ameaçando desmoronar-se, os olhos muito abertos, secos, ainda, os lábios trementes, incapazes de formular o pedido, diga-me que é mentira, que não está a falar do António, o meu irmão António...

Só então o mensageiro se apercebe de não estar perante uma simples vizinha ou conhecida, de que os une – unia –, a ela e ao António, uma relação de fraternidade que só podia ser profunda; consciente da sua falta de tacto, recrimina-se, em silêncio, para dentro de si, um silêncio que interrompe para lhe perguntar, desajeitado, as coisas que se impõem, enquanto lhe estende a mão, num amparo que já vem tarde e, aliás, de nada serve, porque de nada poderia servir.

Reequilibrada nas pernas ainda bambas, recolhidas as forças restantes e as parcas informações complementares, ela afasta-se aos tombos, não literalmente, que as tempestades da cabeça e do coração nem sempre têm expressão corporal, entra no carro, arranca incerta, sem saber bem o que fazer, por onde começar, enquanto pela cabeça lhe passa uma variedade de imagens e pelo coração uma cavalgada de sentimentos: como se num relâmpago ardente, vê o irmão, vê-se a ela e ao irmão, crianças, adolescentes, não necessariamente por esta ordem, os pais, ai os pais, como poderá dar uma notícia assim aos pais?, porque tem uma pessoa de viver para além dos oitenta anos para assistir a uma coisa assim, a morte de um filho!?, mas estará morto, será mesmo verdade?, não terá o vizinho trocado as identidades?, vê-lo, precisa de o ver, obter uma certeza, melhor, um desmentido, não pode ser, vai-se a ver daqui a nada passa o susto, é só reunir a coragem para o ver, mas onde?, na morgue, numa mesa fria, de metal cortante de tão frio, não, não pode ser, não pode ser ele, o António não, não, não.

E dá consigo parada num semáforo, com as mãos cravadas no volante, os braços a tremer, a boca aberta num grito que depressa é choro e baba e ranho e saca do telemóvel, marca o número dele, do António, sabe que ele vai atender, um, dois, três toques, mais, até que surge a gravação a remeter para a caixa de mensagens. Salta no assento, a buzinaria à sua volta é ensurdecedora, o sinal está outra vez vermelho e os condutores de trás, furiosos, proferem impropérios, chamam-lhe nomes, e ela avança e quase bate no carro que se lhe atravessa à frente, confiante na prioridade ditada pelo verde do seu sinal. Trava bruscamente. As buzinadelas recomeçam pouco depois, caiu o verde, já pode avançar. Para mais à frente, apenas o tempo necessário para se recompor. Pensa no pior e no melhor e o melhor é que tudo pode não passar de um erro, de uma grosseira confusão de identidades, afinal, pensa, ficou tão aturdida que não atendeu bem ao que o vizinho do António disse, não se certificou de que ele soubesse bem quem era o António, mas, ao mesmo tempo, não acredita nesta crença mágica e sabe que só há uma maneira de confirmar.

Já no departamento da polícia, pede para falar com o chefe. Indicam-lhe que espere. Aproveita para tentar por a cabeça em ordem, e o telemóvel toca, atende, não atende?, não atende, é a mãe, desta vez é a mãe, octogenária, não tem condições para lhe dizer, não enquanto não obtiver a prova, a prova de que não se trata do António e, mesmo depois, como posso dar-lhes a notícia, interroga-se, num novelo de contradição e angústia, o estômago a chegar à boca.

Decorre meia hora. A angústia, a ansiedade, o desnorte, o esforço de compostura e muito mais elevam-se numa multiplicação alucinante, muito para além das regras da matemática.

O chefe acaba por chegar e, pela sua boca, a informação, inesperada, surrealista, assustadora: "O corpo está na morgue, onde aguarda cremação"! Seguem-se as informações complementares, por exemplo, que sim, que lhe encontraram a carteira e o telemóvel, mas não, não atenderam as inúmeras chamadas de familiares e amigos que, entre aquele fatídico dia e este, quatro dias depois, soaram desesperadamente à sua procura. E não, não é adiantada qualquer explicação lógica para o facto de a autoridade não ter diligenciado contactar qualquer familiar ou amigo e ter destinado o que restou daquele ser humano à cremação!

