quinta-feira, 29 de maio de 2014

A NÃO HISTÓRIA DE VLADIMIR BLUE (II)

A entrada norte do parque era marcada por um portão verde escuro, de ferro esculpido em formas lineares e minimalistas, óbvio anúncio da sobriedade e agradável ambiência do espaço, o que em nada chocava com a sua diversidade e, mesmo, exuberância, tal a densidade e variedade das árvores, plantas e flores, a multiplicação dos seus formatos e cores, e o convívio com recantos especiais, por exemplo, lagos, coretos e paraísos infantis imitando selvas e cidades miniatura. O facto é que tudo se harmonizava na perfeição, e os frequentadores contribuíam para tal ordem, com o seu comportamento educado e cordato, aliás, à imagem da própria cidade, de pequena dimensão e magnífica civilidade.
Só assim se compreende que Vladimir Blue, embalado no seu modo peculiar, se permitisse frequentar o parque, porquanto, noutras circunstâncias, quer dizer, em ambiente menos civilizado, já teria sido incomodado ou mesmo atacado pela curiosidade ostensiva ou pela deseducação grosseira de algum passante e, sobretudo, pela gozação provocadora e cruel duma qualquer criança ou adolescente, o que seria de molde a causar-lhe um medo perturbador, talvez expresso em descontrolo de pânico, em vez do pânico retido que parecia irradiar do modo dos seus passos e, principalmente, da forma como as suas mãos marcavam, rígidas e nodosas, os bolsos desfiados da gabardine, sempre a gabardine, sempre a mesma.
Num tal caso, que hipóteses de sobrevivência restariam a Vladimir Blue? E como sabê-lo, se quase nada se conhece a seu respeito?
Alguém interrogava-se nestes termos, enquanto arrumava cuidadosamente o binóculo no seu estojo de cabedal camel e corria, com parcimónia de gestos e talvez em definitivo, o estore cinzento, escurecido por anos e anos de exposição à inconstância das forças exteriores, assim se preparando para descer as escadas do seu 3º andar alto. Custou-lhe aventurar-se, mas a curiosidade transcendeu o poder autocrático da rotina, e lá se dirigiu ao portão da entrada norte do parque, pouco antes das três da tarde daquele radioso dia de 27 de Maio de 2013. E, não podendo beneficiar do esconderijo da cortina nem da visão longínqua dos binóculos, travestiu-se de sombra, por forma a poder passar despercebido, quer do seu objecto de estudo, Vladimir Blue, quer dos restantes frequentadores do parque, nos quais, aliás e conforme julgava na altura, não estava minimamente interessado.
Como tal, ninguém notou a presença da Sombra – agora justifica-se passar a chamar-lhe assim – encostada às linhas do portão verde escuro. Dizer ninguém é exagero, porque houve um pequeno cachorro branco, levado à trela por uma mulher jovem, que ladrou histericamente na sua direcção, sem que a dona conseguisse compreender porquê. Também uma criança de meia dúzia de meses rechonchudos e corados se agitou no seu carrinho, berrando uma queixa estridente, de que a mãe não alcançou o sentido, episódios que levaram a Sombra a uma vibração de vento encolhido.
O mais curioso foi que Vladimir Blue sentiu um calafrio ao atravessar o portão e, enquanto prosseguia no seu trajecto de pressa alucinada, nunca deixou de pressentir uma presença estranha, que, todavia, não logrou identificar, o que, na negação de mais problemas a aditar ao seu incontável rol, o levou a excluir um possível estado de alucinação não especificada, porque não era auditiva nem visual, embora fosse de algum modo sensorial, uma alucinação sensorial não especificada, foi isto que, na sua ignorância psiquiátrica e no seu sentido de auto preservação mental, pensou Vladimir Blue, prosseguindo o caminho num desassossego maior, que, todavia, resistiu esforçadamente a que transparecesse como acréscimo ao já habitual.
Apanhada desprevenida, a Sombra nem conseguiu aperceber-se de donde proviera Vladimir Blue, mas apressou-se no seu encalço, determinada a não mais o perder de vista, sendo, assim, conduzida ao mais remoto canto do parque, onde descansava uma pequena e esquecida arrecadação, em desuso, poiso de objectos largados à espera de melhores dias, o mesmo é dizer, do nunca, um resto duma estátua que se partira sem hipótese de recuperação, um brinquedo morto de abandono, exausto da falta de reclamação do dono, enfim, coisas que tais.
Nas traseiras da arrecadação, Vladimir Blue, após ter afrouxado a pressa, sentou-se num banco esquecido, esticando as pernas de encontro ao chão e as costas de encontro ao espaldar de tiras de madeira, numa tensão que desmentia o sentido daquele afrouxamento, assim como se nunca pudesse dispensar-se de caminhar apressado, e, mesmo sentado ou até deitado – isto deve suceder mesmo quando se deita, pensou a Sombra, e não se enganava –, algo de si prosseguisse imparavelmente, apesar do seu corpo ou talvez por causa do seu corpo, pensou a Sombra, que outra prisão mais forte do que o corpo pode existir para um espírito ou o que seja essa espécie de pressentimento etéreo, indefinido e, talvez, infinito?
Escutou, então, o murmúrio intrínseco de Vladimir Blue – capacidade de compreensão de que só uma pura sombra beneficia – e aí começou o seu conhecimento das verdadeiras razões daquela pressa. Do conhecimento de si própria e da sua atracção pelo desconhecido atravessador do parque, isso já seria dizer muito. Ao menos por agora.
 
 
 
 

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