Fragmento do meu mais recente projecto de escrita:
"Entretanto, dei comigo a
repensar a questão do tempo, se existe verdadeiramente distinção entre o
passado (que já passou), o futuro (que a Deus pertence) e o presente. Penso na
concepção dos filósofos gregos do estoicismo, nos pensamentos alternativos ou
não sei como lhes chamar, que pululam por aí, em prol do serenamento das almas demolidas pela crueza de vidas tristes,
deprimentes e desesperançosas,
procurando ocupar o lugar das religiões falidas, senão fazer-se passar por
outras religiões, de anunciadas novas eras.
Afinal, talvez não seja bem
assim, talvez seja o presente, essa promessa de âncora redentora, porque
instantânea –ainda não é passado, mas ainda não é futuro –, que não existe,
afogado que está na iminência de, simultaneamente, se transformar em passado e
ser engolido pelo futuro, caso em que o tempo não tem dimensão fragmentada, mas
una e nula, não do tipo daquela lógica de divisão certinha,
passado-presente-futuro, que os explicadores de tudo pretendem atribuir-lhe,
para sossego ou desassossego dos mortais, conforme a intenção e o objectivo, ou
seja, o lucro.
Há momentos ou milimétricas
fracções do passado que nos atingem
com o carácter das impressões mais nítidas, vívidas e profundas, ainda que, na
linguagem da memória, aquela por que nos surgem, se nos apresentem, ao menos em
termos objectivos, como meramente acidentais e insignificantes, uma conversa
banal, a luminosidade dum certo ponto dum certo dia, um cheiro, uma sensação
dada, sobretudo isto, uma sensação, a força duma alegria, angústia, tanto faz.
Como podemos negá-las, na sua actualidade
lúcida, nítida e pungente, fotográfica? Em contrapartida, muitas vezes, talvez
as mais das vezes, o presente não é
mais do que um saco sem boca e sem fundo, tal a desatenção e a pressa com que
se esvai no passado e se abre ao futuro. Quanto a este, o futuro, será que existe o futuro, se se não converte em passado, derrapando por um muito
eventual presente?
Do passado vêm marcas tão
sólidas e que, simultaneamente, se vem a concluir terem sido presságios, senão
mesmo fragmentos, do futuro, que é impossível ignorá-las, nessa obsessão
redutora e artificial que é pretender isolar o tempo, fechá-lo numa hipotética
caixinha de presente, qual caixinha quadriculada para medicamentos a horas
certas."
Nota: fotografia duma obra em exposição no Centro Cultural de Cascais.
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