(Digo eu que não é adiantada, porque não pode haver, simplesmente não pode haver explicação lógica!)

Inexiste grau de estupefacção e de revolta susceptível de quantificar a estupefacção e a revolta que se apoderam dela! Então é assim, encontra-se um morto na via pública, tombado à porta de casa, um cidadão na posse dos seus direitos e do seu telemóvel e da sua carteira e das suas impressões digitais e do seu número de contribuinte e de cidadão, e não se procura a família ou os amigos ou, no limite, algum conhecido!? Espera-se que apareçam por milagre ou, quem sabe?, que não apareçam, e, decorridos nem quatro dias, decide-se-lhe o futuro dos restos, para mais, um futuro de não deixar rasto!?

O espanto e revolta só podem elevar-se ao patamar da dor e do sentimento da absoluta necessidade de exigir responsabilização!

Afinal, por um sinistro jogo de absurdo, esteve à beira de não conseguir resgatar o corpo, ou seja, de não poder comprovar que – bem contra a intensidade do desejo contido na sua esperança mágica – fora mesmo o António, o seu querido António, que num soalheiro dia de Outono, em plena pandemia de Covid-19, mas por uma qualquer razão estranha a esta, tinha partido deste mundo sem poder despedir-se. E isto é dizer que esteve a um mínimo passo de lhe ter sido negado despedir-se dele e dar à sua matéria remanescente um destino conforme às suas crenças. Ela, seus pais octogenários, demais familiares e amigos. Não é coisa pouca! E assusta!






segunda-feira, 19 de outubro de 2020

ANTÓNIA GOSTA, A DITADORA ENCAPOTADA!

A D. Antónia Gosta é governante numa casa pequena mas confusa, onde habitam pessoas de todas as idades, mas, vá-se lá saber porquê!, teima em considerá-las e tratá-las todas como crianças.

De um modo geral, ostenta uma face bonacheirona, espalha optimismo e parece que está sempre a rir – vá-se lá saber porquê! –, mas, quando lhe dão os azeites – passe a foleirice da expressão –, não é para brincadeiras. Certa vez, inclusive, os seus ajudantes tiveram de a afastar dum velho que teimava em arremessar-lhe um boato, apesar da sua insistência no respetivo desmentido. Ora, por muita razão que tivesse, não foi bonito ou, sequer, justificado, quanto mais não fosse, pela idade do boateiro e, vá lá!, por lhe caber (à D. Antónia) a responsabilidade de se comportar à altura de uma governante que se preze.

Não valeria a pena repisar neste episódio de má memória, não fosse ele próprio (já) revelador de certos tiques, que, apesar de manter disfarçados sob a imagem de bonomia, reforçada pela fofura do corpinho anafado, aí começaram a revelar-se ou a confirmar-se (no caso de pessoas mais atentas ou informadas).

Refiro-me a tiques de, como dizer?, de ditadora, pessoa que quer os seus governados – esses que, como acima se disse, trata indiscriminadamente como se fossem todos criancinhas... estúpidas ou, no mínimo, parvinhas – muito bem adestrados e não hesita em recorrer a todos os meios para o conseguir.

Vai daí, há uns meses, quando, devido à palermia do Covid-19, as coisas se complicaram e teve de os mandar adoptar cautelas especiais, muito especiais, por exemplo, ficarem em casa, pretendeu que cumprissem sem objecções. Mas, sejamos justos, como eles acataram sem problemas, desatou a elogiá-los para além da conta, numa demonstração estratégica de reconhecimento, amor e apreço pelo próximo, destinada a que eles, pobres crianças, a tomassem como boa e certa e a que tal não pudesse deixar de relevar quando das próximas sondagens e eleições – sim, porque, na sua casa, as governantes são escolhidas por essas vias, embora nem sempre o cargo seja atribuído a quem recolheu mais votos, visto haver outras matemáticas de formar vencedores.

