Vladimir Blue costumava passear a sua magreza de cachorro
rafeiro pelo parque da cidade. Bem, aquilo não era bem passear, aquele passo
sempre apressado, os olhos a varrer o chão, o recolhimento das mãos, presas nos
bolsos desfiados da gabardine, sempre
a gabardine, sempre a mesma, cinzenta como a opacidade dum fumo denso, indiferente à generosa beleza
das árvores, sempre verdes, sempre sombra, e das flores e frutos iridescentes
que delas se ofereciam aos passeantes. Como a cara pendia e não se lhe viam os olhos, não se
podia adivinhar-lhe a idade, muito menos a história, nem contar-lhe as rugas ou
a sua falta, apenas se lhe suspeitava uma barba leve, a condizer com o cabelo,
talvez, mera suposição, pois a cabeça viajava oculta sob a protecção – seria protecção?
– dum chapéu de feltro, mais um farrapo de fumo antracite, surrado como um
desperdício.
Foi assim que começou a tornar-se notado pelos
frequentadores do parque, mães de semana e pais de fim-de-semana empurrando
carrinhos de bebés, reformados prostrando os restos flácidos de vida pelos bancos
de madeira às tiras, jovens namorados entregues à sofreguidão de abraços inadiáveis e à febre de beijos escaldantes, como se o agora fosse
uma certeza do sempre, e, até, algazarras de crianças, nas idas e vindas da escola, para não
falar em muitos outros.
Aliás, havia mais alguém, não necessariamente frequentador
do parque, que não parava de reparar nas travessias de Vladimir Blue, desde
o seu permanente ponto de observação que calhava ser uma janela com vistas,
mas, como se escondia sistematicamente atrás duma cortina translúcida, nunca
deu para saber se era alguém-ele ou alguém-ela. Enfim, vamos chamar-lhe Alguém, não queremos inventar falsas identidades, baseadas em meras sombras recolhidas.
A atenção dedicada a Vladimir Blue não passava de
curiosidade, era aquele destoar que colocava interrogações, até porque ninguém
sabia donde ele vinha nem para onde ia – e refiro-me, apenas, aos seus diários
e apressados atravessamentos do parque e não ao percurso da sua vida. Mas, como é
sabido, uma interrogação leva à outra, curiosidade suscita curiosidade, e esta
questão acaba sempre por se colocar. Sobretudo por parte de Alguém, no
resguardo da sua cortina translúcida de fora para dentro, mas transparente de
dentro para fora, como a película que se cola nos vidros de certos
edifícios, permitindo que se veja do interior para o exterior, mas não deste para aquele, excepto quando as luzes interiores se acendem, o que, ao menos durante os brilhos diurnos, não costuma acontecer.
Alguém, do seu elevado ponto de observação – era um 3º andar
alto – dominava as copas das árvores e a entrada norte do parque, mas não a entrada sul.
Assim, apenas se apercebia da entrada de Vladimir Blue, dos olhos dos
transeuntes a virarem-se na sua direcção e, calhando, das suas bocas
movendo-se em conjecturas, sabe-se lá quais. Obviamente, Alguém dotara-se dum binóculo, como
naquele filme do Alfred Hitchcock, Janela Indiscreta, não por imitação, mas porque a
vida é assim, cheia de coincidências ou acasos repetidos, whatever. Nas primeiras vezes,
ainda esperara, com uma persistência de cão leal, que Vladimir Blue saísse do
parque, mas cedo concluiu que a sua viagem era de sentido único, ou seja, ele
não voltava para trás, saía pelo outro acesso do parque ou então perdia-se no
seu interior horas a fio, talvez repousando por lá aquela pressa sistemática,
desconcertante e, quem sabe, desatinada. Concluiu, então, que, se queria mesmo
descobrir os caminhos de Vladimir Blue, tinha de abandonar o seu posto de
observação e o seu binóculo e adentrar-se no parque, seguindo-lhe, de perto, o rasto fugidio.
E assim fez, embora a muito custo, pois, como já deu para
perceber, Alguém vivia escondido na espessa gaze da sua cortina, que, afinal,
era mais opaca do que translúcida. Daí que nada se soubesse a seu respeito, mas nada mesmo, definitivamente nada. Portanto, muito menos do que de
Vladimir Blue, de quem, pelo menos, se conhecia uma sobra da aparência exterior e o seu hábito
de atravessador do parque, o que já era matéria bastante para início de congeminação.
E talvez nem se viesse a saber nada, nem de Alguém nem de
Vladimir Blue, a menos que aquele tomasse forma e resolvesse partilhar as suas eventuais descobertas sobre este.
Mas, à primeira vista, Alguém não enformou, apesar de ter passado a postar-se à
entrada do parque, à hora a que Vladimir Blue tinha por hábito aparecer, as
três da tarde.
Era o disfarce perfeito para acompanhar as andanças do outro, sem se fazer notado, e, assim, perceber um pouco da sua história, morto que estava de curiosidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário