A entrada norte do parque era marcada por um portão
verde escuro, de ferro esculpido em formas lineares e minimalistas, óbvio
anúncio da sobriedade e agradável ambiência do espaço, o que em nada chocava
com a sua diversidade e, mesmo, exuberância, tal a densidade e variedade das
árvores, plantas e flores, a multiplicação dos seus formatos e cores, e o
convívio com recantos especiais, por exemplo, lagos, coretos e paraísos
infantis imitando selvas e cidades miniatura. O facto é que tudo se harmonizava
na perfeição, e os frequentadores contribuíam para tal ordem, com o seu comportamento
educado e cordato, aliás, à imagem da própria cidade, de pequena dimensão e
magnífica civilidade.
Só assim se compreende que Vladimir Blue, embalado no
seu modo peculiar, se permitisse frequentar o parque, porquanto, noutras
circunstâncias, quer dizer, em ambiente menos civilizado, já teria sido
incomodado ou mesmo atacado pela curiosidade ostensiva ou pela deseducação
grosseira de algum passante e, sobretudo, pela gozação provocadora e cruel duma
qualquer criança ou adolescente, o que seria de molde a causar-lhe um medo perturbador, talvez
expresso em descontrolo de pânico, em vez do pânico retido que parecia irradiar
do modo dos seus passos e, principalmente, da forma como as suas mãos marcavam,
rígidas e nodosas, os bolsos desfiados da gabardine,
sempre a gabardine, sempre a mesma.
Num tal caso, que hipóteses de sobrevivência
restariam a Vladimir Blue? E como sabê-lo, se quase nada se conhece a seu respeito?
Alguém interrogava-se nestes termos, enquanto arrumava
cuidadosamente o binóculo no seu estojo de cabedal camel e corria, com parcimónia de gestos e talvez em definitivo, o
estore cinzento, escurecido por anos e anos de exposição à inconstância das forças
exteriores, assim se preparando para descer as escadas do seu 3º andar alto.
Custou-lhe aventurar-se, mas a curiosidade transcendeu o poder autocrático da
rotina, e lá se dirigiu ao portão da entrada norte do parque, pouco antes das
três da tarde daquele radioso dia de 27 de Maio de 2013. E, não podendo
beneficiar do esconderijo da cortina nem da visão longínqua dos binóculos, travestiu-se
de sombra, por forma a poder passar despercebido, quer do seu objecto de estudo,
Vladimir Blue, quer dos restantes frequentadores do parque, nos quais, aliás e conforme
julgava na altura, não estava minimamente interessado.
Como tal, ninguém notou a presença da Sombra – agora
justifica-se passar a chamar-lhe assim – encostada às linhas do portão verde
escuro. Dizer ninguém é exagero, porque houve um pequeno cachorro branco,
levado à trela por uma mulher jovem, que ladrou histericamente na sua direcção,
sem que a dona conseguisse compreender porquê. Também uma criança de meia dúzia
de meses rechonchudos e corados se agitou no seu carrinho, berrando uma queixa
estridente, de que a mãe não alcançou o sentido, episódios que levaram a Sombra a
uma vibração de vento encolhido.
O mais curioso foi que Vladimir Blue sentiu um
calafrio ao atravessar o portão e, enquanto prosseguia no seu trajecto de
pressa alucinada, nunca deixou de pressentir uma presença estranha, que,
todavia, não logrou identificar, o que, na negação de mais problemas a aditar
ao seu incontável rol, o levou a excluir um possível estado de alucinação não especificada,
porque não era auditiva nem visual, embora fosse de algum modo sensorial, uma
alucinação sensorial não especificada, foi isto que, na sua ignorância psiquiátrica
e no seu sentido de auto preservação mental, pensou Vladimir Blue, prosseguindo
o caminho num desassossego maior, que, todavia, resistiu esforçadamente a que
transparecesse como acréscimo ao já habitual.
Apanhada desprevenida, a Sombra nem conseguiu
aperceber-se de donde proviera Vladimir Blue, mas apressou-se no seu encalço,
determinada a não mais o perder de vista, sendo, assim, conduzida ao mais
remoto canto do parque, onde descansava uma pequena e esquecida arrecadação,
em desuso, poiso de objectos largados à espera de melhores dias, o mesmo é dizer, do nunca, um resto
duma estátua que se partira sem hipótese de recuperação, um brinquedo
morto de abandono, exausto da falta de reclamação do dono, enfim, coisas
que tais.
Nas traseiras da arrecadação, Vladimir Blue,
após ter afrouxado a pressa, sentou-se num banco esquecido, esticando as pernas
de encontro ao chão e as costas de encontro ao espaldar de tiras de madeira,
numa tensão que desmentia o sentido daquele afrouxamento, assim como se nunca
pudesse dispensar-se de caminhar apressado, e, mesmo sentado ou até deitado – isto deve suceder mesmo quando se deita,
pensou a Sombra, e não se enganava –, algo de si prosseguisse imparavelmente, apesar do seu corpo ou talvez por causa do
seu corpo, pensou a Sombra, que
outra prisão mais forte do que o corpo pode existir para um espírito ou o que seja
essa espécie de pressentimento etéreo, indefinido e, talvez, infinito?
Escutou, então, o murmúrio intrínseco de Vladimir
Blue – capacidade de compreensão de que só uma pura sombra beneficia – e aí começou o seu conhecimento das verdadeiras razões daquela pressa.
Do conhecimento de si própria e da sua atracção pelo desconhecido atravessador
do parque, isso já seria dizer muito. Ao menos por agora.
Sem comentários:
Enviar um comentário