É claro que, nesta estratégia, a D. Antónia beneficia do total, diria mesmo, cúmplice, apoio do avô (não dela mas das crianças). Trata-se de um idoso com imensa pedalada, mesmo não dormindo, com olhos azuis e enorme tendência para beijos, abraços e, sobretudo para ser – e continuar a ser, ao menos enquanto puder – o avô mais querido de todos.

Ora bem, o pior foi quando as coisas pareceram normalizar e a D. Antónia e o avô desataram a incitar as crianças a sair e comprar caramelos, chupas, refrigerantes e um longo etc. de coisas que fazem circular e crescer a economia, que, coitada, resultou um bocado murcha, na decorrência da anterior ordem de exílio caseiro. As crianças – aliás, tal qual os adultos... –, sabe-se como é!, quando se lhes dá a mão pedem logo o braço e por aí fora e, mais cedo ou mais tarde, está escrito, as coisas voltam a complicar-se e a D. Antónia, com o apoio do avô, tem de tomar medidas.

Está um bocado à nora, porque, constrangida com o estado da economia, não pode voltar a fechar as crianças em casa; por outro lado, em bom rigor, bem sabe que foi ela a mandá-las para a rua, sempre com enormes louvores à forma como se tinham comportado (como se portarem-se bem fosse um mais em relação ao simples cumprimento do seu dever!). Acresce que, tal como as coisas descambaram e começam a aparecer buracos por tudo quanto é lado, fica receosa de que lhe peçam responsabilidades, e, em última análise, venham a retirar-lhe a governança. Está como tola no meio da ponte! 

Todavia, não é de seu feitio permanecer em tal estado demasiado tempo; por um lado, é perita na arte da autodefesa e da artimanha, por outro, beneficia da protecção do avô. Assim, juntam-se ambos e combinam, bzzz, bzzz, bzzz. E, mal o pensam, melhor o põem em prática.

A D. Antónia, secundada pelo avô, começa a espalhar que a culpa é das crianças, que são umas descuidadas, que mais isto e mais aquilo, que assim não pode continuar e, quando o terreno já está bem preparado, exibe o golpe por trás das acusações: ameaça as crianças de que vai passar a controlá-las uma a uma, não ela directamente, que não chega para tanto, mas a polícia da casa, e que se não ficarem away – sim, em inglês! – de certos comportamentos, vão ter de pagar fortunas – o que, de resto, bem preciso é, pois os cofres da casa estão a rasar o vazio.

Vai daí, as crianças, prontas a obedecer, começam a ouvir a vozearia das crianças mais esclarecidas da casa e, mesmo, dos polícias, a chamar a atenção, que assim não, não pode ser, nem as regras da casa o permitem, quanto mais o bom senso e a boa e sã governança! Num instante, esquecem a ameaça e as vozes esclarecidas, voltam à brincadeira e, como, apesar de ser outono, o tempo está esplendorosamente estival, enchem as esplanadas e passeiam-se pelas ruas, em amenos e descuidados convívios.

O avô acobarda-se, não adianta opinião convincente sobre a ameaça da D. Antónia, e esta, sempre risonha e anafada, acaba por afirmar com todos os dentes que não, não se trata de uma ameaça, nunca esteve em causa impor nada, mas tão só levar as crianças a aderirem, até porque, se estas aderirem voluntariamente (ainda que sob ameaça...) não é necessário impor nada! E que não, não se reconhece como uma ditadora, longe dela, ahahah.

E é isto, a D. Antónia Gosta bem pode dizer que não é uma ditadora, mas lá que tem tiques de ditadora, ai isso tem! Mas – v´am lá ver, como ela diria –, isto sou eu a pensar!



(desenho meu sobre foto do google)